Ética e Estética mortíferas

Este cliché passaria por uma variação bem-aventurada da técnica perspectívica da pintura renascentista, reprodução imagética à procura da exacta adequação à visão humana. Porém, o enquadramento geométrico é atacado, de todos os lados, por facadas de dor, angústia e morte  (um rastro subtil leva-nos até à Última Ceia de da Vinci, na técnica da composição e na atmosfera tanatológica). Os sinais de balas na parede, os restos de sangue denunciando um corpo/alma escorregando contra ela até ao pó da terra, a figura feminina aparando uma tristeza infinita, capaz de suspender o tempo pela falta de esperança que o passado sanguinolento projecta no futuro. Uma parede frágil, fragmentada, disposta a cair, testemunha material da vida (cada vida é a vida toda) que a procurou para se agarrar ainda à luz, talvez, num último esgar de lucidez, sufocando com o absurdo de se apagar tão cedo. Lá dentro, no centro do ponto de fuga geométrico, continuam outras vidas  (invertendo a realidade de A Última Ceia: o transcendente passa a imanente), uma árvore, outras pessoas, e, podemos imaginá-lo, sons e gestos.

No meio disto tudo, assusta-nos a beleza apolínea da imagem, o juízo de gosto achar belo um lugar mortífero. O extremo equilíbrio da composição, a paleta de cores, a centralidade do feminino..., nada convida, sem a vocação actual para a interpretação trágica, a olhá-lo com uma consciência ao mesmo tempo revoltada e resignada à condição desta humanidade esquecida da bondade, que, apesar de tudo, lhe é própria (queremos acreditar nisto). É como se começássemos este século apostando tudo numa ética da destruição maldosa, um estilo de vida que deseja a morte. Falou-se muito de algo semelhante entre as duas Guerras (Freud em particular, com o par eros/thanatos), mas agora aliamos uma tecnologia que mata à distância (como o Apolo mítico, aliás) com lâminas afiadas degolando ou enterrando-se no corpo para rasgar o interior frágil, mas vital, que lhe dá a vida. Voltamos a resvalar para uma “banalidade do mal”, hoje, como quando Hannah Arendt cunhou o termo na reportagem sobre Eichmann (esse insignificante homenzinho que conduziu à morte centenas de milhares de seres humanos com a eficiência burocrata de um bom gestor de transportes nazis), viver parece valer menos que um prato de lentilhas. Voltamos a ignorar o que fazer do extraordinário dom da vida, preferimos-lhe cada vez mais a morte, uma ética e estética do mortífero, olhe-se para as encenações imagéticas e discursivas dos mártires actuais, onde a ética recorre ao teológico e a propaganda à estética pimba de festas provincianas.

A partir de Jean-Luc Godard

Uma rara entrevista de Jean-Luc Godard (3 filmes na interessante Lista Scorcese) ao Le Monde (10 de Junho de 2014) para falar de cinema e outras minudências. Reproduzo as highlights e pratico algumas derrapagens e suplementações, prolongando e desconstruindo sentidos.

1- Individualismo: o cinema é o único sítio onde 15, 20, 100 pessoas poderiam decidir fazer as coisas de outra forma. [a emancipação do indivíduo passa então da filosofia e da política, ou do álcool e outros psicotrópicos, para o cinema]

2- Pretensa célula Godard: irrealismo, talvez a Nouvelle Vague, num curto período de tempo, tenha sido vagamente isso. Três indivíduos, Truffaut, Godard e Rivette, três rapazes que tinham abandonado a família. [a explosão artística só se consegue fugindo de papa/maman, das resmas de valores morais que preenchem inteiramente a casa familiar]

3- Paixão pelo ténis: praticou-o muito, em Paris a sério entre 1946-47, depois abandonou. Mas é o único campo onde alguém nos reenvia a bola. [desporto para intelectuais, pois. Mas também exemplo de uma ética da discussão: reenviar a bola, a mesma bola, ao adversário, não se desculpar, tergiversar, vitimizar...]

4- Comunicar com o silêncio: cita Bresson, Notes sur le cinématographe, para destacar uma frase: “Está seguro de teres esgotado tudo o que se comunica através da imobilidade do silêncio”. [é tempo de nos calarmos, ou de falarmos menos. O homem do futuro será mudo]

5- Cannes? “Ça n’existe plus”. [esta semana vi La vie d’Adèle, e Cannes ressuscitou]

6- Pode deixar-se uma parte ao azar? Totalmente. [uma parte e meia]

7- Método? Não, trabalho. [para o bem ou para o mal? A velha ética do trabalho tem 7 vidas]

8- Bill Viola? Detesta, é só cenário, texto escrito posto em imagens, por vezes brilhante. [fico-me pelo “brilhante”]

9- Entusiasmam-no alguns realizadores? Não conhece 9 em cada 10. Três quartos dos filmes são óbvios. [um pouco mais]

10- Só há livro a pôr dentro dos livros: o cinema é um esquecimento da realidade (cinema dentro de cinema), mas o esquecimento pode também conduzir à realidade. Maurice Blanchot dizia “Esse belo recordar que é o esquecimento”. [paradoxo: o que está além do sentido enfadonho. O secreto Blanchot é um deus ex machina]

11- Andy Warhol: gostou dele quando fez um filme de três dias sobre comer e dormir. [inspiração para o MasterChef?]

