2001
Eu digo sim até dizer não
as circunvoluções
e caprichos
da atenção:
erguer a cabeça
e perder o sono
sopro
vento
em que
uma primeira esfera
de ar impele
outra ao movimento
ou em alto-mar
temendo menos a ausência
de resgate na superfície
que a povoação alheia
e por isso informe, abaixo
n’água, invisível, mas parte
integrante das estruturas
do dia real
só a lucidez abre caminho
para o imaginário
mas a carne insiste
no contínuo
onde as pedras são comestíveis
e exige-se a fome;
durante a transfiguração
em que anjos e bandejas
circulam seu jardim
é fácil salmodiar
providências e entregas; mas
é com o linho enfaixando toda a
pele e a pedra
separando esta caverna
da saúde do ar
que se espera um Lázaro!
Lázaro! e um segundo
antes da asfixia
crer ainda
que seja este o meu
nome, seja ESTE o MEU
nome
se cada folha parece
percutir o sol hoje
e não se debruça do estame
para o vazio
o mundo
é tão simpático
da montanha que fala resta
a mímica, da presença
o ventríloquo, de sua boca
o mapa que reconduz à porta
mão em mão com passos lentos
mas foi Isaque a carregar a lenha
nas costas, tomar o fogo e o cutelo
na mão; e caminhou junto de seu pai
todo sacrifício é aparente e inútil,
nenhuma
árvore camufla
suas frutas:
as expõe
ao pássaro, ao
chão, ao suco
na garganta, à recusa
do estômago
por
tanto
percorro os andaimes
de equilíbrio precário
:
ferro oxidável
saudoso
de água
e a alegria de quem, na
obrigação de abater um novilho,
espera que seu corpo, de repente
forte, sobreviva ao sacrifício,
como uma garganta
enrijece-se rápida
para resistir à faca
*
2005
O poeta vai para o monastério
I.
como adormecer num longa
do Pasolini e despertar
num curta do Kieslowski;
e tem sentido, eu pergunto,
abstinência, parcimônia
polissílabas? se meu corpo
sempre foi teatro
do precário? êxtase
em ascese,
mas as extremidades
começam a cansar-me,
quem me dera
agora um dilúvio
na ponta dos pés;
a perda acopla-se
mas o oxímoro não
me acalma, ninguém
que preencha
meu ônus,
caminhando pelas ruas
como uma papisa,
uma diva, uma Kate
Bush ofendida,
cantarolando
“de longe sim flauta de luva”
para que não
se entenda que
entre dentes
cerrados invoco
(a primeira onda
sobre minha própria
cabeça) o
déluge sintflut dilúvio
II.
derramo o leite no
chão de propósito,
firo,
furo os dedos
no garfo,
quero tanto
agradar e intuo
que Deus aprecia
desperdícios; assim
deslocado
como um peixe
n’água, olho
continuamente para
o teto à procura
das câmeras que
tornem oficial
meu protagonismo
nesta história,
pela manhã
o primeiro sussurro
sendo homem
ao mar homem
ao mar e só hoje
entendo minha
mãe gritando após
as surras “não
me venha
com esta
cara de Maria
Madalena
arrependida”;
ah o martírio
rosa de jamais
ter filhos que eu
possa chamar de
Abel
Rocamadour
Luke Skywalker
*
2007
Mula
Minha
senhora: os unicórnios
que caem com a raiz
não
voltam mais; ainda
que vangoghes
até que engasgues,
sigo mula
a indiciar o caso
excepcional
do sem espécie,
self-archived tool, exílio
dos catálogos
a especificar o espaço
para a porcentagem da escolha
do puro, alheia que se agita
antes de abrir, dose cavalar
de juramento e
eguidade. Poupa-me,
Popeye: longe de mim
impor-me híbrida
à tua hípica -
brutalmente homogênea,
especialista em fronteiras,
eject de habitat,
eis-me, excelentíssimo,
a de cascos
não retornáveis,
nula nulla
tal qual highbred hybrid
relinchando o já morto:
muslos de mulícia,
esterilizável, aureolar,
multívaga
ambiquestre
de mulas prontas,
perdoai vossa serva
preguiçodáctila aos berros
perturbando vosso áureo
piquenique do sublime,
illicit mule
espirrando em vosso épico.
Não
há Blade
Runner que resista
mesmo euzim
fake mullah,
insciente dos teus métodos,
ó sussurrável, hoof muffler
da palha do meu estofo.
Prometo-me estoica
e subcutânea,
bem fazes em esporear-me
o couro catecúmeno à chuva
do teu cuspe, inestimável
senhor de eco intumescido:
até que a mula
aqui fale
como manda
o figurino,
e encontre a exit
de quem às caras
me dera lamber o mundo
com a própria língua: mulo
fundindo
com a função da forma
os extremos do exorcício e
a fanfarra do sem categoria.
*
Mesmo o silêncio gera mal-entendidos (Edições Garupa, 2021) antologia 20 anos de poesia de Ricardo Domeneck. O livro pode ser adquirido aqui. Achamos que este é um dos livros do ano em língua portuguesa e, em jeito de divulgação/ celebração, ao longo do mês de Dezembro partilharemos neste espaço mais alguns trabalhos de Ricardo Domeneck.