Festival Eurovisão da Canção

Escrevo sobre o efeito narcótico de quem sempre esperou o pior do Festival Eurovisão da Canção, o que pode provocar elogios excessivos.

Salvador Sobral ganhou ontem (13 de Maio de 2017), data de milagres quase institucionalizados, o Festival Eurovisão da Canção. Fê-lo acima das habituais pobres possibilidades festivaleiras de Portugal (tínhamos conseguido no máximo um 6.º lugar) e acima (ou abaixo) também da sua consciência, moral e estética, de músico (a 1.ª vez que viu este encontro de música-fogo-de-artifício, como lhe chamou, foi o que venceu). Assim, numa rara imbricação de talento, submissão e revolução, o destino, esse acaso impuro, decidiu fazer uma jogada diferente.

Talento: o de Salvador e, há quem diga “sobretudo”, da Luísa, irmãos de sangue. O Amar Pelos Dois é uma canção talentosa, a música e a letra entram directamente no ouvido, não são necessárias muitas mediações estéticas, tudo parece perfeitamente claro, vibram as emoções que têm de vibrar, instando à convergência, à fusão. Além disso, o jogo corporal de Salvador, revelando no seu minimalismo uma entrega quase mística, está em sintonia integral com a canção. A simplicidade, de que tanto se fala, é uma arte sublime, tanto mais que a canção é harmonicamente muito rica.

Submissão: Salvador Sobral submeteu-se a uma parcela do mundo da música que, segundo ele, lhe é indiferente. Nunca tinha visto este festival, já o disse, e mesmo depois de ganhar, quando se baixam as guardas e se disparam panegíricos e agradecimentos a torto e a direito, manteve uma distância, quase higiénica, em relação à Eurovisão, acabando por dizer que o desejo de vitória que Caetano Veloso lhe tinha endereçado valia mais do que a vitória em si mesma. Certo. Mas foi lá, entrou num jogo que parece não ser o dele, numa constelação musical que lhe é, pelo menos, alheia e que agora marca um pouco aquilo que é. É verdade que se preocupou em descolar o mais depressa possível o rótulo de festivaleiro que lhe caiu em cima, mas ele fez por isso, não foi?

Revolução: “Sem a música a vida seria um erro” (Nietzsche), mas o que ele queria dizer era que “sem uma música adequada a vida era um erro”, prova-o as críticas que fez ao estilo decadente de Wagner. Traduzindo: “diz-me a música que ouves dir-te-ei o que vale a tua vida”. A Eurovisão estimula muitas vidas anódinas, à tradicional “música descartável”, como lhe chamou Salvador Sobral, correspondem com certeza vidas descartáveis. Mas era (é?) este o ADN do Festival: “música ligeira” para entreter as massas, conscientes porém da sua nacionalidade. Ora, Amar Pelos Dois revolucionou o modelo (mesmo não estando nos antípodas), ganhou a música, como referiu várias vezes o intérprete, mais do que a encenação espalhafatosa, ganhou a voz mais do que a beleza do cantante, ganhou a entrega sincera do cantor mais do que uma coreografia de cabaret. E isto é revolucionário, não sei se perdurará, mas por enquanto vale a pena saborear a inversão e, como queria Kant, dando aqui muitas voltas à relação linear, manter a esperança de que a Eurovisão tenha descoberto uma nova vocação, que seria, agora com Nietzsche, tornar-se aquilo que ela é, ou seja, um festival de música.

Para se saber um pouco mais sobre Salvador Sobral, um belo artigo no El País.

Ícaro: ou como ter altura de onde cair

Matisse, Icare, in Jazz, 1943.

Matisse, Icare, in Jazz, 1943.

