Vive-se uma euforia quase viral em torno do acordo climático alcançado na COP-21 de Paris. Ele oferece a possibilidade, é verdade, mas não a garantia de superarmos a irresponsabilidade e a inconsciência climática dos últimos séculos (começámos inconscientes e acabamos irresponsáveis). Sabe-se com cada vez mais certezas que, se nada for feito, as temperaturas mundiais vão subir cerca de 3º C em relação à era pré-industrial. Em Paris, consensualizou-se um aumento máximo de 1.5º C, abaixo dos habituais 2.º C. Mais, a monitorização do processo foi desviado da política para a ciência, o que garante muito mais isenção e racionalidade. Terceiro ponto, se é verdade que não há obrigações contratualizadas, imperativos fixados (o passado mostra a dificuldade em impô-las), se num determinado sentido ninguém está obrigado a nada, o acordo abre, porém, a possibilidade de todos os actores sociais fazerem pressão sobre os Estados, sobretudo em cada ciclo de revisão dos acordos (todos os cinco anos). Portanto, crê-se que ao permitir que a sociedade responsabilize o Estado, este se sentirá mais constrangido a respeitar os compromissos.
Ora, para ser consequente com este objectivo é preciso deixar de utilizar rapidamente os combustíveis fósseis, este é o ponto principal que ditará o sucesso ou o fracasso da Cimeira de Paris. Se a ajuda dos países mais ricos aos mais pobres é relevante, se a necessidade de haver planos climáticos todos os cinco anos impõe uma dinâmica de acção permanente, se o sistema de créditos de emissões de CO2 pode ajudar as regiões menos desenvolvidas a superarem a economia do carbono, se a boa-fé dos políticos parece genuína... Se tudo isto traz um alento que nunca se sentiu na Conferência de Copenhaga de 2009, também é indesmentível que o resultado está nas mãos de cada um de nós, mais até do que nas acções ou inacções dos políticos profissionais.
E há muito a fazer no campo da re-ecologização do pensamento e sentimento individuais. A maioria de nós vive alegremente e irreflectidamente como consumidor-poluidor, com pegadas ecológicas muito acima do que é comportável para o Planeta. É por isso que pelo menos tão importante como os compromissos da COP-21 será reflectirmos e agirmos sobre o nosso estilo de vida, individualmente, em micro-política, mudando-nos primeiro a nós, na esperança de um crescimento exponencial, passando do individual ao global, a partir do princípio político da gota-a-gota.
Para isto, talvez seja útil, além de um conjunto vasto de informações científicas disponíveis on-line, reler um pequeno livro de Félix Guattari, texto de fim de vida (1989, Guattari morreu em 1992): Les Trois Écologie (Paris: Galilée, 1989). Neste opúsculo, o pensador que escreveu L’Anti-Œdipe ou Kafka. Pour une littérature mineure a duas mãos com Gilles Deleuze, insiste na necessidade de uma nova subjectivação do indivíduo,[1] articulada com uma mutação social e a recuperação de um meio ambiente degradado e irremediavelmente modificado (vivemos no Antropoceno). Ecologia subjectiva, social e ambiental, pensar as condições de produção de estilos de vida num mundo extremamente frágil, desenvolver lógicas de subjectivação que não se submetam à pura lógica do lucro. A abordagem faz-se a partir de uma Ecosofia (“eco”, entendida na sua raiz etimológica como “oïkos”, isto é, casa, habitat, meio natural), devedora, e suplementadora, do movimento da Deep Ecology desenvolvido pelo norueguês Arne Naess durante a década de 70 (é importante pensá-lo como “movimento social”, não como ideologia). Para Guattari, a Ecosofia permite uma resposta multipolar, de ruptura política, social e cultural, uma resposta “ético-política” (p. 12, também a designa como abordagem "ético-estética", p. 31) articulando três campos heterogéneos: o do ambiente, das relações sociais e da subjectividade. Esta abordagem é simultaneamente pragmática e ética, as três ecologias não pretende revelar uma qualquer essência, mas desenhar práticas mais eficazes na desalienação do humano e na preservação da natureza.
