Notas sobre Friedrich Nietzsche (o caminhante inactual)

Nietzsche por Edvard Munch

Nietzsche por Edvard Munch

Quem pensou o mais profundo, ama o mais vivo.” (Hölderlin, Sócrates e Alcibíades)

Há um toque metafísico no “inactual” de Nietzsche (conceito que ganhou lastro com a publicação das quatro Inactuais, Unzeitgemäße Betrachtungen, 1873-1876), ou no mínimo uma recusa em permanecer refém do tempo capturado pelas ninharias do dia-a-dia (ser inactual é pôr em perspectiva o presente, confrontando-o com passado e o futuro, agarrando um qualquer tipo de eternidade). Mas, leitores de actualidades, onde podemos encontrar hoje protecção contra o dilúvio de informações tóxicas despejadas sobre o mundo (e não são apenas as fake news)?

Separar-se do ruído de massas histriónico para higienizar a mente (logoterapia), quem consegue pensar sacudido por rajadas de discursos irrelevantes, axiologicamente igualitários, onde o bom se perde na amálgama quantitativa que nivela e atrofia? O meu reino por uma comunicação viral, fama efémera, sem o tom iconoclasta que lhe imprimiu Andy Warhol. Liturgia para massas. Nietzsche criticou o igualitarismo rousseauniano, ainda por cima falso (julgava-se meio-génio), por ter destruído as boas hierarquias: valores, gostos, pensamentos... ficaram dispostos horizontalmente, dinamitando o vislumbre de uma civilização adequada aos “espíritos livres”, cheia de embriaguez trágica, contendo sempre mais vida do que morte. Uma cosmologia fisiológica. Uma teodiceia do corpo e da Terra. Um fatalismo não ataráxico e resignado, amor fati dionisíaco e alegre. É por isso que o solitário de Sils-Maria preferia Voltaire, a quem dedicou Humano, Demasiado Humano (1878-1880), a Rousseau (apesar de se encontrarem no gosto pela solidão, única condição de exaltação pessoal, e nas caminhadas vitais). Voltaire tinha uma nobreza de espírito (“noblesse d’esprit”), um estilo refinado, gosto linguístico, mas também bom humor (para Nietzsche mais importante do que se pensa) e recusava visceralmente as crenças religiosas, reino das boas consciência estupidificadas.

O estilo aforístico nietzschiano revolta-se contra o pensamento pesado e longo, fastidioso, empenhado em fabricar demonstrações tão completas que o leitor, ainda a meio do texto, sente que já pode morrer. Pelo contrário, ele exige um leitor activo e inventor. Reafirmar este tipo de pensamento parece uma pequena nota de rodapé na história da filosofia. Mas, na verdade, a mim afigura-se-me mais como um milagre dionisíaco, encontrar um pensamento simultaneamente tão lúcido, preciso, rico, intenso, veloz e irónico... é uma bênção rara, raríssima. E depois, mesmo quando tudo lhe parece irremediável, combate o niilismo que preenche cada bolsa de ar do Ocidente (ele próprio se considera niilista), hoje e sempre, pelo menos desde que Sócrates justapôs a verdade e o bem, secundado depois pela devoção quase erótica do cristianismo pelos mais fracos (que finalmente, pelo número, se tornaram os mais fortes: “É preciso amar sempre os fortes contra os fracos”, “Anti-Darwin”, Fragmento Póstumo, 1888). Nietzsche nunca se cansou de compor hinos à vida, sem cariz metafísico, à vontade de viver, que é sempre auto-superação, de cada um dos impulsos orgânicos. Contra a ascese cristã, escreveu milhares de páginas sobre uma espécie de religião da vida onde se louva sem reservas a Terra. Zaratustra é o profeta de outro homem e de outro tempo, o sobre-homem e o eterno retorno, que vão habitar o novo mundo sem Deus, isto é, sem qualquer cântico que chame permanentemente o Além e disponha uma tábua de valores que impõe uma consciência triste. É a vitória da vida (como vontade de potência, não há nele nem metafísica, já o disse, nem um biologismo redutor, tanto mais que Prometeu, Édipo ou Antígona venceram, afirmaram-se pelo aniquilamento exemplar, a vontade de potência sobreviveu à morte biológica, e continua a arrepiar-nos sempre que os lemos ou vemos representados, bastando para isso proteger-se do “dilúvio” que referi acima).