I

Ícaro, na variação mítica grega mais comum, era filho do arquitecto e inventor Dédalo, encontrou-se com a morte por voar muito próximo do sol. Ícaro nasceu da união entre Dédalo, à época arquitecto do rei Minos de Creta, e uma escrava da corte. Um dia, o seu pai traiu Minos fornecendo a Teseu, por intermédio de Ariadne, o plano que permitiu àquele sair do Labirinto, depois de matar o Minotauro. Furioso, Minos decidiu puni-lo, aprisionando-o no Labirinto com o seu filho, Ícaro.

Mas Dédalo inventou uma forma de escapar: construiu asas de penas coladas com cera. Conta-nos Ovídeo nas Metamorfoses que Dédalo preveniu Ícaro de que não devia voar nem muito alto (o sol fundiria a cera) nem muito baixo (o vapor das ondas tornaria as asas pesadas). Mas no decurso do voo, Ícaro, “tomado de entusiasmo” (Apolodoro), negligenciou os conselhos do pai e aproximou-se demasiado do sol. Esta imprudência fez com que as asas se desagregassem sob o efeito do calor e o jovem caiu e morreu afogado no mar... Icário.

II

Simbolicamente, a história trágica de Ícaro representa os perigos que corre quem está animado de ambição desmedida (a hybris grega, retomada pelo cristianismo em termos mais teológicos e injectando-lhe toxicidade) ou de audácia inconsequente. Em bom português, diz-nos “não te estiques!”, forma de traduzir rapidamente as inúmeras considerações sobre a maldade, quase sempre mefistofélica, da pretensão inchada. Mas é também uma narrativa sobre a ousadia vital do ser humano, outro que o acomodado à repetição confortável do previsível, antes aquele que se mantém na disposição febril de ser diverso, de se aventurar no desconhecido para se reinventar. É assim que leio o belíssimo poema de Marcel Fernandes publicado há pouco tempo na Enfermaria:

Ícaro

descamando o quarto
cavo a cova fria da rotina
despertando a águia que habita
a pele dos lençóis
tudo enfim deverá acontecer
o voo incerto atravessa-me o osso
alado: lanço-me ao sol

Este “lançar-se ao sol” do poema é de um arrojo que prenuncia o trágico, e nem o fatalismo do “tudo enfim deverá acontecer” reduz a infinita paixão temerária de escalar para lá do que se pode. Ícaro rompe a placenta e promete-se a um futuro diferente dos agrimensores receosos e satisfeitos (como o que, no quadro de Pieter Bruegel, alheio à queda de Ícaro no mar continua a lavrar a terra).

Pieter Bruegel, 1555-1560

Pieter Bruegel, 1555-1560

III

O que nos ensina este mito? Os gregos não tinham a noção da nossa liberdade, só era possível escolher dentro do que já tinha sido definido pelo destino, e talvez por isso não houvesse verdadeiros heróis, nem Antígona ou Prometeu o foram (apesar do fascínio que provocaram nos modernos), eles faziam parte das cartas que os deuses queriam jogar. Mas no caso de Ícaro parece existir um ligeiro desvio às fórmulas tradicionais de construir a tragicidade: a queda dá-se porque desobedece aos humanos, a seu pai, e não aos deuses. E se isto introduz uma certa frivolidade, a desatenção de Ícaro revela uma ambição inocente, imagino-o a voar, subindo incandescente nos céus em pura felicidade. Para ter uma dimensão trágica precisava de tensão entre elevação e queda, uma verticalidade indevida, cheia de vigor mas já, também, de vertigem.

De qualquer forma, gosto de ler o mito não como um gesto de criança traquina e desobediente mas como um desafio à normalidade, pagando-se o preço por se elevar à altura do que queria. Mesmo se não é uma leitura filologicamente segura, é a hermenêutica que nos apetece seguir, e como sabemos nos mitos não há a verdade original, os seus sentidos originários têm muitos espaços em branco, é, aliás, por isso que permanecem vivos.

