Futebol e Literatura

Já não estamos na época das Belas Artes, onde se definia com suposta clareza o que era e o que não era Arte. Também abandonamos a expressão, que aliás surgiu como arma crítica, de “baixa e alta culturas”. Mas ainda se mantém, pronta até para um maior protagonismo, a de “culturas popular e erudita”. Esta polarização fraca separa, por exemplo, o futebol (“cultura popular”, “entretenimento”, “indústria”...) de literatura (prestigiosa em si mesma, isenta, por isso, de adjectivação, a não ser quando nos referimos à falsa literatura, aos discursos que se dão “ares de literatura”).

No entanto, talvez se escreva mais sobre futebol do que sobre grandes temas literários (paixão, vingança, traição, guerra, altruísmo, heroísmo, decadência, niilismo, beleza, sacrifício... ou qualquer objecto no Nouveau Roman). E por isso, de vez em quando, imagino uma realidade onde, a par do “Sonho com um mundo onde se morresse por uma vírgula.”[1]  (Émile Cioran, Syllogismes de l’amertume), quem escreve sobre futebol o fizesse com a técnica, o entusiasmo lento e a criatividade dos bons romancistas. Algo que por vezes parece actualizar-se, por exemplo neste artigo para o El Pais de José Sámano sobre o jogo entre o Atlético de Madrid e o Barcelona de ontem para a Champions League (2-0).

Provas:

“Gente que transcende os títulos” (caberia perfeitamente num herói de guerra de Tolstói ou num altruísta involuntário de Lobo Antunes).

“O ‘semionismo’ [a partir do nome do treinador do Atlético] converteu a paróquia de Manzanares num acto de fé para uns diocesanos que ressuscitaram dos infernos e podem acreditar no que querem acreditar.” (o óbvio Dante mas misturado com Nietzsche e boa literatura de auto-ajuda, começando por Emerson).

“à falta de jogo que os exaltasse, ou da inspiração de alguma estrela, puxem da casta, mas o heroísmo não é para eles [em relação ao Barcelona].” (Proust, Céline – por razões diferentes –, Roth, Musil...)

“O Atlético quis correr e o Barça, até que se viu perto do abismo, só caminhar.” (Nietzsche e Camus, talvez um pouco de Goethe)

“Os avançados eram tão invisíveis como os três centro-campistas [Barcelona], todos aparafusados por este Atlético de paladinos, contra o qual não há outra solução além de puxar do fórceps.” (um bom final para um livro de Agatha Christie)

“um remate de cátedra” (metáfora multiusos)

“Com o despejo da Europa à vista, Messi e os seus, já com fogo nas botas e no coração, puxaram do orgulho e lançaram-se em turbilhão sobre Oblak [guarda-redes do Atlético].” (adequado a qualquer projecto lírico neo-romântico ou adorno sentido para um best-seller pretensioso)

 

[1] “Je rêve d’un monde où l’on mourrait pour une virgule.”

Estética e ética das bofetadas

Demitiu-se o ministro da cultura João Soares, que prometeu bofetadas a Vasco Pulido Valente e a Augusto M. Seabra (por isto e isto). Foi-se embora, segundo ele próprio, prolífico como sempre em explicações, porque quer preservar a sua liberdade de expressão. Atente-se: “a sua”, não a dos outros.

Devo dizer que não gostaria de tomar café com nenhum dos três, e só Vasco Pulido Valente, porque é um cultor da escrita e da adjectivação, só mesmo por isso, teria alguma probabilidade de trocar um olhar comigo. Não que isto lhes interesse particularmente, têm com certeza nas suas relações pessoas mais interessantes com quem desejam conviver, mas devia fazer esta declaração de intenções, não vá alguém ver tendências afectivas onde existe apenas análise racional.

Há já uma vasta literatura sobre “bofetadas”, aliás, já havia, ficando ainda mais evidente na última passagem do romantismo para o classicismo (os clássicos duvidam da estética do esbofetear), e os Maias e as Farpas retratam bem a intempestividade decadente dos maluquinhos da honra telúrica (recorde-se que se deve remontar genealogicamente à primeira polarização mediatizada da Bataille d’Hernani). Portanto, João Soares não é, como tantos lhe chamaram, um arruaceiro ou, no mínimo, um desbocado adito de likes no facebook. Também não me parece que quisesse intimidar os adversários maldizentes (apesar da cinematográfica “peço desculpa, se os assustei”), saiu-lhe. À boa maneira romântica, o impulso de dizer o que vem, sem mediações, à cabeça, alimenta uma ética do desassombro que tem como lei: “age sempre de forma a que digas e faças o que te vem, ainda que sem porquê, espontaneamente à cabeça.”

