"On weakened legs I walked around the town the whole day. I took photographs"

Poema de Katerina Iliopoulou
Tradução de José Luís Costa

Durante trinta anos, o fotógrafo húngaro André Kertész esgotou, caminhando,
a rede das ruas de pelo menos três cidades. Aos oitenta e cinco anos,
confinado pela tristeza ao seu apartamento da Quinta Avenida de Nova Iorque,
fotografa com uma Polaroid tudo o que encontra à sua volta.
Com os movimentos subtis de uma estátua de vidro, muda posições no quarto.
Altera o eixo de focagem do seu olhar.
Não precisa de ir a lado nenhum.
E diz: «Esquecia-me de comer. Tirava fotografias. Começava com a luz do sol
de manhã e esperava pela tarde. Fotografava e fotografava. Esquecia-me de tomar os
[medicamentos.»
Dois anos mais tarde, no livro que intitulou «Da minha janela», podemos ver
a cidade dissolver-se para lá do vidro, podemos ver a sombra duma mão ameaçar uma
luzidia maçaneta sem nunca a alcançar, um transparente busto de vidro digerir
devagar as árvores nuas do jardim, as torres gémeas acima do parapeito.
Podemos observar o que não vemos.
Depois voltou a sair. Fotografou no jardim o espasmo de uma menina a correr
e meia silhueta de um homem vestido de preto a desaparecer. Fotografou-se em Paris
a si mesmo, duplo, de olhos fechados, e uma porta branca espatifada e entreaberta [reflectida num espelho.
Todos os dias recolhe frágeis vespeiros sem mel
inquietos favos de zumbido.
Todos os dias os despeja para dentro do seu infindável arquivo.
Não tem modo de parar com isso
Não é um lugar donde lhe seja permitido fugir.
Cada formulação, cada fabricação da morte
ressuscita dentro do zumbido que pede mais.
Mais neve, mais uma rede de vestígios
Mais um reflexo da sombra na cal
Mais uma caminhada numa estranha suspensão de alegria
quando deixa que o ferrão o morda sempre mais uma vez.


O outro poema de Katerina Iliopoulou na tradução de José Luís Costa nesta série pode ser lido aqui.

Um poema de Tonia Tzirita Zacharatou

Ao longo do mês de Janeiro e Fevereiro daremos destaque na Enfermaria 6 ao trabalho de duas poetas gregas contemporâneas em traduções de José Luís Costa. Começamos com um texto da crítica literária grega Androniki Tasioula sobre o livro Segunda Juventude de Tonia Tzirita Zacharatou, um livro publicado pelas edições Thraka em 2020 e multiplamente premiado na Grécia, seguido de um poema da Tonia.


A propósito de Segunda Juventude de Tonia Tzirita Zacharatou

por Androniki Tasioula
tradução de Tatiana Faia

Do título “Segunda Juventude” percebemos já o tema dominante do livro: tempo. Numa entrevista a poetisa disse que queria registar a primeira juventude não como memória, i.e. muito tempo depois de ter terminado, mas que queria escrever o evento de tempos que se seguem uns aos outros em proximidade. Algo como uma reflexão em close-up, como se quisesse criar, paradoxalmente, uma sincronia entre a observação da experiência da sua primeira juventude e a sua experiência na carne.

No ensaio “O tempo das mulheres,” Julia Kristeva distingue o tempo das mulheres do tempo linear do calendário. Ela atribuiu ao tempo das mulheres as qualidades do cíclico e do eterno, num contraste com o tempo como nos foi conferido numa sociedade culturalmente patriarcal: como projecto, teleologia, perspectiva, progresso, frase gramatical: sujeito – verbo, predicado – comentários, princípio e fim. A forma como a poetisa procede à sabotagem de um tempo linear – masculino segundo Kristeva –, portanto, é não o deixando passar. No poema “Para lá do rio, um rio” ela escreve que “Eu/ todos os meus rios/ são/ imaginários./ Falar/como?” E, contudo, no mesmo poema ela escreve o seguinte sobre os rios: “Eles tentam escapar à metáfora/ que vê neles tempo que flui./ Rios querem ser rios/ para lá do cimento, para lá da metáfora.” Enquanto os rios poéticos reclamam a sua literalidade, enquanto recusam a metáfora do tempo que passa que tradicionalmente lhes é atribuída, eles procuram ser o que são.

A poetisa na sua “Segunda Juventude” metaboliza a primeira juventude na escrita poética, mesmo antes de esta se poder tornar uma coisa do passado. Ela retira a primeira juventude da sua casca linear, a que quer passar e terminar. A poetisa cria um enclave para a segunda juventude preservar em si a primeira. E por isso no poema “Dendrologio” (“Arboreto”) ela torna a idade humana semelhante à idade das árvores. De facto, o tempo que rodeia o tronco da árvore que cresce com mais uma camada de casca, incluindo todas as outras até ao primeiro rebento, é o tempo eterno e circular, certo?


DEMASIADO CEDO FOI TARDE DEMAIS

Tradução de José Luís Costa

Creio
que me falaram desse
safanão que o tempo por vezes nos dá
quando nos encontramos ainda na mais jovem
na mais gloriosa idade da vida.
Vi-o
arrancar-me os traços distintivos um a um
mudar a relação entre eles
tornar
maiores os olhos
mais triste o olhar
mais determinada a boca
marcar-me a testa com vincos fundos.
Não tive medo: observei-o
enquanto trabalhava o meu rosto
com o mesmo interesse que despertaria em mim
uma leitura em que eu avançava.

