Quando as coisas acontecem

Quando as coisas acontecem, nunca é bom perguntar “porque é que aconteceram?”. Concentrem-se na expressão “as coisas”. As coisas não é bem “tudo”, pois não?...

Bom, se perderam o fio do meu raciocínio, há sempre que recordar a história de uma certa menina que disse, olha lá, como é que vais sair do labirinto sem um fio?...

É claro que a maioria das meninas nunca se lembraria disso. Ela lembrou-se. Como recompensa, foi traída. Estranham os factos?... Só se não pertencerem à elite. Nesse caso, avancem para a alínea b).

b) Não sei quem é Ariadne. Conto-vos por palavras minhas: havia um homem muito bonito, um actor famoso, que decidiu que queria entrar num sítio difícil. Ela, claramente apaixonada, lembrou-se do óbvio. Ele queria tê-la na sua cama. Anuiu. Foi ao sítio difícil, por sugestão dela, e por causa dela (uma pista), conseguiu voltar. No fim, já estava um bocado farto, por isso disse: adeus! Ela não ouviu, e por isso sentiu-se traída. Quem achar que isto é uma versão simplista da história, avance para alínea a)

a) Nunca perecebeu(este) porque é que alínea a) se chama “alínea” e não simplesmente “línea”? Avance para a alínea c)

c) Alíena c). Quando na antiguidade alguém dizia: estou a ler da linha c), dizia, em latim, porque todos na antiguidade falavam latim, “a linea c”. É claro que nessa altura “c” soava a “quê?”, o que podia ser confuso.

Passando todos estes prolegómenos, podem-se estar a perguntar o que é exactamente “acontecer”?

Deixo-vos com este pequeno enigma: quem são vocês?... Se por um instante pensarem que nunca haverão de morrer, estão dentro da linha corrente e coerente de pensamento. Se por um instante duvidarem, asseguro-vos: estão fodidos. Vão morrer.

Por isso, se acontecer alguma coisa na vossa vida, não se esqueçam que “coisas” é muito mais grave do que acontecer. Acontecer, toda a gente acontece. “Coisar” é que nem por isso.

Com os melhores cumprimentos, e esperando resposta em relação ao Anexo B,

Pedro de Braga Falcão

A nudez de Scarlett Johansson com uma nota de Byung-Chul Han

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A Maja Desnuda de Goya, c. 1870/80, inaugura os nus femininos reais, foi uma das primeiras vezes em que o púbis aparece retratado, ao mesmo tempo que o olhar da personagem nos confronta e nos desarma, obrigando-nos a vê-la como um ser histórico em vez de mitológico. Note-se, todavia, que o seio direito está fora do lugar, desafiando claramente as leis da gravidade. Goya sacrificou o realismo da anatomia à, creio, erotização da personagem, o que comprova o fascínio do masculino por esses órgãos que servem a vida.

O texto infra foi escrito em 2011 (introduzi pequenas alterações), ano do acontecimento (suposto roubo e difusão de fotografias íntimas do telemóvel da actriz Scarlett Johansson), revisito-o agora a pretexto de um livro recente de Byung-Chul Han sobre a Salvação pelo Belo (espero recenseá-lo em breve). Uma das teses do filósofo é a do desaparecimento do belo, porque tudo se tornou liso (“O liso é o fio de [Ariadne] da nossa época. Ele liga as esculturas de Jeff Koons, o Iphone e a depilação brasileira”), não há dobras, físicas ou metafísicas, estrias onde alojar a dúvida ou a dor, tudo acontece numa tessitura implacavelmente dócil e fluida, corpos depilados e obras de arte sem qualquer obscuridade ou indecisão, como as de Jeff Koons, desprovidas de profundidade (“Face à sua arte, nenhuma interpretação, nenhum juízo, nenhuma hermenêutica, nenhuma reflexão, nenhum pensamento é necessário”). Ainda relacionado com as imagens de Johansson, diz Byung-Chul Han: “Face à vacuidade interna, o sujeito da selfie tenta, em vão, fazer-se engraçado. As selfies são formas vazias de si. Elas reproduzem o vazio. […] Trata-se de um narcisismo negativo.” Vejamos então o que pensava e agora se actualizou.