Como pôde, repito, acontecer este milagre? Hipótese: porque Nietzsche deixou a Universidade, porque era um bom filólogo e porque tinha um pensamento temerário, intrépido e lúcido. Haveria, pois, de denunciar os próprios limites da razão (sem o semi-deus ex machina kantiano), percebendo desde muito cedo que só conseguia pensar bem enquanto caminhava, decretando que o corpo passaria a ser a “grande razão” (sem hipertrofia racional, defendendo continuamente um processo diferente de produzir verdades pelo jogo dos instintos, o logos nietzschiano nunca apaga o enigmático), ele foi o pensador mais cintilante do século xix, um fluxo de raios contra o torpor crítico. Descobrindo como o niilismo percorre, depois de Sócrates, toda a história da humanidade, que há outros valores além dos velhos e viciados bem e mal, compaixão, humildade... e que o homem vai desaparecer para que nasça o sobre-homem, solitário (por isso é inconcebível colocar Nietzsche no fascismo de massas nazi) e legislador, não um fazedor de leis para os outros, mas um ser reservado que se vai compondo a si mesmo, ciente das linhas de fuga que não o deixam petrificar, mantendo vivo o trabalho de se tornar aquilo que é (o célebre “torna-te aquilo que és”).

Nietzsche nunca quis, e esta é uma das críticas mais frequentes, prolongar as queixas dos oprimidos (Guy Debord: “ceux qui sont toujours prêts à prolonger la plainte des opprimés”). Detestava, sem remissão, os predicadores da morte, que medram no reino da vitimização. Instigadores da escravatura voluntária (“antes querer o nada, do que nada querer”, Para a Genealogia da Moral, III), a vida vivida como desvanecimento. Por isso, a questão irremissível que se levanta quando se lê Nietzsche com alguma lentidão (a boa lentidão filológica, ruminar paciente) é acerca do nosso estilo de vida. Nietzsche não saiu dessa interrogação durante, pelo menos, os últimos anos da década de 80, tudo o que pensou e escreveu nesse tempo prendeu-se com a pergunta “que faço eu da minha vida?” Ecce Homo, autobiografia evangélica (um evangelho pagão, “é preciso renaturalizar o homem!”, diz o autor frequentemente), celebração de si mesmo, concluído imediatamente antes de cair na loucura, é um auto-elogio sincero (não enuncia sobranceria ou confusão mental), um “valeu a pena viver esta vida!” Tanto que, enquanto mestre do tempo do eterno retorno, “quero vê-la retornar infinitamente”. Relembremos que nos últimos dez anos de vida mental activa, Nietzsche caminha quase todos os dias, várias horas, ora nos Alpes, ora em Turim, ora nos montes por detrás de Nice, ora... Nietzsche é um caminhante obsessivo (“a minha única forma de existência possível – fazer caminhadas”, carta a Peter Gast, 1879). É isso que lhe permite escrever as grandes obras da década de 80 (Gaia Ciência, Zaratustra, Para Além Bem e Mal, Anticristo, Crepúsculo dos Ídolos, Ecce Homo, e um sem número de notas que, com toda a certeza, dariam lugar a mais um livro, não, noutros termos, à montagem pérfida que a irmã fez de A Vontade de Potência, mas a um onde a arte viesse conjurar todo o niilismo mortífero, fechando assim o círculo que iniciou em O Nascimento da Tragédia, 1872). Outra forma de propor uma teodiceia dionisíaca, encenada a partir das velhas tragédias gregas (Ésquilo e Sófocles), conjugando o vital e o sublime. Escreve enquanto caminha, escreve a toda a hora, em qualquer lugar, mas sobretudo quando lança uma perna atrás da outra, músculos retesados, porque “só os pensamentos que temos enquanto caminhamos valem alguma coisa” (Crepúsculo dos Ídolos, 1888). Escreve linhas extraordinárias e ninguém percebe, a indiferença é quase total, “alguns nascem póstumos”. Está tudo ocupado a produzir moraleira, tricotando o bem e o mal para os últimos homens (a acreditar em George Steiner, George Orwell quis chamar a 1984 O Último Homem na Europa). Enquanto ele revela o fundamental para termos uma vida que valha a pena, uma vida terrena, agarrada à Terra, mas sem raízes, para podermos exercer um nomadismo vital, para, como o “grego dionisíaco, querermos a verdade da natureza em toda a sua pujança.” (Nascimento da Tragédia). Para nos esquivarmos das setas envenenadas (com o pior dos venenos: o anodismo) que caiem sobre o presente.

