como se te soprasse um beijo no ar

(de “assim guardamos as nuvens”, 2019)

como se te soprasse um beijo no ar
feito aquelas crianças que desviam a atenção da avó
e o circuito interno das coisas que não entendemos
funcionasse exatamente como o planejado
e a luz do céu então é este anil com violeta
assim posso te olhar do alto da ladeira e
como sabem os alpinistas e as cabras
também preciso aprender a descer

invento três ou quatro rimas
com o teu nome e vou perambulando
pelos quintais dos vizinhos
se arranco uma laranja deste pé
ela é doce, e ninguém me reprime

atravesso outro portão e na esquina
o hotel com as janelas abertas
todas escuras
e, se claras estivessem, 
o que saberíamos

apreendo o fruto como um antigo
e às vezes estou lendo qualquer coisa
e um estranho com colônia forte entra
no ônibus, nessa tarde parada
lembro do meu tio, pessoa desconhecida
que morreu jovem e me dava sorvete com vinho

e sinto que posso estar feliz sem planejar a chegada
sinto que estarei feliz só porque te guardo
e guardo tantas coisas que às vezes penso 
que só na saudade existe algo grandioso

e dou risadinhas discretas para não afetar os demais
e tento decifrar quantas estrelas já aparecem
e quando alguém resmunga eu não fico bravo
porque isso também é música

da sombra de uma cadeira de praia
um velhinho na Travessa dos Cataventos me saúda
e sei que estás comigo, estrela da manhã
sei que estás comigo, fazenda luminosa
porque eu carrego há anos uma fera
e quando ela se acalma o rigor do inverno
vai embora

e as árvores florescem e vêm comigo
e os pássaros voam e estão comigo
e a estrada está aberta e a noite é limpa

não venço o medo diurno

não venço o medo diurno
o qual carrego pelas avenidas 
em flores, pelas pontes silenciosas

chamo as coisas que conheço
pelos seus próprios nomes:
cadeiras, tábuas, despedidas
desespero

as que não conheço, ou que
estão para mim como o poente
amarelo, crio fisionomias:
alto, esguio, imponente
miúdo

à noite, não tenho medo
bebo como um animal sadio
pronto para sair e não 

voltar.

[meu avô tinha dois grandes medos]

meu avô tinha dois grandes medos
tomar bofetadas no saco e ser enterrado
vivo. uma vez o vi colocando meias dentro
das calças porque no dia anterior quase brigou
com outro velho no mercado

quando meu avô morreu, eu me aproximei do caixão
e beijei sua testa, é pro teu bem, eu disse
e ameacei bofetear o seu saco
ele não se mexeu

minha avó disse que quando se casaram
ele queria viajar, viajar sem parar
por isso suas roupas estavam sempre bem dobradas
e no entanto nunca saiu da sua cidade natal

depois de um tempo compreendo que o seu maior
medo não era bem esses dois, mas algo que o ocupou
toda a sua vida e que, pelo menos a morte, poderia sanar

algo como fazer as malas
e nunca partir