IV

Mas há ainda outras lições a retirar. Aproximando-me novamente do poema de Marcel Fernandes, leio-o como o preço a pagar pela excepção, sair do labirinto pós-moderno, onde se é rebelde com uma carteira vasta de seguros (até um de vida, como se se pudesse extinguir o próprio morrer). O pior é não ter altura de onde cair, ser pobremente rasteiro, aborrecido. Devemos prender-nos a sonhos de altitude, afastar-nos do que vivemos e agarrar-nos com mãos de lenhador ao que esperamos viver. Sem voltar a fumar o opiáceo da esperança, com ou sem Deus, que também tem histórias celestes. Saltar por cima do que somos na secreta missão de renascermos, sem mistificações ou seguidismos, sem nome. Nunca mais nos afogarmos na calmaria da normalidade. Sem o síndroma de Ícaro vive-se numa banalidade desoladora e desastrosa. Por isso leio La Chute d’Icare de Matisse não como ele queria (um piloto abatido caindo do céu iluminado por disparos), mas como esse neófito desobediente que obteve por instantes a felicidade concentrada do universo. Tenhamos, pois, altura de onde cair.

Matisse, La Chute d'Icare, 1947.

Matisse, La Chute d'Icare, 1947.

Querido ministro dos desportos,

Monty Python, The Philosophers' Football Match

Monty Python, The Philosophers' Football Match

Lisboa, 20 de Março de 2017

 

            — Havia alguém que andava atrás de coisas redondas, muito redondas, que rolavam, e que bem que rolavam, umas atrás das outras, ou só uma, sim, era só uma, e depois todos os outros corriam, corriam muito depressa, o mais depressa que podiam, não tudo de uma vez, porque este animal tinha de parar, como todos, e depois havia dois blocos, duas redes, e diziam, uma é minha a outra é tua, então eu tenho de enrolar tudo até à minha, não, diziam, até à tua...

— à tua?

— Sim, à tua, só assim poderás deixar de correr e começar aos saltos, mas se mostrares o umbigo vem alguém com cores...

— Com cores?

— Sim, alguns chamam amarelo, mas se já tiveres um dão-te cabo da cabeça, não podes mais rolar...rrrolar... fazer rolar, isto é, sim, se já tiveres um nunca mais andas atrás de coisas redondas, pelo menos durante aquele tempo...

— Tempo?

— Sim, minutos, segundos, um dois três, percebes, é como números só que estão aqui...

— O quê?

— sim, o tempo são números que se repetem só que reais

— os números não são reais?

— sim, mas só se forem tempo

— mas, e o tipo, o que lhe aconteceu?

— não viu cor nenhuma, então, por inerência, continuou a andar atrás de coisas redondas.

— ai sim?

— sim, claro que sim.

— mas porquê é que ele andava tão obcecado com isso?

— Nós somos animais, amigo, não sabes?

— Ai somos?

— Sim, claro que somos, temos de andar sempre atrás de qualquer coisa...

— Ai sim?

— Claro que sim, temos de nos manter vivos, e então alguns de nós para se sentirem vivos têm muito de ver os outros a estar vivos e a correr atrás de uma coisa redonda...

— Só um?

— Não, tens razão, vários, muitíssimos, mais do que um, menos do que doze

— doze?

— Sim, parece que é um número interessante

— Doze tempos são interessantes?

— Pelos vistos, não te sei responder a tudo, neste caso posso dizer-te: havia alguém que andava atrás de coisas redondas, muito redondas, que rolavam, e que bem que rolavam, e quando chegava perto, pum, lá vai disto, a coisa redonda eleva-se, elevava-se, elevaváva-se, e pum, ele dizia, toma, e saltava, não mais do que um animal salta, mas mais do que o normal, saltava, e pum, dizia, toma lá, toma lá, ouve lá

— mas toma o quê?

— perguntas bem, julgo que se pode traduzir por ‘toma lá esta coisa (neutro) que era minha e agora está dentro da tua’

— da tua?

— sim, de tua, da tua, de certa forma há algo nisto tudo que me soa estranho...