O veneno do nacionalismo

George Steiner

George Steiner

Nunca percebi (dentro da inteligibilidade que envolve o nosso tempo) a palavra (ou frase) de ordem que coloca a “soberania nacional” como o desígnio máximo de uma comunidade, sinto sempre que há um oportunismo revivalista invocando o Leviathan hobbesiano ou a Vontade Geral rousseauniana (correspondendo vagamente à direita e à esquerda políticas, respectivamente), que como sabemos são conceitos, ou signos mais difusos, que acabaram por aquartelar-se numa performatividade dramatúrgica em vez de traçarem com a clareza possível os elementos que configuram o sentido de pertença a uma população que originalmente parecia atomizada pelo vírus do egoísmo.

Sei bem que é uma frase para cartazes, que se insinuam em cada rotunda com uma evidência inquestionável, poupa reflexão e alimenta a pequena veia nacionalista. Mas é também reaccionária e perigosamente beligerante, lógica tribal e ódio/medo do estrangeiro (o conhecido contra o estranho e o medo de perder recursos, no celebrado “vêm roubar-nos os empregos!”).

Como manifesto anti-nacionalista, aconselho este texto de George Steiner, escrito na longínqua década de 70 do século xx (provando que a actualidade revisita o passado mais vezes do que se pensa), um ensaio do The New Yorker traduzido para português pela Gradiva (George Steiner, The New Yorker, trad. Joana Pedroso Correira e Miguel Serras Pereira, 2010).

O nacionalismo é o veneno da história do nosso tempo. Nada é mais brutalmente absurdo do que a tendência por parte dos seres humanos de se atirarem às chamas ou de se matarem uns aos outros em nome da nacionalidade ou movidos pelo sortilégio pueril de uma bandeira. A cidadania é um pacto bilateral que está, ou deveria estar, sempre sujeito a um exame crítico, sendo, se necessário, revogável. Não há cidade humana pela qual valha a pena incorrer-se numa grande injustiça ou numa grande mentira. A morte de Sócrates pesa mais do que a sobrevivência de Atenas. Nada enobrece tanto a história de França como a vontade que levou franceses a raiarem a queda colectiva no abismo, a enfraquecerem radicalmente os laços da nacionalidade (como sucedeu, na realidade), por ocasião do caso Dreyfus. […] A pátria de cada um de nós é a parcela de espaço comum e corrente – pode ser um quarto de hotel ou um banco no parque mais próximo – que a cerrada vigilância e perseguição dos modernos regimes burocráticos ocidentais ou orientais ainda consentem ao nosso trabalho. As árvores têm raízes, mas os seres humanos têm pernas que lhes permitem partir depois de em consciência terem dito ‘não’. (p. 53)

 