“O Jornal El País tem um artigo muito interessante de Vicente Verdú com o título “Scarlett y el púbis”. Relata o pretenso roubo das fotografias do telemóvel de Scarlett Johansson. O artigo desenvolve-se a partir da hipótese desse roubo ter sido encenado. O articulista estranha que tirando fotografias a si mesma, liberta da roupa protectora (que tantas vezes favorece o erotismo), Johansson as tivesse deixado num objecto que facilmente se perde. Já o acto narcísico das auto-fotografias [em 2011, o termo selfie não estava na moda], claramente atravessadas por energias libidinosas, é para ele compreensível, porque essa é a quase-condição para ser o que é: objecto de desejo e fonte de inspiração estética.

Surpreende-o também que tudo pareça tão escrupulosamente encenado, ao ponto de não o ser. Isto é, com a inflação actual de imagens que expõem o corpo nu esculpido em make up (tangível ou digital), um que apareça desleixadamente natural aumenta tremendamente a carga erótica. Além dessa naturalidade, Johansson aparece em lugares e com posses onde os homens normais costumam viver a realidade ou as fantasias sexuais, dando assim verosimilhança ao “sexo óptico” que as fotografias transportam.

Verdú termina dizendo: “Scarlett Johansson, ou qualquer outra com estatuto idêntico, não pode conformar-se em oferecer ao voyeur contemporâneo o mesmo aborrecido top-less de sempre, ou a insignificante morfologia do seu sexo, mas um cenário onde passeia, adormece, pensa, se depila.” Isto é, Johansson “oferece-se” num cenário realista que parece acessível ao “comum dos mortais”. Johansson tem, pois, de convidar-nos para a sua casa e desenhar poses que fazem de cada um de nós o seu voyeur preferido. Abertas a todo o mundo através da internet, estas fotografias dão-se, paradoxalmente, como únicas, autografadas pelos gestos e cenários íntimos, a cada um dos espectadores.

 

Um ditador que não é um ditador

Um ditador que não é ditador não pode usar bigode. Os bigodes ficam sempre mal quando vem o Carnaval, sendo preciso cofiá-los em frente da televisão, o que do ponto de vista da comunicação é dois, e não um. Três nunca seria. Um ditador também não pode fumar porque estraga os dentes, e além disso pode provocar várias doenças, nomeadamente a doença-do-charuto ou a doença-do-cachimbo, que grassa por zonas em que não há monarquias activas. Roterdão, por exemplo, seria uma terra em que tal acontecimento não sucederia.

Um ditador que não é ditador não diz não às liberdades. Fecha-as, come-as, tranca-as, fode-as, e eventualmente torna-as maiores quando os que delas precisavam têm uma larva no olho esquerdo. No direito, não, porque só há ditadores que provoquem mortes no lado esquerdo, o que tem a ver com a forma como o cérebro funciona (hemisfério esquerdo, mão direita, vice-versa).

Um ditador que não é ditador não ordena: sugere, indica, estimula, faz pensar, faz evoluir, faz caminhar. Por exemplo: se um ditador que não é ditador quer que um grande número de pessoas, pelo menos mais de duas mil, pense que ninguém pode contar os grãos de um metro quadrado de areia, sugere que se conte uma praia inteira. Se a alguém não interessar a questão, melhor. Se alguém defende que um metro quadrado de areia até pode ser eventualmente contável, a praia sempre foi o sítio de eleição para cadáveres que dão à costa. Pensando bem, “dar à costa” é uma expressão demasiado abusiva, uma vez que quem já está morto não pode dar coisíssima nenhuma. Há expressões infelizes. O que nos leva à seguinte questão (aqui faço um parágrafo ridículo, mas que me permite manter o ritmo do texto).

