O veneno do nacionalismo
/Nunca percebi (dentro da inteligibilidade que envolve o nosso tempo) a palavra (ou frase) de ordem que coloca a “soberania nacional” como o desígnio máximo de uma comunidade, sinto sempre que há um oportunismo revivalista invocando o Leviathan hobbesiano ou a Vontade Geral rousseauniana (correspondendo vagamente à direita e à esquerda políticas, respectivamente), que como sabemos são conceitos, ou signos mais difusos, que acabaram por aquartelar-se numa performatividade dramatúrgica em vez de traçarem com a clareza possível os elementos que configuram o sentido de pertença a uma população que originalmente parecia atomizada pelo vírus do egoísmo.
Sei bem que é uma frase para cartazes, que se insinuam em cada rotunda com uma evidência inquestionável, poupa reflexão e alimenta a pequena veia nacionalista. Mas é também reaccionária e perigosamente beligerante, lógica tribal e ódio/medo do estrangeiro (o conhecido contra o estranho e o medo de perder recursos, no celebrado “vêm roubar-nos os empregos!”).
Como manifesto anti-nacionalista, aconselho este texto de George Steiner, escrito na longínqua década de 70 do século xx (provando que a actualidade revisita o passado mais vezes do que se pensa), um ensaio do The New Yorker traduzido para português pela Gradiva (George Steiner, The New Yorker, trad. Joana Pedroso Correira e Miguel Serras Pereira, 2010).
“O nacionalismo é o veneno da história do nosso tempo. Nada é mais brutalmente absurdo do que a tendência por parte dos seres humanos de se atirarem às chamas ou de se matarem uns aos outros em nome da nacionalidade ou movidos pelo sortilégio pueril de uma bandeira. A cidadania é um pacto bilateral que está, ou deveria estar, sempre sujeito a um exame crítico, sendo, se necessário, revogável. Não há cidade humana pela qual valha a pena incorrer-se numa grande injustiça ou numa grande mentira. A morte de Sócrates pesa mais do que a sobrevivência de Atenas. Nada enobrece tanto a história de França como a vontade que levou franceses a raiarem a queda colectiva no abismo, a enfraquecerem radicalmente os laços da nacionalidade (como sucedeu, na realidade), por ocasião do caso Dreyfus. […] A pátria de cada um de nós é a parcela de espaço comum e corrente – pode ser um quarto de hotel ou um banco no parque mais próximo – que a cerrada vigilância e perseguição dos modernos regimes burocráticos ocidentais ou orientais ainda consentem ao nosso trabalho. As árvores têm raízes, mas os seres humanos têm pernas que lhes permitem partir depois de em consciência terem dito ‘não’.” (p. 53)