Corpo metafísico e economia do pudor

I

O valor do corpo sofreu muitas oscilações ao longo da história, terminando na abordagem mais positivista e sexual de hoje. Para os gregos, acreditando no ditado que justapunha mente e corpo sãos, mas também ao olharmos para a estatuária, reflectirmos sobre a criação dos Jogos Olímpicos ou o heroísmo bélico, mesmo que mítico, de alguns pensadores, nomeadamente Sócrates (guerreiro inquebrantável), o corpo, a par do bom e do belo discorrer, revelava, na forma adquirida, um determinado estatuto. É por isso que a contracultura cínica zombava quer da razão, quer do corpo sociais (reféns de cânones), é também por isso que Sócrates, na ambivalência que lhe atribuiu Platão, divergiu da maioria ao aceitar que o seu corpo desaparecesse, isto é, desvalorizou aquilo que por princípio cultural só podia ser valorizado e aceitou matar a máquina corporal bebendo a cicuta (no final do Fédon surge a hipótese da alma viver fora do corpo carcereiro, foi isso que levou Nietzsche a dizer que o cristianismo é um platonismo para o povo – Para Além Bem e Mal). Este fascínio pelo corpo será revogado pela pastoral cristã, capturando o bem para o campo espiritual; via privilegiada de acesso ao divino, claro, mas também única esperança de perenidade, num tempo em que se morria cedo e muitas vezes em sofrimento atroz. Talvez o movimento das Cruzadas tenha reposto algum equilíbrio entre corpo e alma, rezava-se mas também se combatia, e era preciso força e destreza para não ser desmembrado no campo de batalha. Depois, o colonialismo reforçou o eurocentrismo, que tinha no exibicionismo das vestimentas um código eficaz para publicitar as hierarquias sociais e o poder económico. A época vitoriana manteve tudo (com a sua poderosa engrenagem de liberalismo económico e conservadorismo ético) e reforçou as bases de uma moral que não admitia desvios, o corpo foi castigado com poses rígidas e roupas que o escondiam até do olhar mais perscrutador. Excepto o peito feminino, amostra de beleza e sexualidade, vislumbre bastante desligado do resto do corpo, não era uma permissão para a imaginação avançar, mas uma espécie de pequeno contentamento, sem mais, uma falsa abertura que assegurava a interdição do resto (obtido depois de contratualizar um casamento, mas percorrido por uma libido bastante indigente). Houve, claro, histrionismo nas cortes exóticas dos soberanos esclarecidos. O fascínio pelos colãs masculinos manifesta um pequeno retorno ao corpo ginasticado dos gregos, mas isso entrava em contradição com as cabeleiras imensas que pareciam copas de árvores. Entretanto, chegou-se ao século xx e toda a gente se foi despindo, um movimento de despudorização envolveu a nova humanidade, que voltou a mostrar o corpo, sempre bastante sexuado. Como geralmente acontece, houve reacções, hoje mais visíveis no sexismo atávico de grande parte da cultura islâmica (generalizo). Num certo sentido, aconteceu uma real apropriação do corpo próprio pelos indivíduos, uma micro biopolítica baniu alguns dos códigos morais que durante muito tempo desvalorizaram o corpo masculino e culparam o feminino. Regressou a tendência para a nudez, com alguns óbvios exibicionismos despropositados. Assim se reforçou um dos direitos individuais mais básicos e essenciais: a de publicitar livremente o corpo próprio (embora raramente se coloquem as expectativas à margem de certos interditos sociais, mas isto é uma auto-censura prévia necessária à ordem social que também nós desejamos, é aqui que cabe a aparente contradição do governo feminista sueco ter exigido que as jogadoras de xadrez que foram/estão no campeonato do mundo no Irão usem véu, como a de não fazermos nudismo em qualquer praia, mesmo quando a canícula aperta).