— Duvidaste?

— por momentos, sim, perdi-me, já não sei quem falava...

— era eu?...

— claro, desculpa, ele foi, ele foi muito, fez coisas com a coisa redonda várias vezes, para aí mil números, dez mil, passou muito tempo,

— então?,

— sim, para este animal mil é muito tempo

— e dois mil?

— dois mil também

— e cem mil?

— sim, ele talvez tenha rolado a coisa cem mil vezes até lá...

— e um milhão?

— já não sei

— e números e tempos sem acabarem?...

— ó pá, não sei, não me estejas sempre a interromper, assim é cansativo, sei lá, pôs marcas muitas vezes

— marcou?

— sim, é isso, pôs marcas muitas vezes, tantas vezes que disseram, este aqui rola muita bem, marca muito bem, faz tudo muito bem, e olha vai lá daquela, dão-lhe muitos números

— muitos números, como assim, muitos dez, por exemplo?

— sim, dão-lhe muitos números de dez

— como assim, dinheiro, coisas de dez?

— sim, isso mesmo, dão-lhe milhões de números de dez...

— mas porquê? Dar é um verbo  tão generoso...

— Ora, não te acabei de dizer, porque rolava muito bem coisas redondas

— mas tu não és capaz?

— sim, mas tens de fazer rolar muito bem

— ai sim, e como é que sabes?

— olha, sei lá

— ... e se rolares muito bem e ninguém te estiver a ver?

— ora que pergunta...

— ... e se fores o melhor a rolar a coisa e nunca o conseguiste fazer porque morreste?

— ah, entendo, acto-potência

— claro, claro que sim

— bem finalmente percebeste, acto-potência, isto aqui é acto... quer dizer, toma, lá vai disto, já lá mora, acasalou com as redes, fez-se amor no rectângulo

— isto também tem a ver com geometria?

— não te falei em números?

— sim

— então, claro que sim, números, formas, tempo, vai dar tudo ao mesmo

— então o tipo era um matemático

— sim, pode dizer-se que sim

— e porque se haveria de dizer que não?

— porque na realidade ele só fazia coisas redondas rolar

— mas os matemáticos não fazem muito mais do que isso?

— então, mas já não concluímos que ele era matemático?

— sim

— então deixa-me continuar

— ah sim, mas então quando é que tudo começou?

— não sei

— não foi quando ele começou a chutar

— chutar?

— sim, deixa lá, lembrei-me disso para descrever o que acabaste de dizer

— sim, gostei muito, chutar, sim, foi quando ele acabou de chutar

— ele já não chuta?

— está quase a deixar, depois, vê, sabes, há coisas que voam e aterram, isto é, são coisas muito grandes, como aves muito grandes, aviões, aviãozões

— é pá, que pássaros tão grandes

— sim, mas estes não são animais, são feitos de metal

— e pá! então como voam

— matemática, amigo, matemática

— devia ter suspeitado

— pois devias, mas desde o princípio não me deixas falar

— qual princípio

— já sei, devia evitar estas expressões, continuando, está quase a deixar de fazer esse verbo que inventaste

— chutar

— esse mesmo, está quase a deixar de o fazer e então disseram: lembras-te há muito tempo do sítio de onde saíste da vagina da tua mãe, claro que ninguém se lembra, é só uma forma delicada de fazer alguém recordar-se do sítio onde ainda sem saber estava a viver

— pois, já tinha sentido que às vezes não sabemos bem o que estamos aqui a fazer, basta olhar nos olhos de um animal muito, muito pequenino

— ah, és tão perspicaz, parece que é o mesmo autor que está a escrever isto

— que disparate

— olha, às vezes quando menos acreditas, tumba, já foste, estás a ser escrito e vives só na imaginação de alguém

— tenho medo disso

— não tenhas medo, crê somente, mas olha, o outro entretanto já não começava a rolar a coisa redonda como antes

— coitado, o que lhe aconteceu

— o tempo

— ai sim? e depois, o que seria dele

— ninguém sabe

— ninguém? então não morreu também?