Ora, isto contradiz uma ética do diferimento que elege a prudência como método de vida, mas também princípio estético (a arquitectura ou a pintura clássicas, por exemplo, resultam sempre de processos longos de depuração, isto é, de diferimento e apagamento dos primeiros impulsos que emergem no artista). Se João Soares fosse um clássico diria: “a forma como fui tratado por Augusto M. Seabra, e já agora Vasco Pulido Valente, revela acusações semióticas desajustados e uma incapacidade real para perceber que a concorrência entre actores e correntes estéticas reproduz, até certo ponto, a própria luta social de classes [uma nova luta de classes sem o proletariado].” Mas não, João Soares porta-se como um romântico, reflectir e ponderar é, para ele, uma espécie de contaminação da pureza de um pensamento-sentimento-acção que deve manifestar-se ainda antes de ser envolvido e espartilhado pelos preconceitos da civilidade.

Por tudo isto, a querela João Soares/Vasco Pulido Valente/Augusto M. Seabra é mais estética do que política ou ética, tem mais que ver com juízos de gosto (ou a falta deles), do que imperativos éticos, é um epifenómeno que diz bastante acerca de Portugal, claro, mas sobretudo se inscreve numa longa linha de dissensos, que talvez remonte à oposição entre românticos e clássicos no tempo das Cavernas, entre visões do mundo e do belo incompatíveis, uma, a romântica, impulsiva, crente nas virtudes do bom selvagem, a outra, a clássica, prudente, praticando por convicção a arte do diferimento. 

Imre Kertész morreu

Parcelas da entrevista, e de pequenos comentários meus a partir dela, de Imre Kertész para a revista Philosophie Magazine e Alexandre Lacroix em 2013: “Imre Kertész: ‘L’écriture est un jeu mortel’” [a escrita é um jogo mortal]. Trago-a aqui como oração fúnebre e porque revela a importância que a filosofia teve para Kertész.

Kertész nasceu em Budapeste em 1929, foi deportado, com 14 anos, para Auschwitz e Buchenwald, depois da Guerra regressou a Budapeste, onde trabalhou num jornal, despedido pouco tempo depois (1951) pela máquina política, publica a sua opus magnum, Sem Destino, em 1975 (silenciado no seu país até 1989), Prémio Nobel da Literatura em 2002. Há várias traduções em português.

A sua vida roçou constantemente a linha da morte, e isso definiu tanto o que escreveu como o ter sido tradutor, por exemplo, de Camus, Nietzsche e Wittgenstein. A isto acrescente-se o peso enorme da censura, sobretudo depois dos russos esmagarem a insurreição húngara de 1956 (havia já uma ditadura comunista desde 1948), e a síndroma do sobrevivente, como em Primo Levi e tantos outros resgatados dos campos de concentração nazis. Assim se compreende que tenha dito, aquando da entrega do Prémio Nobel: “Há no meu percurso algo que dificilmente podemos pensar sem sermos tentados a acreditar numa ordem sobrenatural, uma providência, uma justiça metafísica, isto é, sem se iludir, e com isso entrar num impasse, destruir-se e perder o contacto profundo e doloroso com os milhões de seres que foram mortos, nunca conhecendo a misericórdia.”

Kertész ficou na Hungria depois do “manto de chumbo” que abafou o desejo de liberdade de parte da sociedade, diz que permaneceu para escrever um romance, do qual ainda não havia sequer uma linha (virá a ser Sem Destino). Para sobreviver, depois da esposa ter sido também excluída da economia burocrática oficial, estando inclusive presa durante algum tempo, escreveu peças de teatro para companhias de rua, actores e encenadores anti-regime, e fez digressões durante metade do ano. Na outra metade lia filosofia, os clássicos, de Platão aos modernos. Questão de aprender a reflectir, coisa difícil, já que não basta pensar, diz, é também necessário encontrar um objecto sobre o que pensar, os clássicos de filosofia foram o objecto de Kertész, permitindo-lhe superar a condição particular da humanidade, visto que: “a reflexão é uma arte que ultrapassa o homem.” Ainda que, a partir do dissenso entre Wagner e Nietzsche[1], Kertész afirme que “Os artistas jogam com as ideias. Os filósofos são incapazes de ter esta distância e este humor.” (Nietzsche foi, neste caso, o mal humorado e o híper-susceptível). Apesar da seriedade e susceptibilidade, os filósofos permitem clarificar criticamente o que parece evidente, por exemplo Wittgenstein mostrou-lhe que não há uma experiência privada da linguagem, ela pertence a uma comunidade de sentido. Por isso, quando dizemos “eu” dizemos igualmente “ele”.