II

Esta revalorização do corpo talvez tenha sido feita, porém, quase só à custa do corpo fisiológico, não recuperamos o corpo incodificável e surpreendente de Espinosa ou o corpo “Grande Razão” de Nietzsche. Ficamo-nos pelo corpo libidinoso e pelo corpo máquina, pelo desejo sexual e pela saúde. Veja-se como se desenvolve a publicidade, quer seja sobre carros ou sobre iogurtes. Vale a pena, pois, olhando também para as sombras, recuperar uma pequena nota de Maurice Merleau-Ponty sobre a significação metafísica do corpo, forma de não deixar que a balança enlouqueça e se esqueça que tem dois pratos (o físico e o para lá do físico). Na Phénoménologie de la perception (1945), Merleau-Ponty escreve:

Sem dúvida que é preciso reconhecer que o pudor, o desejo, o amor em geral têm um significado metafísico, isto é, que são incompreensíveis se abordarmos o homem como uma máquina governada por leis naturais, ou mesmo como um ‘feixe de instintos’, e que eles concernem o homem como uma consciência e como liberdade. O homem não mostra comummente o seu corpo e quando o faz é ao mesmo tempo com receio e com vontade de fascinar. Parece-lhe que o olhar estrangeiro que percorre o seu corpo o rouba a si mesmo, ou que pelo contrário a exposição do seu corpo vai dar-lhe o outro sem defesa, e é então outrem que será reduzido à escravatura. O pudor e o impudor tomam, pois, lugar numa dialéctica do eu e do outro, que é a do mestre e a do escravo: porque tenho um corpo posso ser reduzido a objecto pelo olhar de outrem e deixar de contar para ele como pessoa, ou então, pelo contrário, posso tornar-me o seu mestre, passando a ser a minha vez de o olhar,  mas este domínio é um impasse, já que no momento em que o meu valor é reconhecido pelo desejo de outrem, ele já não é uma pessoa por quem desejava ser reconhecido, é um ser fascinado sem liberdade, e neste sentido já não conta verdadeiramente para mim. Dizer que tenho um corpo é, pois, uma maneira de dizer que posso ser reconhecido como um objecto e que procuro ser visto como um sujeito, que outrem pode ser o meu mestre ou o meu escravo, de maneira que o pudor e o impudor exprimem a dialéctica da pluralidade das consciências e que elas têm bem um significado metafísico.”

III

Pelo pudor e a relação dialéctica de um corpo que pode ser mestre ou escravo, Merleau-Ponty pretende recuperar uma dimensão metafísica que a secularização extrema, e rápida, parecia ter rasurado. Está, assim, em contracorrente, mesmo se se trata de um discurso filosófico. Revelar os resquício metafísicos do corpo é contrariar as industrias da saúde e da beleza, as vacinas e os antibióticos tanto quanto os cremes e os perfumes. Ao mesmo tempo, a dimensão metafísica do corpo quando avança para um jogo relacional amplifica a consciência de si e o problema da liberdade, “que corpo devo apresentar ao outro, que corpo está o outro a ver? Quando um corpo me fascina, quanta liberdade perco?”. A metafísica do corpo influi, pois, na concepção do homem (humanidade), máquina ou consciência e liberdade. Nesta última estão dois operadores fundamentais do ser homem: o pudor e o amor. O sentimento de vergonha ligado ao desnudamento inoportuno faz de nós escravos, quem se envergonha perde o domínio, torna-se escravo. Mas isto não significa que o indivíduo desavergonhado, aquele que amoralizou os códigos sociais, seja um sobre-homem, vejo-o mais como delinquente moral ou doente social, retirando liberdade ao outro quando desbarata, pela perplexidade que provoca, a sua autonomia. Na relação entre dois corpos há sempre um confronto de consciências, a forma como o outro me vê influencia a forma como me vejo a mim mesmo (por isso, uma prostituta pode fazer diferentes usos do seu corpo, passar com alguma facilidade de meretriz a mãe ou esposa, ela deixa que o seu corpo, pelo menos a parte mais superficial, se encaixe no olhar interpretativo do outro, um corpo como cubo Rubik). Há também a liberdade de ajustar o corpo às circunstâncias, jogando com a sua polivalência, daí que se compreenda mal quem se prende a uma linha estrita de apresentação do corpo, muitas vezes escondendo-o (geralmente devido a imperativos teológicos). Neste caso, estereótipos sociais ou monomanias subjectivas empobrecem o esplendor do corpo. Mas também pode ser devido a um pudor extremo nascido numa pura reflexão ou o medo de perder o domínio de si pelas investidas do olhar de outrem.