Continuando a sua crítica ao espírito capitalista mais puro, Guattari define como objectivo fundamental a re-singularização dos indivíduos através de práticas de micro-desejo, de micro-política e de acções micro-sociais, única forma de combater as semióticas capitalistas dominantes e os discursos sedativos. Passagem de factos e hermenêuticas de estrutura para factos e hermenêuticas atentas à autonomia criadora. Daí o slogan “Work in progress”, um permanente pensar e agir sobre as condições de produção de estilos de vida (o que inclui já a preservação da própria vida tal como a conhecemos). Contra o modelo único de tudo ser transformável em tudo, rasura dos valores intrínsecos, primado dos fins sobre os meios. A Ecosofia é também uma analítica capaz de compreender a complexidade dos problemas actuais mais recalcitrantes, articulando ética e politicamente os três registos ecológicos: ambiente, relações sociais e subjectividade ("relações da humanidade ao socius, à psyché e a 'natureza'", p. 31). A disfunção resulta da redução da intensidade e complexidade das redes familiares, "uma vida doméstica gangrenada pelo consumo mass-mediático, a vida conjugal e familiar encontra-se 'ossificada' por uma espécie de estandardização dos comportamentos, as relações de vizinhança são geralmente reduzidas à sua mais pobre expressão... É a relação da subjectividade com a sua exterioridade – quer seja social, animal, vegetal, cósmica – que se encontra comprometida numa espécie de movimento geral de implosão e de infantilização regressiva." (pp. 11-12)
Na ecologia mental, resultante do processo de subjectivação de cada indivíduo, já não se trata de propor qualquer tipo de cura (Guattari era psicanalista, embora pouco freudiano) para o sujeito patológico, mas de pôr em relação o mental singular com as problemáticas colectivas. E nesta relação, em bom construtivista, cada indivíduo vai definindo uma parte da sua própria subjectivação, construindo o seu eu. Uma ecologia que não investisse no problema da subjectivação fracassaria, visto deixar a subjectividade presa aos modos de produção do “Capitalismo Mundial Integrado” (do neoliberalismo ocidental ao capitalismo de estado neo-comunista, ou ainda "O antigo igualitarismo de fachada do mundo comunista", p. 16). Com isto, Guattari recusa pensar o indivíduo a partir de um fundo que fosse “verdadeiramente humano” uma antropologia fixa, conservadora, mostrando à partida o que é e pode ser o humano. Pelo contrário, a subjectivação do indivíduo é um permanente work in progress, envolvendo os três campos, do mental, do social e do ambiental. Um processo que "Longe de buscar consensos estupidificantes e infantis, tratará no futuro de cultivar o dissenso e a produção singular da existência."
Na ecologia social, Guattari aponta a destruição da vida em comum, a fragilização dos grupos e dos processos de subjectivação que nos tornam grupos-sujeitos (onde os indivíduos sejam "simultaneamente solidários e cada vez mais diferentes", p. 72) . A principal causa está no desvanecimento da variedade e divergência das actividades humanas. Hoje só se valoriza o mundo da produção capitalista. A esta homogeneidade pérfida opõe Guattari o princípio vital da heterogénese. Uma ecologia social pensa e age sobre as relações que produzem o socius. Partindo do mental e do ambiental (não é um ponto de partida absoluto, ele desloca-se entre os três vértices do triângulo ecológico, capturando à vez um ou dois pontos para essa função), a Ecosofia propõe-se construir novas modalidades de viver em grupo. Fundamentalmente, porque responder permanentemente e infinitamente ao problema que constitui aceitar o dom do outro e a sua amizade numa perspectiva de abertura e de generosidade, de co-produção. Nada disto deverá, porém, seguir um sentido pré-definido, Guattari dizia muitas vezes que não se devia olhar para um ou outro lado, mas para todos os lados: alteridade, heterogénese, hibridismo... Como tinha pensado com Deleuze, a partir do exemplo de Kafka, não interessa o início ou o fim, mas o meio, construir sínteses, sim, mas disjuntivas. Pôr em perspectiva uma heterogénese onde os contrários não se destroem mas se hetero-alimentam. E depois, questão da velha crítica, continuar a tentar perceber como o poder repressivo é tantas vezes introjectado pelos oprimidos. Agindo sobre a ecologia mental, claro, mas também, Guattari refere-o várias vezes, reapropriando-nos dos meios de comunicação de massa, meio poderoso de alienação do individual e do social. Tudo isto enquadrado na recusa de uma essência humana, para Guattari, seguindo Nietzsche, o homem está em permanente construção, daí que as suas propostas sejam irredutivelmente pragmáticas, o que conta é o efeito não a descoberta da verdade.
Sobre a ecologia da natureza, Guattari acaba por escrever muito pouco, o seu princípio é o de que “tudo nela é possível, o pior e o melhor”. A natureza é maquínica, composta por uma conexão de elementos heterogéneos em constante modificação, sem afinidades especiais com os seres humanos (bem diferente da visão de Arne Naess, para quem o natural se entrelaça vitalmente com o cultural). Mas saber que o pior pode advir exige disposições éticas de combate. As soluções tecnológicas para as crises ambientais requerem que os sujeitos se apropriem dessas mesmas tecnologias para as pôr ao serviço da reparação ambiental, por exemplo: o problema do aquecimento global obriga a uma apropriação social e mental das tecnologias necessárias à mitigação dos efeitos mais negativos.
Num resumo apressado, podemos dizer que Les Trois écologies pode, e talvez deva, ser lida como uma proposta ética, novas formas de pensarmos e agirmos sobre nós, a sociedade e a natureza. Um ética sem moral, visto que as acções são, pelo menos em parte, ditadas pelas circunstâncias, ética variável inscrita em cada caso.
[1] Por “subjectivação” entendemos os múltiplos e multiformes processos que fazem de nós um sujeito. Neste sentido, é necessário recriar mitos, servirmo-nos do poder do imaginário e do fantástico (Cinema, romance, música, jogos de vídeo... também contribuem para esse processo) tanto quanto dos discursos das neurociências ou da filosofia.