Uma das principais influências filosóficas e literárias foi Albert Camus (na literatura, também Thomas Mann), que descobriu, lendo o Estrangeiro, aos 27 anos. Até aí ainda não tinha cruzado um escritor genial, a leitura do livro deixou-o em choque, um choque que “durou quatro ou cinco anos.” A marca fundamental veio da ideia de liberdade, Kertézs diz que graças ao Estrangeiro compreendeu que a verdadeira literatura faz emergir um violento sentimento de liberdade. Em geral, destaca a admiração que votou à insolência camusiana: “Para mim ele representava a figura do jovem homem que descobre tudo, vê tudo, que ousa dizer tudo com audácia e maldade. Vede como Camus, que vinha da Argélia e não tinha ainda 30 anos, ousou apropriar-se das grandes noções da filosofia – o absurdo, o homicídio, a liberdade... – sem respeito, sem precauções, sem medo. Esta energia, invejei-a. Quis mesmo roubá-la.”

Relação entre filosofia e literatura: “vejo a filosofia como uma procura de verdade, o que supõe um certo espírito de seriedade, enquanto que na literatura se trata de outra coisa. A escrita é um jogo mortal. Quando nos comprometemos com a escrita de um romance, é preciso encontrar uma linguagem. Esta preocupação de fazer nascer uma linguagem singular é aos olhos do escritor de uma gravidade mortal, torna-se uma questão vital. O meu primeiro romance, Sem Destino, não poderia ter sido escrito noutra linguagem.”

Porque é Sem Destino um livro de ficção e não um testemunho, o seu testemunho da passagem pelos campos de concentração nazis? Para Kertész “A arte do romance consiste em encontrar uma unidade entre três dimensões-chave: a linguagem, o tempo e a acção. Procurei encontrar uma linguagem para Sem Destino que me permita, como dizer, penetrar nalgum sítio. Sim, é isto, trata-se de um livro que não reivindica nada, que não se preocupa com a história porque se recusa a olhar os factos a partir de fora. O narrador está em imersão, enquanto que o testemunho pressupõe sempre uma espécie de distanciamento.” Mesmo assim, nesselivro de ficção confrontou-se com o seu passado, com o rapaz de 14 que chega a Auschwitz e mente na idade para poder ir trabalhar (algo que, sem o saber, o salvou da morte imediata). Uma mentira e um certo orgulho em pertencer ao mundo dos adultos, forma de colaboração passiva. “Confrontei-me sem cessar ao longo do romance com partes fechadas da minha própria história, partes que tive de reabrir. Não se trata de realidade histórica, mas de autenticidade vivida.”

Finalmente, e contando que em 2013 a doença de Parkinson ia adiantada, à pergunta sobre se foi a doença que o fez parar de escrever, responde: “Sofro muito, é verdade, mas tenho uma razão precisa para suportar estes sofrimentos, de não acabar com eles rapidamente. Pensai nos suicídios de Primo Levi, de Tadeusz Borowski ou de Jean Améry, a todos os sobreviventes dos campo que se suicidaram. Eu não quero juntar o meu nome a esta lista. Não quero que se diga que eu próprio executei a sentença. É por isso que aguentarei até ao final.”

É isso mesmo, por vezes a virtude está em aguentar, aguentar apesar de tudo.

 

[1] Sobre quem tem uma intuição justa, ao dizer que a expressão “Deus morreu” não revela uma intenção estritamente teológica, mas o fim da cultura humanista.

Atentados de Bruxelas

I Começo por uma declaração: tenho cada vez mais dificuldades em distinguir o bem do mal, mas ainda não consigo estar para lá dessa velha dicotomia. Isto não provém, como em algumas pessoas que conheço, de uma sobre-racionalização, que a partir de uma grelha lógica cheia de bondade consegue mecanicamente acusar tudo o que pulse fora dela e santificar o que se encaixa nos seus pressupostos. Para mim, pensar o bem e o mal é só uma parte de uma hermenêutica bem mais geral, onde devem estar os horizontes de expectativa da época (um Zeitgeist feito de sensos comuns) e os acidentes extremos que sacodem a nossa consciência moral.

II Por isso, se houve alturas em que me felicitava por simultaneamente não ter nem senso comum nem corpo, hoje sou um irredutível céptico proposicional, isto é, acredito pouco nas belas e justas frases (a não ser esteticamente), tudo o que penso tem de passar o teste da realidade (das realidades, não creio numa verdade fixa exterior ao homem, plena de sentido definitivo). O teste das realidades é o meu “tribunal da razão”. Incorporei, assim, o senso comum nas minhas interpretações, é ele (ou eles) que constrói parte da realidade de que vos falo, é por ele, portanto, que a posso recuperar. 