 

[Godard em auto-irrisão, a dar pistas escorregadias para tentarmos descobrir um pouco de génio no meio da vulgaridade (antes temos de saber se ainda somos capazes de “engendrar uma estrela dançante” em nós). Ele também vulgar, por vezes, como se viesse respirar vida para depois fazer mais um mergulho e não se afogar no mar da criatividade por falta de normalidade] 

Selfies em caleidoscópio

Para a Tatiana Faia, que sabe selfiar bem

Voltemos às selfies, “auto-retratos”, como lhe chama um amigo meu, querendo esquivar-se à banalidade. No Verão, as redes sociais regurgitam de gestos narcísicos, o culto do eu redobra de vigor em período de férias. Da praia à viagem no estrangeiro, da esplanada ao concerto musical, do museu à caminhada na montanha... aumentam exponencialmente os cenários que emolduram a ouro a figuração pessoal. Os críticos, especialistas da negatividade, caem em cima desta avalanche de eus em pose, transbordando de felicidade; deplorando a esterilidade das partilhas egocentradas e as paradas exibicionistas, revelam, a partir do seu tribunal de costumes, os sintomas de decadência civilizacional no umbiguismo fotografado.

Mas em boa verdade, de Montaigne a Proust, de Thomas Mann a Robert Musil, de Fernando Pessoa a Friedrich Nietzsche, de Van Gogh a Goya... foi através de linhas de desenvolvimento partindo do sujeito que se produziram algumas das obras de arte mais universais. Neste sentido, não é tanto o número incomensurável das exibições que nos deve preocupar, mas a sua monotonia. O problema está mais no mimetismo dos gestos e textos que os enquadram do que na quantidade de selfies. A partilha de si só é desinteressante quando não introduz um pequeno fragmento de novidade, não acrescenta nada ao que já existe, não desbarata o hábito.

Por isso, em vez de se condenarem apressadamente as redes sociais digitais (Facebook, Twitter, Instagram...) – cai-se normalmente aí –, numa mistura paradoxal de intelectualismo progressista e reaccionário, talvez se deva pensar melhor, sobretudo mais livremente, retirando dos factos conclusões menos... estéreis. Parece-me que os avatares circulando pela Webesfera são principalmente, nos casos menos infantis, formas de des-subjectivação, dão a ver, ouvir, ler... como outros os originais. As selfies não fixam necessariamente o “eu”, são desenhos complexos do “si”, outras personagens que, apesar das ligações, se afastam das origens antropológicas do baptismo; à semelhança dos dispositivos heteronómicos. Nas redes sociais, o “eu” parece afastar-se da sua própria realidade e inventar uma projecção de si, que tanto pode ser narcísica (a normalidade) como experimental, irónica, fantasista, poética... Por outro lado, a multiplicação exponencial de eus carentes de elogios fáceis e imediatos faz com que um narciso se confunda com todos os outros, tornando-se irrelevante (a não ser para o pequeno círculo de conhecidos, a que de qualquer modo teria acesso).

Para me pôr agora do lado dos críticos: este campo de futilidade selfiesta prevalece sobre os restantes, e desvirtua a boa comunicação. Já que em vez de a usar na autodescoberta e envio de pretextos para os receptores investigarem melhor a sua personalidade caleidoscópica, o faz para se camuflar e insuflar, mostrando-se nos paraísos efabulados que tem à mão e acha socialmente prestigiantes. Mas nenhum eu tem de se transformar num objecto genérico, as férias não têm de parecer um desfile de selfies cor-de-rosa. Vamos, mais um esforço para que cada vida se transforme numa obra de arte.

Ateologia

Se Deus não existe então tudo é permitido!” (Dostoievski). 

Jacques Lacan inverte a fórmula.

Porque a existência de Deus é, creio, uma espécie de rede que nos apara quando escolhemos o mal (neste pequeno texto a crença e realidade confundem-se). Podemos ser castigados em modo tragédia, levar com a espada de Dâmocles no meio da cabeça, sofrer uma vingança servida fria... Mas com a companhia de Deus (não interessa o desenho ontológico) quando escolhemos o lucífero há ainda a esperança do perdão ou do sofrimento redentor, no fundo que Deus reponha a ordem.

Uma rede que não nos deixa cair em tentações indescritíveis vai sendo tecida para evitar que construamos, por nossa conta e risco, um grande interdito, uma auto-censura mil vezes pior do que a do Inferno. Sem a moral divina talvez nos tornássemos hiper-morais, em cada um de nós, constato isso todos os dias, vive um Tomás de Torquemada.

Desacordar um acordo ortográfico

Paulo Matos volta a expor Bárbaro – Ao – Ataque Ortográfico; de 1 a 3 de Julho, no Palácio Cabral, Espaço Cultural Santa Catarina, Lisboa. Desde 2012, a obra esteve patente no Espaço Cultural das Mercês, Biblioteca Municipal Orlando Ribeiro, Casa da Cultura dos Olivais, Ler Devagar (LxFactory) e Fábrica Braço de Prata.