— bom, quer-se dizer, toda a gente sabe, há-de morrer

— que pena!

— tens pena dele?

— tenho pena de nós

— eu também... mas quando começaram a aterrar grandes aves todos disseram: ai que bem que ele chutava!

— porquê?

— porque o sítio onde ele nasceu e onde as grandes aves aterravam era o mesmo

— que alegria deve ter sido para ele

— sim, mas depois morreu...

— oh! que pena!

— pois, é uma pena. Mas chutava muito bem.

 

Com os melhores cumprimentos

Pedro Braga Falcão

"Leis" da narração

Na revista francesa de divulgação filosófica Philosophie Magazine, Fevereiro de 2017, John Truby considera que a Odisseia e Breaking Bad obedecem a regras estéticas atemporais, e por isso semelhantes, já presentes, por exemplo, em Aristóteles, Hegel e Nietzsche. O autor complexifica, porém, as velhas leis aristotélicas (unidades da acção, do tempo e do lugar, servindo a mimésis de uma acção edificante que suscitando piedade e medo desenvolve processos catárticos), considera necessárias vinte e duas etapas para se escrever uma boa história (cf. Anatomie du scénario, 2017). Etapas que podem ser resumidas assim: “haver uma linha clara de desejo, a de um herói prosseguindo um objectivo definido, que para o atingir se confronta a um conjunto de situações, a que chamamos intriga, e que são principalmente testes morais, aos quais responde bem ou mal, até que surge a derradeira tomada de consciência, marcando a sua transformação íntima, e, idealmente, oferecendo ao público um momento de revelação profunda.” Desta forma, uma boa personagem incarna simultaneamente problemas psicológicos e morais, as suas fragilidades são atacadas por adversários, até ao ponto de ruptura capaz de revitalizar e decidir a vitória do protagonista. Daqui pode nascer uma revolução capaz de criar novos códigos morais mais apropriados a um mundo justo. Portanto, o centro nevrálgico faz-se com um plano de desejo e ataques e contra-ataques morais ao longo de uma linha de desenvolvimento que conduz ao final feliz (mesmo que não haja festa e contentamento simplório, pode até morrer-se saciado de vida). É verdade que algumas obras, como O Estrangeiro de Albert Camus, parecem desviar-se dessa estrutura, mas isso mantém-se na grande maioria dos casos. Por exemplo, mesmo na Metamorfose de Kafka, apesar do desvanecimento de sentido e da quase impossibilidade de se conjurar essa falha, deseja-se saber o que vai acontecer à personagem.

A ficção cinematográfica ou televisiva funciona de forma similar, excepto nos trabalhos de autor, que, por natureza, terão de afastar-se dos horizontes de expectativa dominantes, “Um filme de autor explora um mundo [possível], não segundo as esperas do público, mas de acordo com a visão do autor.” Mad Men ou Breaking Bad, e outras obras superiores (The Wire, Six Feet Under, Sopranos...), seguem a velha estrutura mas adicionam-lhes outros arranjos narrativos, reduzem a tensão maniqueísta, complexificam algumas personagens, deixando-as muitas vezes à deriva no meio da ambivalência, amplificam as virtudes empíricas contra as ambições idealistas, protegem zonas de obscuridade que noutras produções são resolutamente iluminadas, escancaradas, às vezes com deuses ex machina fanfarrões totalmente inverosímeis, uma banalidade desoladora e desastrosa, apesar de febril. De qualquer forma, se as más histórias são moralizadoras, as boas colocam sempre questões morais, “ou a questão da moral”. Mas também neste caso há excepções, John Truby dá o exemplo de Tchekhov, cujas personagens são “incapazes de compreender e de mudar. Elas repetem perpetuamente os mesmos erros.” E quando ficam conscientes, acabam por “obter exactamente o contrário do desejado.”