III Os terroristas de 22 de Março em Bruxelas, essa “cidade livre, onde o humor, o desrespeito, uma maneira particular de não se levar a sério, contrasta com o que os bárbaros têm na cabeça: certezas de pacotilha, o ódio ao outro, a violência dos ‘puros’.”, dizia o director do Le Monde no dia seguinte aos atentados, vieram abanar o meu sentimento de segurança e de confiança, do primeiro decorre o segundo. Como continuar a acreditar que o ser humano, a totalidade desta espécie que justificou a bondade de uma multiplicação incontrolável com narrativas religiosas, prefere, de longe, o bem ao mal? As ideias que me assaltam não asseguram que eu seja outro, uma alteridade de bondade em relação à maldade dos terroristas. André Macedo, no editorial do Diário de Notícias de 23 de Março, associa o “proselitismo islâmico agressivo” com o “niilismo geracional que nos trouxe até aqui”. E isto faria com que houvesse, diz ainda, uma diferença profunda (antropológica?) entre “eles” e “nós”. Esta, mutatis mutandis, guilhotina de Hume não é clara para mim, às vezes pergunto-me se não habitará em cada um de nós um mini-terrorista à espera de crescer? Isto encaixa em algumas justificações políticas do fenómeno terrorista: incriminando uma péssima integração, o abandono das comunidades de imigrantes, a ostentação dominante do cristianismo sobre as outras religiões na Europa, a proletarização de segundo nível pela subsidiação elementar dessas populações, no fundo o modo de ser do capitalismo e da democracia cristã fabricaria terroristas. Acho esta argumentação, exemplificada há pouco tempo pelo nosso deputado Miguel Tiago, demasiado, política e moralmente, auto-culpabilizante para me interessar longamente. Se algo ficou mais claro para mim à medida que cumpro à risca o plano biológico de envelhecer, foi o de não confiar numa visão política que assenta, por vezes estrategicamente, em condições de interpretação e acção morais

IV Outro fracasso político é o da inacção (que não é exactamente o contrário da anterior, apenas uma versão mais moderada), baseado no “politicamente correcto”, conversa fiada que ao mesmo tempo que não age, siderada pelas ideias sagradas do interculturalismo e comunitarismo, mais inclinada a culpar o Ocidente (o quê nele? Não se sabe muito bem, prefere falar abundantemente de problemas de acolhimento, como se para integrar bastasse um lado) do que pensar e combater as causas reais (das realidades de que falei há pouco) do terrorismo. Essa posição conduz ao bartleyano “I would prefer not too”, e, mais grave, deixa o campo aberto ao populismo da extrema direita, que aproveita bem as pulsões xenófobas vingativas mais arcaicas (vingança contra vingança), inscritas aquém da fina capa cultural.

V Pensar o regresso do medo e da destruição malvada precisa, pois, do senso comum (sempre plural, repito-o). Conviver com os gestos, frases, sonhos... diários dos terroristas. O que os motiva deve ser de uma banalidade e obscurantismo realmente medianos. Nenhum deles leu tratados imparciais de geopolítica, nem Freud ou Nietzsche, são seres ordinários à espera de obter facilmente um sentido pleno. E, depois, parece-me que lhes falta a modéstia, esse dispositivo, psicológico e moral, que não deixa enlouquecer de desejo e espírito de vingança a grande maioria da população mundial. Mas talvez seja necessário também, devolvendo a famigerada geopolítica a outros, ir à fonte do pensamento europeu (alguns acusar-me-ão imediatamente de eurocentrismo) sobre o ressentimento que alimenta o espírito de vingança, e a vontade de destruição, isto é, a Freud e Nietzsche.

VI Não há tempo para dar conta aqui da complexidade do tema do ressentimento em Nietzsche. Mas em resumo possa dizer que incapaz de esquecer as afrontas (reais ou imaginárias) o homem do ressentimento deixa de ser capaz de agir em favor da vida, da sua e dos outros. Sendo igualmente inapto para seguir a via do “ideal ascético”, olhando para lá desta vida, esperando calmamente pelo Céu; diferentemente, o homem do ressentimento desenvolve em si um brutal espírito de vingança. Que Nietzsche colocou como motor da cultura cristã, valorização extrema do “castigo” como redenção.[1] A moral torna-se, assim, inquisitorial e o sentido da vida passa a estar na morte, isto é, na não-vida, porque se deseja estúpida e infantilmente a Vida. Os terroristas actuais não inovam muito, continuam a reproduzir a fábula de La Fontaine onde a raposa diz que as uvas estão demasiado verdes depois de perceber que não as pode atingir, é a sua impotência em viver nas vidas possíveis do Ocidente (múltiplas e pouco constringentes, cheias de liberdade e, comparadas ao resto do mundo – não a projecções utópicas, importantes porque trazem esperança, mas perigosas quando usadas como critério de comparação acrítico –, de felicidade; é a Europa que os refugiados desejam, não a China, a Rússia ou América Latina, por exemplo), uma impotência da realidade que apela à vingança, lenta mas consistentemente desenvolvida. No seguimento de Nietzsche, Max Scheler fala do auto-envenenamento psicológico que tende a deformar o sentido dos valores, sobressaindo o desejo de vingança, o ódio, a maldade, a inveja, a estultice... No seguimento de Nietzsche e Scheler, Ludwig Klages utiliza a expressão Lebensneid (desejo de vida) para designar a forma mais virulenta do ressentimento, um apetite de Vida que passa pela destruição da riqueza vital de outrem. Num livro sobre Nietzsche (Die psychologischen Errungenschaften Nietzsche, 1926), Klages refere que o sentimento de cansaço ou de esgotamento nietzscheanos não designam especialmente o corpo, mas a inaptidão para o prazer, uma apatia crescente, impotência de envolvimento afectivo, isto é, a exclusão da vida exuberante e feliz. Esta circunstância leva os ressentidos a desligarem-se dos outros e deles próprios, hipertrofiando o sentido da Verdade para se redimirem por estarem fora da vida, e por isso a querem destruir.