Um ditador que não é ditador pode morrer. Os ditadores mesmo ditadores não morrem. Também não caem da cadeira. Também não morrem de doença prolongada. Também não morrem de velhice. São fuzilados, incinerados, decapitados, empalados, desmembrados, envenenados ou asfixiados. Entretanto ocorreu-me que não sei de nenhum ditador que tenha sido crucificado: são ditadores, não são mártires, e há uma espécie de acordo tácito acerca de como uma morte excruciante deve ocorrer entre os ditadores, a crucificação seria demasiado simbólica para seres desta natureza. Aliás, no caso dos ditadores mesmo ditadores, nem a história os absolveu ou há-de absolver, no sentido em que a história ainda vive no século passado, e aceita a pena de morte. Alguém devia ter uma conversa com ela, explicando-lhe que isto da morte já é uma coisa demasiado batida, já se fez muitas vezes, já está feita, já chega. Se alguém tem o poder de acabar com este desagradável hábito é a história, uma vez que ela é uma construção inteiramente humana, e não sendo capaz de alterar a realidade pode deixar pistas para um mundo pós-nuclear em que extra-terrestres descobririam nos nossos anais que éramos imortais. Só temos todos de morrer entretanto e não deixar vestígio disso, mas isso faz-se, é fazível, é exequível.

            Um ditador que não é ditador tem um ideal, mas não uma utopia. As utopias são irrealizáveis, como por exemplo a de um certo indivíduo que decidiu escrever em latim quando dominava perfeitamente o inglês (que palerma!). Escreveu ele que seria possível que mulheres e homens tivessem os mesmos direitos. Que absurdo. Paspalho utópico. Ou aquele outro – lembras-te da minha última carta, meu amor? – que ousou falar em parábolas: “amem-se uns aos outros”. Um ditador que não é ditador não tem utopias. Tem i-d-e-a-i-s. Ideais são ideias muito vincadas que todos devem partilhar, mesmo que não queiram, porque são os que um determinado conjunto de indivíduos estipulou como correctos e revolucionários. Um ditador que não é ditador também sabe que os ideais facilmente se tornam em ideias, e que as ideias são mais fáceis de manter do que os ideais. No fundo, é como um cheque ou uma mala cheia de dinheiro. Eu prefiro a mala. Mas sou notoriamente conhecido pela minha pouca motivação para o idealismo. Estou a brincar. Não sou notoriamente conhecido por nada. Até porque me irritam os pleonasmos.

            Uma coisa em que um ditador que não é ditador é muito bom é em pensar, de uma forma geral, muito melhor do que os outros. Por isso é que se pode dar ao luxo de matar uns quantos, porque estão a pensar mal. Convenhamos que quem pensa mal pode prejudicar os ideais, e por isso mais vale um fuzilamento provisório, algo reversível após a morte. A opção por fuzilamentos definitivos é típica dos ditadores efectivos, e não dos que não são ditadores. Um fuzilamento definitivo é típico de uma ditadura; um fuzilamento provisório é típico de uma não-ditadura. Se virmos bem, dói muito menos morrer provisoriamente do que definitivamente. Que o digam as encarnações todas de Vishnu, que provavelmente nunca se poderão ter conhecido do ponto de vista teológico, não pelo menos na nossa concepção de tempo, que continua a ser demasiado humana. Uma nova ideia para mudar na história.

            Um ditador que não é ditador também tem um amor geral pelo “povo”. Aqui contrasta flagrantemente com um ditador de facto, que tem um amor geral pelo “povo”. A diferença está em que enquanto um ama o povo na sua generalidade e não sua particularidade, o outro também. Apenas uma coisa partilham, o ditador e o não ditador, é que quando alguém prova que não é do povo, mesmo que seja, é porque está contra o povo, e pode ser desmembrado ou electrocutado. Por exemplo: o “povo” gosta de batatas. Mesmo que nunca ninguém tenha conhecido alguém chamado Povo (e só uma pessoa tomada individualmente é que têm esta estúpida tendência para a identidade de gosto, e mesmo isso é discutível), sabemos que o “povo” gosta de batatas. Fulano de tal é do povo. Talvez porque comesse batatas, porque não havia outra coisa para comer. Entretanto, descobre que adora inhames, e tenta convencer os outros que as batatas são uma merda, mesmo que de facto as batatas sejam melhores. Não pode. Já não é do povo. Pode-se fuzilar, limitar ou eventualmente sodomizar, em casos extremos. Um não ditador fará tudo isso provisoriamente, claro está.