Pós-verdade e pós-modernidade

Há quem atribua à constelação nietzscheana, expandida até ao pós-modernismo francês (Bataille, Foucault, Deleuze, Derrida...), a origem do conceito de pós-verdade. É certo que Nietzsche imbrica verdade e bem com a história, retirando-lhe qualquer pretensão à universalidade, é verdadeiro aquilo que uma cultura considera como um bem num dado momento. E se nos alvores da humanidade isso era feito por “legisladores heroicos”, trágicos e vitais (preferindo o termo “bom” ao de “bem”), o optimismo socrático, isto é, o racionalismo e a sua crença na ordem e no progresso, juntamente com as transcendências metafísicas e teológicas colocaram a vontade de verdade no movimento niilista ascético que desvaloriza a vida, procurando no além, qualquer que ele seja, o sentido pleno que falta à imanência. Jacques Derrida dirá depois que tudo é indecidível, que não há significantes ou referentes; Gilles Deleuze, por seu turno, chega a defender que o sentido provém do sem-sentido, que só há uso e experimentação. Finalmente, fez fortuna o conceito de “jogos de verdade” de Michel Foucault, para ele não há a Verdade porque tudo está historizado. Ficando assim também ela sujeita às relações que estabelece na realidade, às condições de existência. Os jogos de verdade não dependem da descoberta da verdade, mas de contingências históricas que decidem sobre o que deve ser ou não considerado verdadeiro (o célebre “estar no verdadeiro”). Todavia, importa referir que Foucault não foi o fundador da actual pós-verdade, longe disso. Em primeiro lugar, porque a veracidade, a afirmação da sua verdade, muitas vezes, no seu caso, em modo militante, é a condição basilar de uma neo-ética do governo de si e dos outros. Depois, porque, como disse em 1984, “Nada é mais inconsistente do que um regime político que é indiferente à verdade; mas nada é mais perigoso do que um sistema político que pretende prescrever a verdade.” Portanto, claro, o perigo da imposição da verdade nos sistemas políticos totalitários, mas igualmente a crítica à indiferença em relação à verdade. Ora, é esta indiferença que define a centralidade da pós-verdade.

Os construtores de opinião, em trabalho forçado para entenderem o acontecimento Trump e um pouco do Brexit, vão dizendo que a origem, ou proveniência, da pós-verdade deve ser procurada no romance póstumo de Steve Tesich (Óscar do melhor argumento para Breaking Away, 1979) Karoo. Diga-se que o Oxford Dictionnary elegeu a post-truth politics como termo de 2016, vendo-o a operar na contemporaneidade quer nas democracias liberais, quer nos regimes autoritários semi-racionais, quer ainda no estranho, e demente, realismo mágico da Correia do Norte. A exigência da verdade política, dessa anacrónica adequação entre o discurso e a realidade parece ter sido revogado, desapareceu a linguagem referencial. Em favor do quê? Das paixões e das crenças, das expectativas e dos preconceitos comuns. Por isso, a incoerência de Nigel Farage quando depois de ganhar o referendo sobre o Brexit afirmou que tinha sido um erro da sua campanha dizer que se iriam deslocar os 450 milhões de euros semanais da União Europeia para o sistema de saúde britânico. Esta enorme mentira, porventura calculada, não levantou, porém, grande polémica, alimentou apenas uma minúscula perplexidade em meia dúzia de articulistas e numa parcela menor de activistas anti-Brexit, prova que se está no reino da pós-verdade. As classes populares, as mais inclinadas para o Brexit, preferiram uma mentira que culpava as elites pró-europeias do que ouvir a verdade. De igual forma, o ódio racial e o sentimento de desclassificação dos brancos americanos mais desfavorecidos toleraram perfeitamente, e parecem continuar a fazê-lo, se receberem agora alguma esperança económica, as mentiras mirabolantes da máquina Trump (Trump é mais do que Trump: trunpismo). Estes dois exemplos significativos descrevem com clareza a era da pós-verdade (e quase toda a propaganda política vive parcialmente aí), que parece ganhar terreno a uma razão crítica que nasceu no Iluminismo (ou Esclarecimento, termo que traduz melhor a Auflklärung alemã, ganhando em rigor filológico e filosófico). Já não se trata de fazer uma política da mentira, ou da falsidade, própria aos velhos regimes totalitários, mas de enfraquecer a importância da verdade na política. O termo post-truth foi cunhado por Tesich em 1992, quando durante a 1.ª Guerra do Golfo publicou o panfleto “The Wimping of America”, onde relata 30 anos de mentiras na política americana. Para Tesich, desde o Watergate, os americanos teriam criado uma certa fobia à verdade, porque esta trazia más notícias (isso é hoje claríssimo no campo das alterações climáticas), preferindo que o governo lhes mentisse para os proteger da desilusão racional. A Guerra do Golfo exemplifica um pacto trágico entre o poder político e a opinião pública: “conseguiremos uma vitória gloriosa se nos esquecermos da verdade”. O mito auto-consolador em vez da realidade. Tesich diz nesse texto que a novidade está em que até àquela época os ditadores tinham trabalhado para suprimir a verdade, agora suprimia-se a importância da verdade, “enquanto povo livre, decidimos livremente que queremos viver num mundo de pós-verdade.” Isto aplica-se, diz o autor, a todos os aspectos da vida. Esta era da pós-verdade emerge, pois, de um novo contratualismo, assente na indiferença geral em relação à verdade, e à veracidade.