VII Outra forma de explicar parte de tudo isto, enquanto tentativa, ensaio (versuch, como dizem os alemãs), é revisitar Freud e os seus Para Além do Princípio do Prazer (Jenseits des Lustprinzips, 1920)e Mal-Estar na Civilização (Das Unbehagen in der Kultur, “cultural” num sentido alargado, próximo do que Lévi-Strauss dirá ao contrapô-la a “natural”), procurando neles explicações para a vontade de destruição que contamina patologicamente os terroristas. Duas notas introdutórias: 1) na relação da psicanálise com a filosofia alemã próxima nos temas e conceitos, nomeadamente Kant, Schopenhauer e Nietzsche, aquela centra-se na especificidade humana, não no Homem enquanto animal, social ou metafísico; e o que a singulariza na sua humanidade é a maneira como se confronta, na vida e no pensamento, ao excesso constitutivo do prazer e do desprazer, a sua relação paradoxal. 2) Enquanto exercício clínico, a psicanálise não procura constituir uma qualquer visão do mundo (Weltanschauung), como dirá Freud em 1932 numa conferência sobre o tema: “Uma Weltanschauung é uma construção intelectual que resolve de maneira homogénea os problemas da nossa existência a partir de uma hipótese que determina tudo, onde, por conseguinte, nenhum problema fica por resolver e o que nos interessa encontra o lugar certo.” Apesar disso, talvez a psicanálise possa, diz ainda Freud, ligar-se a uma Weltanschauung científica e a psicologia individual advenha espontaneamente psicologia social, na medida em que o outro entra nas nossas vidas como cúmplice ou adversário. No entanto, Freud escreveu o Mal-Estar na Civilização em reacção à emergência do regime nazi, que, aliás, constituiu a sua Weltanschauung dando primazia ao natural sobre a cultural. O Mal-Estar é uma reflexão minuciosa que parte de conceitos analíticos para pensar o trágico da condição humana, reflectir sobre o mal-estar intrínseco a toda a civilização, sem o qual, paradoxalmente, não existiria humanidade. Algo que nem a psicanálise consegue resolver, o livro é também sobre os próprios limites desta ciência taumatúrgica, o mais que ela pode é transformar a miséria histérica em infelicidade banal. Uma das teses centrais é a de que para construir uma comunidade na qual se possa viver, o animal humano deve civilizar as suas pulsões (diga-se de passagem que a noção de “pulsão” passa de dois componentes em 1904, a “finalidade” e o “objecto”, para quatro em 1915, acrescentando-lhe o “ímpeto” e a “fonte”; mas no essencial Freud via na pulsão uma excitação de que não podemos fugir, cujo impulso é constante e constringente, seria, além disso, sempre de carácter sexual). A agressividade, traço indestrutível da natureza humana, ameaça constantemente a sociedade, como tinha mostrado em Totem e Tabou, a vida espiritual emerge no humano quando o homem disciplina e sublima a sua animalidade para a erigir em totem. A crueldade individual que desde sempre ameaçou o comunitário remonta ao mito da morte do pai, o pai de uma suposta horda primitiva: “É justamente o assento posto no imperativo ‘não matarás’ que nos dá a certeza que descendemos de uma linha infinitamente longa de assassinos que tinha no sangue o gosto do assassinato, como talvez ainda o tenhamos.”[2] Em Pulsão e Destino das Pulsões defende que o ódio é mais antigo que o amor, provindo da recusa do eu narcísico em dar o predomínio ao mundo exterior.[3] Mas as coisas não são tão simples e aquilo que motivou e motiva o movimento terrorista vive de contradições simultaneamente mais elementares e mais determinantes. Na verdade, a pulsão de morte, amplamente trabalhada por Freud em Para Além do Prazer, está estreitamente ligada ao princípio do prazer, e portanto às pulsões sexuais. A pulsão sexual, a própria essência de todo o movimento pulsional, contém Eros e Thanatos, a vontade de vida, de prazer, e a vontade de morte, de destruição. Diz Freud: antigamente, nos primórdios da humanidade, talvez antes da construção do primeiro totem, “A substância viva tinha ainda a morte fácil […] é verosímil que a substância vivente fosse assim facilmente recriada e morta, até ao dia em que as influências externas determinantes se transformaram, obrigando a substância que ainda sobrevivia a desviar-se cada vez mais do seu curso vital originário e a complicar cada vez mais esses mesmos desvios para atingir o seu objectivo: a morte.” Ora, o que os terroristas de Bruxelas, sósias de todos os outros, avatares da velhíssima humanidade que deseja matar o pai, que procrastina a construção do totem, quiseram foi, por caminhos pouco lineares, morrer. Passar ao inorgânico, num gesto que para eles representa a redenção pela Verdade. Claro que em torno disto houve motivações religiosas e sociais, mas creio que elas são secundárias. Se assim não fosse teriam atacado Igrejas ou Sinagogas e roubado bancos. Preferiram, pelo contrário, centros palpitantes de vida, de vida feliz, escolheram atacar Eros o mais directamente possível.