Ao falar com o autor percebi que foi cruzando várias linhas de inspiração, polvilhadas com laivos de rebelião, que nasceu esta peça, maneira de simbolizar o ataque acéfalo, mas oportunista (uma intelligentsia misturando políticos carreiristas e megalómanos com linguistas ufanos por protagonismo), a um código ortográfico que servia bem, e há bastante tempo, as nossas necessidades de comunicação e criação. Paulo Matos referiu várias vezes a necessidade de constância, que um meio de interacção tão complexo como uma língua precisa de sistemas de codificação relativamente permanentes. Não se trata, evidentemente, de petrificar a língua portuguesa, de a obrigar a manter-se ad aeternum fiel a regras linguísticas fixas. A língua, diz Paulo, pode, e deve, evoluir, incorporar, deslocar, apagar, inventar… novos vocábulos e novas formas de expressão. Se assim não for, morre, o latim é disso exemplo. Mas, simultaneamente, deve acompanhá-la uma certa estabilidade semântica e sobretudo morfológica. Até para contrariar o carácter efémero da actualidade, materializado entre a limitadíssima esperança de vida dos gadgets tecnológicos e o estilo speed dating das relações sociais. Vivemos na vertigem de mudança, muitas vezes sem sabermos para quê nem para onde. É preciso manter uma linha de inteligibilidade entre o “agora”, a multiplicidade, por vezes caótica, do presente, e o passado; alimentar um lastro que nos dê profundidade cultural e existencial. Ora, a melhor maneira de o fazer é não mexer arbitrariamente na língua. Aliás, a forma em espiral da obra de Paulo Matos estabelece similitudes com a espiral do ADN, estrutura da vida, com uma força de permanência essencial à evolução filogenética e ontogenética das espécies orgânicas.

De um ponto de vista mais estético, em si mesma a peça parece estar perto de descrever literalmente o gesto bárbaro que golpeou uma parte da língua portuguesa, forçando alterações morfológicas, gramaticais e até fonéticas que o seu uso não exigia. O “Bárbaro” é, pois, um gesto arbitrário de vontade de domínio, um “cortar a direito” para gáudio de uns quantos aprendizes de demiurgos. Mas, em boa verdade, a alta densidade simbólica da obra inscreve-a numa complexidade trágica, numa arriscada negatividade que dificilmente, aprofundando o nível interpretativo, permite a sua compreensão imediata e definitiva. Estamos plenamente no jogo pós-moderno do inteligível contaminado pelo ininteligível, do fetichismo do inapreensível, de um neo-dandismo que ao mesmo tempo que assegura a intervenção Crítica na realidade se afasta para o Olimpo de uma elite que ri do “prazer da arte” ou da moral da utilidade e bondade. Paulo Matos, sem estar inteiramente no esteticismo snob do actual mundo da arte, abraça através desta peça um refinamento simbólico que mistura Pop Art (a extensividade figurativa…) com uma austeridade neo-neo-clássica (a espada, os blocos maciços constituídos pelos dicionários...) adequada ao culto da decadência que novamente nos assalta.

Do ponto de vista do combate ao último Acordo ortográfico (que, no limite, só Portugal respeitará, em bom dizê-lo), a peça, numa leitura que parte dela mas a ultrapassa, denuncia os processos de simplificação que regozijam com a elementarização do mundo (as línguas francesas e inglesas, por exemplo, dificilmente suprimirão os elementos morfológicos sem uma correspondência fonética imediata e evidente, caminho de simplificação sobrevalorizado pelos nossos obreiros do Acordo). Recordemos que “simplificar” foi sempre a receita de projectos políticos hegemónicos, do estalinismo ao nazismo, passando nos nossos dias pela Coreia do Norte. Levada ao paroxismo, a simplificação é uma tentativa de escapar à “fatalidade das ligações múltiplas” que complexificam as comunidades mais sofisticadas, avessas ao dom-sebastianismo. “Objectivar muito mais a língua portuguesa”, defendiam, e defendem alguns. Anular a “realidade complexa” dos sonhadores, dos hesitantes, dos cépticos, dos criativos. Para as ditaduras, o mundo deve ser governado com simplicidade, a partir de ideias como as de “raça superior”, “materialismo dialéctico”, “igualitarismo”, “capitalismo”... O Acordo enquadra-se bem neste último marcador ideológico: “é difícil escrever, as palavras têm componentes ‘supérfluos’? Simplifique-se! Para que todos, sem esforço, possam escrever ‘bem’”. Aliás, se esta simplificação linguística não for suficiente, em nome da igualdade pode e deve-se acabar com a própria escrita. É bem mais fácil, e eficiente, do que ensinar a escrever.

Para terminar, a peça de Paulo Matos é também uma subtil indicação de que no futuro, não interessa qual, quando tudo for perfeito, as peças de arte perderão a sua importância. Sem nada para criticar, num mundo belo-em-si, os artistas serão então, como escreveu Friedrich Nietzsche, inventores da festa e da alegria” (Fragmento Póstumo 1880, 1[81]).