Uma última palavra acerca dos círculos. Cuidado com eles. Eles nunca saem do mesmo lugar. Isso, quer um ditador, quer um não ditador, sabem bem.    

Elogio dos críticos

0- Sempre gostei de críticos (nunca, que me lembre, lhes atirei setas), antigamente porque me guiavam no labirinto cinematográfico, nem sempre bem (a vida é acrobacia, certo?), mas eu acreditava neles e tudo se passava lindamente. Recentemente, porque alguns são uma caixa de ressonância inteligente das obras (ou produtos), e outros porque rasteiram oportunamente os acontecimentos-slogan que conquistaram parte da realidade pós-moderna, contribuindo para o “melhor dos mundos possíveis”. Além disso, o seu défice de senso comum afasta-os aristocraticamente da realidade prosaica, e quando são atacados podem viver a derrota como um belo fatalismo.

1- Um crítico deve estar para lá do autor (figura evanescente que apesar do enfraquecimento ontológico e político ressuscita constantemente para nos lembrar de que nem tudo o que se escreve é ou vertido directamente por um demiurgo ou o resultado sem porquê da escrita automática, alguns autores continuam a ganhar a imortalidade sem necessidade de morrer). Um crítico começa por perceber o texto (embora este “perceber” tenha pano para centenas de mangas), e a partir dele chega ao autor (mesmo quando não quer, neste caso o autor assombra-o). Desta forma, o crítico começa a sua aventura hermenêutica preso a um objecto que o precede, sem contencioso, ele entra na órbita da coisa que quer celebrar (ou aniquilar, embora os bons críticos raramente andem armados). Começa assim, mas depois acelera e vinga-se, esteticamente no mundo da arte, daquela precedência. Se o texto nasce primeiro, o crítico apanha-o rapidamente e cerca-o, às vezes soprando-lhe uma vitalidade que provoca rodopios, lançando-o em espiral até ao escaparate da glória, noutras ocasiões envolve-o num “abraço de urso”, ou ainda escalpeliza-o para revelar, com fanfarras às vezes, que a pilosidade craniana esconde sempre uma careca. Um crítico está, pois, feito para o predomínio, sem o esplendor, contudo, dos autores, certos autores, claro. De uma forma ou de outra, ele só subsiste no hospedeiro, mesmo quando o abandona, reeditando docemente a vitória de Pirro.

2- Agora, a sério (ou: “agora a sério”?). Sem os críticos profissionais (alguns até não são remunerados, mas evitemos mais explicações) o mundo da arte estaria menos monitorizado racionalmente, tudo, ou quase, ficaria nas mãos dos espectadores, que penso não serem especialmente lúcidos, sobretudo nos horizontes restritos de Portugal, onde os juízos de gosto se deixam contaminar pela piedade e pela vingança, onde, fora isso, o isomorfismo é a principal condição de possibilidade do prazer estético (no máximo, gosta-se do que se compreende à primeira; como acolher então qualquer tipo de vanguardismo, a essência da arte?). Não, o espectador não é melhor do que o crítico, muitas vezes, aliás, não passa de um crítico frustrado. Não o é, em primeiro lugar, porque geralmente não conhece tão bem o ecossistema onde a obra emerge e vive; depois, porque não desenvolveu a vertigem de crítico, isto é, um atirar-se à obra sem saber se regressa vivo dela, não se trata de catarse (salvífica, como sabemos), antes da continuação do velho impulso de Empédocles, lançando-se para o interior do vulcão do Monte Etna apenas porque queria saber o que se passava lá dentro; em terceiro lugar, falta ao espectador a visão periférica do crítico, o objecto da crítica está sempre acompanhado por estacas que o mantêm de pé (história, influências, omissões, projecções...), a análise de um filme exige conhecer-se quase toda a história do cinema, por exemplo; por último, um crítico deve ter vocabulário crítico, não tanto como o pletórico conceptualismo de António Guerreiro, mas o suficiente para estar dentro do tom discursivo da obra que aborda.