VIII O que fazer então? Pensar, continuar a pensar, para que não sejamos uma e outra vez surpreendidos por esta violência cega. Agir, continuar a agir, sobretudo de forma micro (as narrativas totais são perniciosas, já o sabemos), recompor alguns pequenos gestos do dia-a-dia, combater os preconceitos elementares que, de um lado e do outro, favorecem a incompreensão. Integrar melhor, claro. Mas também, porque isso não basta, controlar mais eficientemente as fronteiras exteriores à União (se há causas endógenas no jihadismo europeu, ele também se alimenta do caos do Médio Oriente), desenvolver as inteligências policias e judiciais, combater sem hesitação o tráfico de armas, construir uma estratégia comum europeia contra o terrorismo, reforçar o que de bom tem o nosso modelo social, evitar o desenvolvimento de bairros, vilas párias. E continuar democratas, isso é a Europa, único lugar onde, descontando algumas condições secundárias, os cidadãos se governam a si mesmos.

Mas acima de tudo é preciso que não deixemos banalizar a ideia de que o terrorismo veio para ficar. Não veio, não estamos perante um qualquer determinismo. Apesar disto, parece que estes atentados indignaram e entristeceram menos do que os de há pouco tempo em França, eu próprio demorei alguns dias a escrever sobre eles, enquanto nos anteriores reagi guiado por uma raiva discursiva bastante mais acusadora e inconformada, revoltada no sentido camusiano. Este sintoma de inevitabilidade deve, pois, ser combatido, não nos resignemos a que meia-dúzia de incivilizados (no sentido freudiano) definam parte importante do estilo de vida europeu. É por isso que devemos ser anti-terroristas.

 

 

[1] “Der Geist der Rache: meine Freunde, das war bisher der Menschen bestes Nachdenken; und wo Leid war, da sollte immer Strafe sein.” (Assim Falava Zaratustra II, “Von der Erlösung”).

[2] Considerações Actuais Sobre a Guerra e a Morte (Zeigemäßes über Krieg und Tod, 1915).

[3] Publicado em Vorlesungen zur Einführung in die Psychoanalyse, 1910/17.

 

APOCALIPSE

Árvore erguida, jorrada dos teus ossos de granito vivo, eco e forma do sangue, arranhada, ferida pelos quatros ventos e as sete estrelas, árvore de granito, sacudida por todas as correntes de arte, mas que teimas em ser a tua pedra, poema.

Poema de cinco sentidos que todos os dias me arrancas à morte. Ergue-te mais, ainda mais, ainda mais uma vez. Cantemos.

E tu poeta que dizem obscuro os que te lêem e não te escutam, a quem roubaram três vezes a vida e a morte até que as consumaste por tuas mãos, mas continuas a viver dentro de nós, do poema. Quero levar¬-te comigo, erguer¬-te o corpo de terra, da terra, e levar-te comigo como a voz sem preço.

E tu também que iluminaste as palavras na luz mais negra, também tu pedra viva, como aquela pedra que é navio e navega pelo tempo, sujeita a uma bela longevidade que não é sem fim, porque a água cava nela a rota que a leva e que ela traz consigo, mas que mesmo assim perdura quanto pode. Quero levar-te comigo, porque é preciso gritar à beira do abismo, inaudito dom de humanidade, tu, outra voz que só morrerá de viver noutras vozes.

Vós sabeis que a vitória é nossa inimiga e que a sua hedionda face jovial é o nosso pesadelo – nós estamos do lado da derrota. Vós sabeis que não queremos a verdade, porque, hoje, a verdade fala a fria fala da noite da noite, da morte morta, da morte sem vida, sem olhos, nem boca, nem mãos.

