Querido ministro dos desportos,
/Lisboa, 20 de Março de 2017
— Havia alguém que andava atrás de coisas redondas, muito redondas, que rolavam, e que bem que rolavam, umas atrás das outras, ou só uma, sim, era só uma, e depois todos os outros corriam, corriam muito depressa, o mais depressa que podiam, não tudo de uma vez, porque este animal tinha de parar, como todos, e depois havia dois blocos, duas redes, e diziam, uma é minha a outra é tua, então eu tenho de enrolar tudo até à minha, não, diziam, até à tua...
— à tua?
— Sim, à tua, só assim poderás deixar de correr e começar aos saltos, mas se mostrares o umbigo vem alguém com cores...
— Com cores?
— Sim, alguns chamam amarelo, mas se já tiveres um dão-te cabo da cabeça, não podes mais rolar...rrrolar... fazer rolar, isto é, sim, se já tiveres um nunca mais andas atrás de coisas redondas, pelo menos durante aquele tempo...
— Tempo?
— Sim, minutos, segundos, um dois três, percebes, é como números só que estão aqui...
— O quê?
— sim, o tempo são números que se repetem só que reais
— os números não são reais?
— sim, mas só se forem tempo
— mas, e o tipo, o que lhe aconteceu?
— não viu cor nenhuma, então, por inerência, continuou a andar atrás de coisas redondas.
— ai sim?
— sim, claro que sim.
— mas porquê é que ele andava tão obcecado com isso?
— Nós somos animais, amigo, não sabes?
— Ai somos?
— Sim, claro que somos, temos de andar sempre atrás de qualquer coisa...
— Ai sim?
— Claro que sim, temos de nos manter vivos, e então alguns de nós para se sentirem vivos têm muito de ver os outros a estar vivos e a correr atrás de uma coisa redonda...
— Só um?
— Não, tens razão, vários, muitíssimos, mais do que um, menos do que doze
— doze?
— Sim, parece que é um número interessante
— Doze tempos são interessantes?
— Pelos vistos, não te sei responder a tudo, neste caso posso dizer-te: havia alguém que andava atrás de coisas redondas, muito redondas, que rolavam, e que bem que rolavam, e quando chegava perto, pum, lá vai disto, a coisa redonda eleva-se, elevava-se, elevaváva-se, e pum, ele dizia, toma, e saltava, não mais do que um animal salta, mas mais do que o normal, saltava, e pum, dizia, toma lá, toma lá, ouve lá
— mas toma o quê?
— perguntas bem, julgo que se pode traduzir por ‘toma lá esta coisa (neutro) que era minha e agora está dentro da tua’
— da tua?
— sim, de tua, da tua, de certa forma há algo nisto tudo que me soa estranho...
— Duvidaste?
— por momentos, sim, perdi-me, já não sei quem falava...
— era eu?...
— claro, desculpa, ele foi, ele foi muito, fez coisas com a coisa redonda várias vezes, para aí mil números, dez mil, passou muito tempo,
— então?,
— sim, para este animal mil é muito tempo
— e dois mil?
— dois mil também
— e cem mil?
— sim, ele talvez tenha rolado a coisa cem mil vezes até lá...
— e um milhão?
— já não sei
— e números e tempos sem acabarem?...
— ó pá, não sei, não me estejas sempre a interromper, assim é cansativo, sei lá, pôs marcas muitas vezes
— marcou?
— sim, é isso, pôs marcas muitas vezes, tantas vezes que disseram, este aqui rola muita bem, marca muito bem, faz tudo muito bem, e olha vai lá daquela, dão-lhe muitos números
— muitos números, como assim, muitos dez, por exemplo?
— sim, dão-lhe muitos números de dez
— como assim, dinheiro, coisas de dez?
— sim, isso mesmo, dão-lhe milhões de números de dez...
— mas porquê? Dar é um verbo tão generoso...
— Ora, não te acabei de dizer, porque rolava muito bem coisas redondas
— mas tu não és capaz?
— sim, mas tens de fazer rolar muito bem
— ai sim, e como é que sabes?
— olha, sei lá
— ... e se rolares muito bem e ninguém te estiver a ver?
— ora que pergunta...
— ... e se fores o melhor a rolar a coisa e nunca o conseguiste fazer porque morreste?
— ah, entendo, acto-potência
— claro, claro que sim
— bem finalmente percebeste, acto-potência, isto aqui é acto... quer dizer, toma, lá vai disto, já lá mora, acasalou com as redes, fez-se amor no rectângulo
— isto também tem a ver com geometria?
— não te falei em números?
— sim
— então, claro que sim, números, formas, tempo, vai dar tudo ao mesmo
— então o tipo era um matemático
— sim, pode dizer-se que sim
— e porque se haveria de dizer que não?
— porque na realidade ele só fazia coisas redondas rolar
— mas os matemáticos não fazem muito mais do que isso?
— então, mas já não concluímos que ele era matemático?
— sim
— então deixa-me continuar
— ah sim, mas então quando é que tudo começou?
— não sei
— não foi quando ele começou a chutar
— chutar?
— sim, deixa lá, lembrei-me disso para descrever o que acabaste de dizer
— sim, gostei muito, chutar, sim, foi quando ele acabou de chutar
— ele já não chuta?
— está quase a deixar, depois, vê, sabes, há coisas que voam e aterram, isto é, são coisas muito grandes, como aves muito grandes, aviões, aviãozões
— é pá, que pássaros tão grandes
— sim, mas estes não são animais, são feitos de metal
— e pá! então como voam
— matemática, amigo, matemática
— devia ter suspeitado
— pois devias, mas desde o princípio não me deixas falar
— qual princípio
— já sei, devia evitar estas expressões, continuando, está quase a deixar de fazer esse verbo que inventaste
— chutar
— esse mesmo, está quase a deixar de o fazer e então disseram: lembras-te há muito tempo do sítio de onde saíste da vagina da tua mãe, claro que ninguém se lembra, é só uma forma delicada de fazer alguém recordar-se do sítio onde ainda sem saber estava a viver
— pois, já tinha sentido que às vezes não sabemos bem o que estamos aqui a fazer, basta olhar nos olhos de um animal muito, muito pequenino
— ah, és tão perspicaz, parece que é o mesmo autor que está a escrever isto
— que disparate
— olha, às vezes quando menos acreditas, tumba, já foste, estás a ser escrito e vives só na imaginação de alguém
— tenho medo disso
— não tenhas medo, crê somente, mas olha, o outro entretanto já não começava a rolar a coisa redonda como antes
— coitado, o que lhe aconteceu
— o tempo
— ai sim? e depois, o que seria dele
— ninguém sabe
— ninguém? então não morreu também?
— bom, quer-se dizer, toda a gente sabe, há-de morrer
— que pena!
— tens pena dele?
— tenho pena de nós
— eu também... mas quando começaram a aterrar grandes aves todos disseram: ai que bem que ele chutava!
— porquê?
— porque o sítio onde ele nasceu e onde as grandes aves aterravam era o mesmo
— que alegria deve ter sido para ele
— sim, mas depois morreu...
— oh! que pena!
— pois, é uma pena. Mas chutava muito bem.
Com os melhores cumprimentos
Pedro Braga Falcão