3- Se me permitem uma conclusão simples: o crítico pode ser um padre que baptiza ou excomunga a obra, mas no essencial ele ajuda o espectador a compreendê-la melhor, e nenhum aspira, apesar de aqui se utilizar alguma terminologia teológica, a substituir a omnisciência divina.

Post scriptum: 

a) Depois de escrever este elogio, li numa crítica de vinhos (sempre me fascinaram as notas de provas vinícolas, poemas aplicados, com papilas gustativas e castas à mistura), feita por Manuel Carvalho e Pedro Garcias para um suplemento do Jornal Público (Fugas), de 26/11/2016, esta bela e precisa nota de intenções: “A crítica que fazemos na Fugas cumpre exactamente esse objectivo de mediação. Como toda a crítica, é subjectiva e vincula apenas quem a faz. Vale o que vale. As notas que atribuímos correspondem a uma avaliação individual, sempre influenciada pelo nosso gosto, e não têm a veleidade de ser definitivas. Na verdade, devem ser sempre relativizadas.”

b) Sei que a minha tese luta contra as reacções virulentas do estruturalismo da década de 60 (prolongadas na actualidade nos campos mais analíticos) ao reino da interpretação. Susan Sontag, estilo heroína pirómana, atacou este reino que, no seu entendimento, nada mais era do que o ressentimento dos medíocres e impotentes contra os génios artísticos. Propunha, pois, substituir a hermenêutica (arma dos imbecis), por um “erotismo artístico”, cujo objectivo seria revelar a obra em si e não o seu sentido, sempre contaminado pela interpretação, diz em “Against Interpretation”: “In place of a hermeneutics we need an erotic of art.” Com isto, os críticos seriam banidos da civilização (e os autores escondidos atrás das obras), substituídos por apontadores neutros (deliramos, bem sei) que iluminariam as zonas nevrálgicas das peças para guiarem os espectadores até ao óbvio das forças espasmódicas que compõem o belo e a verdade.

 

Três diplomas

Havia um homem muito grande, de seu nome L, que tinha uma letra em vez de nome. Isso causava-lhe muita impressão, apesar de não se chamar Luís nem coisa que o valha.

Certo dia, decidiu que seria bom apresentar-se a alguém. Ainda hoje não sabemos porquê, mas há algo em todos nós que se quer apresentar sem distrações, ou com variadas, consoante a época do ano. No Natal, por exemplo, fica bem um copo de vinho à lareira.

L quis candidatar-se.

Como em qualquer candidatura, é preciso saber ao que se vai, ainda que tal pormenor seja supérfluo, ou mesmo desnecessário. No caso de L veio a comprovar-se que era desnecessário.

O anúncio do jornal dizia: precisa-se de alguém cuja função não pode ser especificada num jornal comum, mas quando muito num anexo do diário da república, querido livro cujas entradas começam sempre assim: “querido diário, escrevo-te para te dizer que hoje me apaixonei...”. Toda a gente sabe que o diário da república está repleto de paixões bastante correspondidas. Entretanto percebi que em vez de entradas podia ter escrito entranhas. Mas agora já está demasiado longe, a palavra, para ser corrigida. Antigamente não, a gente rasurava e depois editava. Agora não.

L continuava a querer candidatar-se.

Ninguém lhe exigia outra coisa senão ser L, porque sempre souberam quem ele era, porque tinha barba e bigode e não dizia erros como “haviam três homens” ou “a gente vamos à praia”, mesmo que em ambas as situações o mais grave ser o facto real de apenas um homem constar na situação reportada, e não quatro, e ninguém ter ido à praia naquele dia por estar bastante frio e ainda mais chuva. Coloca-se a hipótese de talvez, eventualmente, por acaso, alguém ter ido à praia, mas L nunca iria com a sua “gente” naquele dia, porque estava naquilo a que os seus chamavam de “comício”(?).

L queria muito aquele lugar.

Pensou: “seria melhor ter um diploma que assegure que eu afinal posso ter um diploma. Aliás, eu não digo “a gente vamos”. As duas coisas, conjugadas, farão de mim presidente de qualquer coisa, depois de cessar o cargo público a que me candidato”.