Fixámos um destino, um destino pequeno, um destino que cabe nas mãos, uma pequena pedra que ninguém conhece, nem nós, que a descobrimos como um cego descobre a pele funda de cada coisa. Essa pedra é o côncavo, a concha, o aconchego da mão, a pressão na mão, da mão. Não procuramos a verdade, porque somos irmãos das coisas, vivemos com elas, e com elas e por elas respiramos, terra, ar, mar e fogo.

Um raio de luz, o raio de luz que não se consegue separar nas suas fibras. Chega¬ se às coisas, está nas coisas, afeiçoa¬ se a elas, transforma¬ se na sua forma, aquece¬ as.

A verdade existe, deixá-la existir. Hoje, porém, os que a perseguem com todos os seus poderosos instrumentos, são capazes de a encontrar, mas deixaram-na em que estado?

Uma frase obscena não me sai da cabeça: os gloriosos malucos das máquinas voadoras. Mais alto, mais forte, mais rápido. Aí, tão altos, tão fortes, tão rápidos, estais tão fortes, tão altos, tão rápidos, ó arcanjos da morte branca, que não conseguimos sequer imaginar-vos. Por mim, desço, deve ser isso, umas escadas escuras, penetrada de estilhaços, com a cabeça a rebentar de ordens loucas, sirenes, poeira e fogo sem sentido, fugida de mil guerras. Só quero sair daqui, não pedi isto, não encomendei esta comida.

E de novo nessas terras de nomes estranhos se formam os rios humanos de estropiados, com raras palavras coladas aos lábios como beatas apagadas. Voltam as mesmas imagens, que é como se nascessem cá dentro e para nascer me rasgassem de novo a carne como outras tantas farpas de fogo. Chegámos a um ponto em que até a piedade, a compaixão, o riso ou as lágrimas, são matéria de vergonha e estão a mais.

Que raio de reportagem insuportável pode ainda extrair um resto de humanidade destes fragmentos, destas letras que se espalham pelas estradas, quando as bombas dispersaram a fala e as poucas palavras? Por vezes, das janelas altas fico a olhar quem passa cruzando-se com as línguas de aço que saem da bocarra das ruas. Não se ouve nada por detrás das janelas. Estarão a escrever um livro, o livro, lá em baixo?

Civilização, quero ser, quero ser, o único escravo, o único escravo no teu mundo de homens livres. Um escravo ao menos ainda pode aspirar à liberdade, à liberdade, trazê-la, trazê¬ la consigo, escondida, fazer-lhe um abrigo, na sua própria carne. Foram os escravos, os escravos, que a fizeram.

Casas de terra tornando à terra, como os mortos que cavaram a própria cova, fazendo no chão o lugar do corpo, sujos da terra que os iria cobrir. Não tinham o direito de se calar nem de falar. Porque havemos nós de falar ou de nos calar? Mas que falar ou que calar?

Arcanjos da morte, deixais grandes marcas no chão e nos corpos. Vincais o tempo com as marcas que deixais e às ruínas dizeis: "Sois passado". Ficam no ar paredes imperfeitas, a provar que por ali passou o tempo irrevogável, imaturo, o que não foi crescendo nas nossas memórias nem teve tempo de se fundir em nós. Um tempo que não fizemos, nem nos fez. Um que está ali fora, como um exército ocupante. Minutos que a custo expulsamos para uma rua vazia como nós.

Quero crer que uma noite o piloto de um bombardeiro soluçou. Quero crer que uma bomba humana está desfigurada, num hospital, a repetir sem fim: "A minha alma está morta". Palavras irrisórias, tardias, onde se precipita e se esmaga tudo, como num buraco negro. Movimento dos corpos despojados de si, despossuídos, que se retorcem ainda como se estivessem vivos.

Ou melhor, se posso dizer isto, corpos que caem connosco nas cataratas, levados num remoinho sem sentido mas que tem por destino fatal o abismo.

Archeiro, verga o teu arco, prepara as flechas. A violência que é vida é o teu alvo e o teu voo.

Não sou bom, nem santo, nem herói, nem pretendo sê-lo. Apenas estava a instalar-me na casa nova, a arrumar a roupa nos armários e ia abrir a janela por onde entraria a luz. Havia uma janela para a luz entrar. Tinha tudo bem pensado: passaria a mão pelos móveis devagar até me impregnar de móveis, havia tudo de cheirar a lavado até o meu corpo se desfazer no ar e ser ar, as paredes iam aquecer-me com o seu sol.

Subitamente, e não tenho a desculpa de estar numa ilha exótica, nem de haver tornados, a casa ruiu. Fito o focinho estranho do céu que me fita e ocupa todo o espaço, outro abismo para o alto. Quer uma palavra minha, mas tenho de lha comprar, é o dono das palavras. Não posso dizer que são palavras de contrabando, nem que as envenenou. São as mesmas palavras que eu tinha, as mesmíssimas. Quem não as cantou?