Assim, uma boa história, já tendo em conta os desvios que podem gerar obras de arte, “estiliza e compreende momentos cruciais da vida”. Desenvolvendo uma economia do desejo em direcção a um fim, indo por trilhos minados, onde novos Ulisses se safam com astúcias frenéticas, cheias de suspense e efeitos especiais, e no final obtêm a ambicionada superação que eleva as personagens heróicas e, se houver tragédia, também os espectadores (a célebre catarse trágica interpretada por Nietzsche, elevação em vez de purgação).

Pausa para sexo ou mais um teste falhado à maturidade racional

Fotografia do jornal Libération

Fotografia do jornal Libération

Há uns dias, um político Sueco propôs uma pausa de uma hora no trabalho para sexo (os objectivos são aumentar a natalidade e contribuir para o bem-estar da população, o jornal Libération explica, mas também o Le Monde, recepção jornalística francesa de “referência”). No início, pareceu-me mais um delírio progressista (este termo precisa de atenção crítica), desses que quase ninguém leva a sério mas que fazem a fortuna dos sítios de notícias exóticas, emerge mais um fait-divers na realidade, como uma pequena irrupção de sem-sentido visando, sem convicção, mudar alguma coisa para que tudo fique exactamente na mesma.

Contudo, deixem-me envolver esta proposta com linhas de racionalidade, querendo resgatá-la da irrelevância em que caiu pouco depois dos risos iniciais na taberna e sorrisos na pausa para café de trabalhadores sensatos e empenhados. Houve também quem mantivesse o siso intacto e achasse novamente, comprovando uma suspeição herdada, que o mundo não tem remissão. Aconselho estes guardiões da inteligência lógica e dos valores morais abraâmicos a abandonarem prontamente a leitura do texto, a Webesfera está cheia de coisas graves, não percam o vosso precioso tempo com ligeirezas.

Vou então, para os que ficaram, cruzar a notícia sueca com um artigo (íntegro, apesar de tudo), já com alguns meses, do El País: “Assí cambia su cuerpo cuando deja de practicar sexo”. Nele, Kristin Suleng convoca vários estudos científicos para mostrar como o abandono da prática sexual nos fragiliza. Vamos aos factos (ou ao que se aproxima disso), de seguida, quase automaticamente, veremos que o político sueco não é, afinal, um louco ou um carente de projecção mediática. Concluirei que quase 80 anos depois da morte de Freud, a sexualidade continua a ser mais mitificada do que analisada (abrindo as portas ao obsceno, ao pornográfico ou ao paródico, percepções toldadas pelos preconceitos sobre o corpo sexuado, capazes de uma autoridade implacável, exercida numa espécie de novilíngua dedicada à sexualidade, dificultando toda a respiração inconformista).

1- O artigo do El País citado acima é um modelo de bom jornalismo, quase todas as afirmações contêm uma hiperligação que conduz o leitor até à entrada do estudo que as sustenta, é verdade que há pouco contraditório, mas tendo em conta a actual tabloidização da informação, devemos felicitar estas bolsas de qualidade. O texto revela que há três domínios onde a actividade sexual influi positivamente: a cardiovascular, a neurológica e a do sistema imunitário. Daqui não resulta imediatamente, tem o cuidado de realçar o autor, que a abstinência (nunca havendo uma anulação plena da sexualidade, entende-se esta como a falta de práticas sexuais orientadas para o orgasmo, apesar do desejo de as ter, trata-se sempre aqui de abstinência involuntária) tenha consequências negativas para o organismo, dos benefícios da prática (porventura sobrevalorizados) não se segue que haja prejuízos na ausência dela. Bom, mas parece consensual que o sexo é benigno para a tensão arterial, espoleta ou acelera a produção de dopamina e serotonina e, devido ao contacto físico, fortalece o sistema imunitário. Além disso, também afecta positivamente a autoestima. A isto junta-se a diminuição da agressividade, segundo um estudo longo e vasto, “as sociedades mais agressivas são as mais abstinentes ou reprimidas.” Como remédio caseiro, podemos recuperar um dos soporíferos mais antigos ao decidir enrolarmo-nos na cama em vez de vermos televisão ou respondermos a e-mails. Há ainda um trabalho académico que relaciona a pobreza sexual com a diminuição da inteligência, visto que o sexo incentiva a neurogénese, sobretudo o desenvolvimento celular no hipocampo. Finalmente, uma vagina pouco utilizada (para o sexo) cai em hipotonia e se o homem deixar de ejacular aumenta o risco de cancro da próstata, além de promover a disfunção eréctil.