L queria mesmo muito aquele lugar. Já lhe sentia o cheiro.

Entretanto, ninguém lhe disse que estava na essência do diploma, já desde os seus famosos tempos da antiguidade, a necessidade de existir. Ou seja, mesmo que fossem cinco palavras escarafunchadas a dizer: “fulano de tal é carpinteiro” (por fulano de tal entende-se toda e qualquer pessoa, e não um nome, o que seria estranho pois naturalmente escrever-se-ia Fulano de Tal, com letras maiúsculas), essas cinco palavras precisavam mesmo de existir, num papel qualquer. A diferência é que antigamente se dobravam os diplomas, e agora penduram-se na parede. Quando existem. É difícil enrolar o vazio, que o digam os ateus ou os estudantes de yoga.

Na altura, L frequentava uma cadeira de Mecânica Geral na Grande Universidade do Mundo, cujo acrónimo era demasiado ridículo para não ser inglês. Era um curso simples, em que se ensinava os rudimentos da roda, sem qualquer tipo de perspectiva histórica, até porque “perspectiva” se deve escrever sem “c”. Grande parte dos alunos chegava a perceber o mecanismo da roda, mas infelizmente L andava ocupado com outros assuntos, nomeadamente em correr o país para se tornar visível aos olhos de um determinado indivíduo para quem agora queria trabalhar mediante concurso público, e, portanto, e por inerência, fechado ao público, porque o público, o vulgo, a multidão, a turba não conhece anexos do tal diário que começam sempre por “querido diário, escrevo-te para te dizer que hoje me apaixonei...”

Uma ideia peregrina iluminou o rosto de L. E se pudesse dizer que era especialista em mecânica geral? A ideia era sedutora. Toda a gente gosta de um bom mecanista geral no seu departamento, especialmente porque a roda já foi inventada, e em qualquer ministério que se preze de ter o nome de ministério há computadores que não precisam de um mecanista geral, mas apenas de alguém com capacidade de apresentar rapidamente uma solução para o facto de “a opinião pública” considerar que determinada roda deixou de funcionar, ou deixou de ser roda, ou passou a ser um círculo unidimensional. Ser mecanista geral era perfeito. Bem vistas as coisas, chegou a ir várias vezes ao curso de Mecânica Geral e correu bem. Sim, percebeu tudo o que o professor dissera, não os princípios matemáticos e físicos subjacentes, claro que não, percebeu aquilo que era mais importante, a roda roda, pronto, que muito mais haverá a dizer sobre isso? A pergunta fora feita a um determinado membro ilustre do partido, que anuiu: então frequentaste (nunca diria “frequentastes”) a GUM, eu também por lá andei, conheceste (nunca diria “conhecestes”) o Eng.º Teles, sim, claro que sim, grande homem, exigente, claro, Análise Algorítmica, difícil, muito difícil, fiz, sim, fiz, tu também, claro, claro, bons tempos, como é que te chamas, L?, ah, claro, já ouvi falar de ti, bom trabalho, tens trabalhado bem, tens mostrado vontade, ambição, vamos ver, vamos ver, vamos ver.

L cada vez mais queria o seu diploma, a tal ponto que passou a ter não um, mas dois.

Pensou, já que tenho um diploma, mais vale ter outro. Sou mecanista geral, mas facilmente podia ser economicista, bastava um dia ter frequentado uma cadeira de Análise Geral numa Universidade Económica, há muitas, tantas quanto estrelas no céu. No fundo, será assim tão complicado? Com estes dois diplomas o lugar é meu.

Entetanto, lembrou-se de que talvez não fosse correcto ter três diplomas: dois era suficiente. Três “dava nas vistas”. Dois não, é mais verosímil do que um. Um pode ser mentira. Toda a gente tem um só.  Ninguém mente sobre dois diplomas. Não é pensável do ponto estratégico.

Candidatou-se.

O anexo publicou o resultado: L, mecanista geral e economicista, secretário adjunto chefe do ministério das pescas.

E foram felizes para sempre.

Despeço-me com amizade,

Pedro Braga Falcão