"O meu coração que odiava a guerra" - disse o poeta. E quando deixou de a odiar, entrou-lhe dentro o sangue do inimigo, a voz do inimigo, o coração do inimigo, do odiado odioso inimigo. É esse o momento do perigo e temos de passar por ele.

Verga o arco, archeiro, pois também tu vais ter de odiar. Não esqueças, não perdoes, não fraquejes. O teu ódio há-de ser um ódio meticuloso, gelado, mudo. Vais ser imperfeito como estas casas, como estes mutilados, como todos os injustiçados. É urgente, não há tempo para mais. Ergue-te da terra, sujo, cansado, sem amor, morto de sono.

Tu que, ao cruzares uma desconhecida, sentes crescer em ti uma roseira de luz. Tu cujas mãos choram de alegria diante dum gato só por ser gato. Tu que, na bicha da padaria, secretamente sentes a padeira nascer e crescer em ti durante anos, com um amor de vidro transparente.

Vais ter de odiar.

Odeia com um ódio gelado, feroz, eficaz, certeiro, um ódio das mãos, da cabeça, de todos os teus órgãos, como os nenúfares, os jardins de estrelas, o frio das vidraças, a paisagem oca dos desertos, tudo o que tu queiras, mas mantém-no longe do coração, não lhe abras a porta, tem-no como um armário fechado numa cave que nem exista.

A violência, que é vida, seja o teu alvo e o teu voo.

Tu sempre aqui a reviver os mesmos momentos, como quem revira o colarinho gasto duma camisa velha, querendo dar¬ lhe nova vida, mas só para o gastar ainda mais. O mar dança sobre si próprio, de novo e de novo, vai e vem. Dobra-se como um guardanapo de medusas, chama o Inverno, o Verão, a Primavera, o Outono. Pulsa, mas mesmo assim não aprendeu o tempo e tu também não: a onda precisaria de encontrar as ondas antigas, deitar-se longamente sobre elas, sentir o seu molhado. Tactear o rasto delas na areia, bebê-lo.

Tu precisas de sentir um sentimento pesado, denso e líquido como o ferro em fogo ou a lava, a puxar-te para ti, para o fundo. Fundar-te num chão duro para te ergueres outra vez. Seja o ódio esse salto.

Chamam paz à guerra e guerra à paz os que peroram contra a violência.

Um eléctrico na noite leva na barriga as suas esculturas de luz e com elas pedaços de ti, quem sabe a última esperança de beleza. E na janela da frente reflecte¬ se a tua janela, a única iluminada, e tu nela que te fitas a ti próprio, tentando perceber¬ te a ti próprio. Havia uma maneira de fazeres as pazes: estares assim cansado, cansado como estás. Mas quanto tempo podes estar cansado, com essas facas de fogo frio que remexem em ti?

Vê, vê como eu fui apanhado com a lista das compras, ou meio nu, ou a recitar palavras incompreensíveis no meio das bestas joviais armadas. Escreve isto, por favor. Escreve: andou a aprender a lentidão dos gestos, passava horas, semanas e anos a ver surgir o mundo das mãos, como um fruto. Era como uma reserva, um verdadeiro pudor. Escreve, escreve. Não te cales. Era como um recato, um autêntico pudor. Suspendia o gesto, sem o parar, apenas um esboço de carícia que ia ser, tinha tempo, tinha todo o tempo, tinha o tempo. Era tudo fácil e preguiçoso. Não tocava nas coisas, elas nasciam-lhe como um fruto. Elas nasciam-lhe como um fruto.

Isso, isso, escreve. Uma pétala nos lábios, uma pétala nos olhos, uma nuvem que assoa a montanha. Uma mulher, uns olhos de vidro vivo. Vós, escreve, escreve, vós roubastes¬ nos o dom mais precioso, mas virá uma inundação, um animal grande como o mundo, que é o mundo. O céu ficará escuro, porque nos roubastes o que era mais nosso, o que não se pode possuir. Hᬠde vir um mundo animal com uma voz rouca e profunda e caninos de fogo.

Roubastes¬ nos essa pétala nos lábios e nos olhos e o vidro vivo que nos consolava com a sua brisa loura quando lhe dava o vento quente. Um grande deserto sai dos vossos peitos e derrama¬ se por todo o lado. Mas os rios vão entrar nas cidades, crescerá a bela erva selvagem nos prédios abandonados, assim o quisestes.

A água e o fogo serão o vosso desastre. E quando não houver mais nada, apagarão o vosso nome até à quinta geração, mas haveis de sobreviver também vazios nesse mundo vazio, sem sequer o humano conforto da dor.