2- Depois deste vasto leque de benefícios comprovados da actividade sexual, e prejuízos do seu contrário, quem se atreve ainda a criticar o político Sueco? Se é um caso de saúde pública (coloquemos a questão nestes termos), então justifica-se, até por razões económicas, que a famigerada pausa seja considerada um imperativo legal que todos deveriam cumprir. Talvez surgissem alguns problemas de fiscalização (como verificar que a pausa era exactamente usada para esse fim?), de crítica social (apontando-se o dedo a quem não contribuísse para um bem-estar individual que, por acumulação, se alarga sempre ao geral), de discriminação das minorias assexuadas ou presas ao colete de forças religioso... Mas parece-me que tudo acabaria por entrar na rotina da população, sobretudo nos jovens ousados e robustos (talvez se pudesse isentar parcialmente os mais idosos da sistematicidade calendarizada). O resultado, virados os preconceitos ao avesso, seria mais bem-estar, individual e social, e aumento da natalidade (aqui compreendem-se as reservas dos ambientalistas).

3- Certo, parece tudo bastante interessante, mas, ao mesmo tempo, numa auto-contradição de voltagem média, incapaz de sair de um registo jocoso, mais apropriado às utopias alucinadas do que a uma via iluminada que se leve ao Parlamento para ser legislada. E isto quase somente porque continuamos a rodear de preconceitos ancestrais os órgãos e a embriaguez sexuais. Claro que os primeiros são discriminados devido à potência dionisíaca que parecem concentrar, mas ninguém se lembra de banir o cérebro ou o sistema endócrino das conversas honradas só porque eles também participam no jogo sexual. Isto quer dizer que também na sexualidade há uma economia do bode expiatório (pénis e vagina carregam com as culpas). Mas mais sério do que isto é a constatação de que continuamos cheios de tabus – sendo que neste caso, em antinomia, uma franja da população coloca aí o seu totem. Apesar da intensa sublimação (não no sentido freudiano) desses órgãos, e da tese de Michel Foucault sobre a Modernidade não cessar de falar, científica e vulgarmente, de sexualidade (revelação iconoclasta presente no primeiro volume da História da Sexualidade). A tese da potência libidinosa do Id, a quase constatação da importância decisiva da passagem fecunda dos estádios sexuais, os complexos de Édipo e de Electra... em resumo, toda a analítica sexual freudiana continua, um século depois, a ser esmagada por preconceitos, sobretudo religiosos. Em geral, um sexismo primário fia narrativas de posse e domínio enaltecendo um machismo básico. Por seu turno, o espectro religioso vislumbrou na sexualidade (esse extraordinário dispositivo filogenético mas também esse superior traço de civilidade emergente no amor-paixão) uma embriaguez extasiante que pode concorrer perigosamente com grande parte da cultura ascética, seria uma saída vital, a do sexo, contra uma saída mortífera, a evangélica. Venceu, pois, a noite das trevas, sem estrelas dançantes. Talvez por isso se gritasse ao megafone por todo o Maio 68 sexualmente activo que “fazer amor era uma forma, mais uma, de fazer a revolução”.