Acontecimento que nada tem que ver com os autores que abrem este ensaio, nunca Nietzsche, Derrida, Deleuze ou Foucault aceitariam que uma mentira consoladora, própria apenas para aguentar as subjectividades fracas, as que não olham as coisas de frente, os neo-fascismos nascidos nas massas ululantes, os pequenos nacionalismo racistas... viesse substituir a verdade, a verdade como veracidade, a parrésia cínica grega, a, para utilizar uma expressão Foucaldiana, “coragem da verdade” (título do seu último curso no Collège de France).

 

Ler Friedrich Nietzsche

A obra de Nietzsche não é composta de textos-linha ou textos-superfície, são antes textos-palimpsesto que é preciso explorar a partir de uma multitude de perspectivas, talvez como se explora uma paisagem ao caminhar longamente através dela, abandonados ao acaso (sem que isso defina qualquer incoerência infecunda). No interior de cada texto exigente há deslocamentos de sentido, ambiguidades, ironias, contra-comunicações; uma infinidade de instabilidades, da pluralidade das palavras à pluralidade dos contextos. Aliás, quando um texto se dá à compreensão de uma só vez, não vale qualquer esforço de interpretação.

Mas não se devem abandonar certos protocolos fixados pela linguagem e desmerecer totalmente as indicações filológicas nietzschianas, nomeadamente a de ler lentamente, ruminando. E talvez os textos de Nietzsche já não sejam sequer um tecido verbal, parecem fragmentos cósmicos dispostos numa autoridade grave, vigorosos e implacáveis. É por isso que são dignos de comentários. E num bom comentário haverá uma espécie de fusão de horizontes entre Nietzsche e os seus leitores? Não, ele estimula ao avanço (em modo batalha, temerários), atropelando-o se for necessário (embora as suas resistências sejam proverbiais, mais do que um caiu do céu ao julgar planar por cima da sua obra, ou sofreu de vertigens aterradoras ao perceber que a altitude era excessiva, trágica). E quando isso é feito, quando pelo menos se desenha essa tentativa, então talvez Nietzsche pense em nós, dentro de nós (Claude Lévi-Strauss dizia isso em relação aos mitos, essa vida pensante que sacode todas as grelhas cartesianas, o sujeito é tomado pelo mito e não o contrário). Se assim for, não se esqueçam que terão de pagar um preço elevado pela liberdade de serem aquilo que vos apetece (com a excepção de cruzados de verdades indiscutíveis).