"Pictures from Knopfli's airport" de Larry Sultan

para a Tatiana,
que conhece as margens do exílio

Não querias lembrar-te de nada,
além da soma de dois exactos impossíveis:
este nada que se recorda.
Nenhum futuro, nenhum passado
subsiste, além deste equívoco. E o presente
prende-nos como se fôssemos um assento 
perpétuo e infranqueável

num cinematógrafo.

Os nossos olhos, dentro de nós, abrem-se
como uma tela, revelando-nos a derrota
na sua mais plácida brancura.

Em vinte versos, dizem-me, escreveste a tua despedida.
Mas por muito mais de vinte anos lembraste
o teu rosto menino, o perfil 
dessa cidade.
Ainda aqui estás. Ouve-me. Leio-te, Rui,
sentado no terminal 1 de Madrid. E em vinte versos
invento um livro: voltas, abraças Kok Nam. 

Sultan apanha-vos.

E eu teimo acrescentar um 21.º verso,
em que vos crio a alegria e a saudade: de novo

ADÁGIO PARA ACOMPANHAR UM QUADRO DE GIORGIO MORANDI

Giorgio Morandi, Natura Morta, 1941, Museo Morandi

para o José Carlos Soares,

agradecendo-lhe essa manhã
em que me deu a conhecer o tulipeiro
da Virgínia e a magnólia-sempre-verde
que vivem na casa Tait

Espremo laranjas, ergo jarras e copos,
perscruto a minha sina de transplantar
herbáceos, tabuadas e calendários
de vaso em vaso.

No quadriculado da fantasia doméstica,
anoto tudo quanto um dia deixarei
demarcado como me não tendo sido pertença.

Destas e de outras matérias,
fundarei um dia a raíz lancinante
dos meus versos noutra boca
já amados ou dilacerados.

Destas e de outras alegrias
vos darei conta e deixarei abaixo assinadas
como tendo sido a senha, o dote e a fábula
de uma ciência imprópria à tenra idade
minha
e dos demais humanos.

Sei – porque me disseram –
que outros seres há de diversa escala e porte
capazes de perdurar 
por milhares e milhares de anos,

como se de uma breve nota
ou apêndice se tratasse:
falaram-me dessas árvores
que trazem água desde as funduras
até à parca superfície dos céus.

E ainda me alertaram
para a existência de certos
e microscópicos bichos,
ocultos, anónimos,
parasitários alguns,

que não deixarão pedra sobre pedra
no mito de eu assim ter acontecido,
enquanto corpo ou alma, filho de um deus
ou mero bicho de contas.

E por tudo isto me anima pensar
na vida lá fora,
como numa imensa selva
urbana, rural, com vastas vias
de lenho, cimento e seiva,
perdidas entre o bem
e o mal –

inauditos, interditos,
e inesgotáveis:

assim vos congemino,
assim vos projecto e examino,
ó corpos tão fora e tão dentro
de mim.

Cumprindo a minha estóica rotina
de preferir ao tecido do vivido
a lenta e afiada agulha
que tudo cose no que contemplo
ou imagino:

assim extraio este breve adágio
onde vos sou companhia

e com as mãos que me servem a escrita
retiro as pevides ao sumo sabendo 
alegremente

que certo dia a semente 
perfeita do nada serão 

somente.

como se te soprasse um beijo no ar

(de “assim guardamos as nuvens”, 2019)

como se te soprasse um beijo no ar
feito aquelas crianças que desviam a atenção da avó
e o circuito interno das coisas que não entendemos
funcionasse exatamente como o planejado
e a luz do céu então é este anil com violeta
assim posso te olhar do alto da ladeira e
como sabem os alpinistas e as cabras
também preciso aprender a descer

invento três ou quatro rimas
com o teu nome e vou perambulando
pelos quintais dos vizinhos
se arranco uma laranja deste pé
ela é doce, e ninguém me reprime

atravesso outro portão e na esquina
o hotel com as janelas abertas
todas escuras
e, se claras estivessem, 
o que saberíamos

apreendo o fruto como um antigo
e às vezes estou lendo qualquer coisa
e um estranho com colônia forte entra
no ônibus, nessa tarde parada
lembro do meu tio, pessoa desconhecida
que morreu jovem e me dava sorvete com vinho

e sinto que posso estar feliz sem planejar a chegada
sinto que estarei feliz só porque te guardo
e guardo tantas coisas que às vezes penso 
que só na saudade existe algo grandioso

e dou risadinhas discretas para não afetar os demais
e tento decifrar quantas estrelas já aparecem
e quando alguém resmunga eu não fico bravo
porque isso também é música

da sombra de uma cadeira de praia
um velhinho na Travessa dos Cataventos me saúda
e sei que estás comigo, estrela da manhã
sei que estás comigo, fazenda luminosa
porque eu carrego há anos uma fera
e quando ela se acalma o rigor do inverno
vai embora

e as árvores florescem e vêm comigo
e os pássaros voam e estão comigo
e a estrada está aberta e a noite é limpa