Carta póstuma

Lídia,

 

   de todas as perguntas que me fizeste, nunca me perguntaste se eras feliz. Estranhei-o a primeira vez em que fizemos amor – e não porque o quarto fosse demasiado pequeno, a luz demasiado pálida, eu demasiado gordo ou tu demasiado jovem. Talvez me digas que estavas com vergonha de mim, mas hoje sei que não foi essa a razão. Na última carta perguntavas-me porque nunca mais nos deixámos, mesmo quando foste para Boston e nunca mais voltaste, mesmo quando compraste aquele horrível Mercedes, dois homens e quatro filhos. Hoje sei porquê: foi porque nunca me perguntaste se eras feliz. Naquele dia – lembras-te?, tenho a certeza de que sim – tínhamos ambos bebido de menos. Apenas uma tímida cerveja a meias, naquela tasca demasiado limpa, a cheirar a plástico e a luz fluorescente. O empregado perguntou-nos de onde éramos. Dissemos a verdade: éramos dali. Falta de imaginação. Culpo aqueles guardanapos que se usavam na altura, um papel ríspido que agredia mais do que limpava. Ficava a sujidade nos lábios. A tua carta pôs-me a pensar nesse dia. Já andávamos aos beijos há algum tempo, e eu dizia-te que podia esperar, que não tinha pressa. Que besta. Tinha quase cento e quarenta quilos, mais dez anos que tu, um chapéu de quadrados e um perfume insuportável. Tu estavas na tua fase gótica, metro e meio – nunca mais cresceste – e tacão de três metros. Peroravas o fim do mundo, os masturbadores de autocarro, as porradas do pai, os toques do tio, as bebedeiras da mãe. Mas eu queria levar-te para a cama e teria ouvido qualquer coisa. Aquele café tinha uma fachada toda em vidro, e recordo-me que um cão velho e doente parou mesmo à frente e pôs-se a cagar, com aquele ar condoído e idiota que só os cães têm quando estão naqueles preparos. Lembro-me porque estava a olhar para ele quando disseste que me amavas. Não me perguntaste se eras feliz, não, tinhas de dizer que me amavas. Olhei para ti perplexo. Sorri e disse-te “amo-te”, por instinto, como quando nos batem no joelho e a perna se mexe sozinha, e enquanto o dono do cão recolhia num saco de plástico o cagalhão – uma novidade, na altura. Pouco depois estávamos naquele minúsculo apartamento cheio de bolor e tinta velha, a fazer amor pela primeira vez. “Amo-te”, disse-te eu, de novo, para me castigar. Nunca senti nada disso – como tu bem sabes – nem hoje, apesar de nunca te ter deixado, e apesar das poucas mulheres com quem estive. Sempre fui gordo demais e famoso de menos. Agora estou velho, flácido, ridículo, e já não tenho paciência. Desculpa-me escrever-te desta forma, mas a tua última carta irritou-me. Dizes que não estás feliz. Balelas. Que tens saudades daqueles tempos. Tretas. Mas exactamente do quê é que tens saudades? De mim? Daquele café nojento? Das vezes em que o fizemos? Do meu coiso pequeno? De nunca te vires? De dizer que te amo? Das paredes mal pintadas? Do cheiro a roupa húmida? Não sejas mentirosa. Não tens saudades de nada disso. Se tivesses saudades seria de não te pesarem os anos, de não os teres vivido, de não teres comido, fornicado, trabalhado, cantado, conduzido, parido estes anos todos. Mas nem sequer é disso que tens saudades. Eu sei do que é. Há uma razão pela qual nunca me perguntaste se eras feliz. Tinhas medo que eu te dissesse “não sei”. Talvez fosse isso o que te responderia. E os teus saltinhos anarquistas, o teu peso funerário de vão de escada, o teu esgar filosófico perante a inevitabilidade da morte ruiriam. Querias um retumbante “não”. Categórico, curto, eficaz. Não querias que eu te tirasse a virgindade e a seguir sugerisse que talvez não fosses tão infeliz como pensavas. Foi por isso que nunca me perguntaste se eras feliz. Mas olha, vê bem, é desse susto que sentes falta. É desse limbo que tens saudades. É dessa angústia. Foi por isso que nunca nos deixámos. Portanto, meu amor, não me lixes. Esses prédios sujos, esses homens, esses filhos ranhosos e incompetentes, essa tua gente condenada ao lixo e barricada em Mercedes, nada disso te faz infeliz. Porra. Finalmente ficas a saber. Admite. Tens dentro de ti uma centelha estupidamente feliz. Não és como eu. Desculpa, mas não és perfeitamente infeliz como eu. E bem sabes que sempre fui um lamechas, especialmente depois de deitar abaixo uma garrafa de Tequilla. Portanto, aqui vai: de facto, tu, tu merecias melhor. Merecias que o teu primeiro homem, o que sempre ficou, te considerasse profundamente infeliz. Desculpa-me. Mas não és. Nem por sombras. Nem por sombras, meu anjinho.

 

Com amor,

 

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carta de género

olá

 

   nunca te contei isto. tinha dezoito anos quando fui pela primeira vez e última vítima de violência. na altura tinha duas casas seguidas uma em cima da outra em baixo e por acaso saí à rua com a companhia da altura que trazia dois sacos de compras e tinha trinta e quatro anos. tinham pouco peso os sacos os anos não pesavam-lhe muito ai se lhe pesavam lembro-me que num deles os sacos não os anos nem vinte bacalhaus estavam é claro que estavam secos naturalmente não lhe ia passar para a mão vinte e três bacalhaus debulhados ou demolhados não sei como se diz às searas sempre tratei com respeito e o outro saco tinha apenas vinte e quatro sacos de sal admito que talvez fosse muito mas afinal aquele exercício todo agachamentos aulas yogas posturas alongamentos e pesos é para quê ah e tal e eu desde o meu acidente custa-me pegar em coisas. no final do dia nem quinhentos quilómetros eram queixa-se com voz irritada horrível ah e tal amor detesto que me chame amor já lhe disse para me tratar pelo meu nome queixa-se ah e tal amor já me cansa tu também podias levar um dos sacos e eu respondi está bem eu ajudo-te que pena eu também não estou mal da cabeça respondi eu ajudo mas entretanto peguei num dos sacos e nem vinte metros andei e tive de descansar trinta e quatro horas sabem as minhas cruzes não tenho culpa nem tenho de me sentir mal por isso era o que faltava temos de ser uns para os outros e viu-me naqueles preparos e disse deixa estar eu levo e eu disse-lhe tudo bem pega em tudo e logo ali foi a primeira violência olhou para mim olhos nos olhos e percebi nitidamente que me estava a tentar magoar electromagneticamente que estava a dizer preguiças não pegas nem num saco e deixas-me aqui com este peso todo e eu a pensar mas que besta então não percebe que o cansaço em mim é imenso não é fácil estar vivo e andar de vez em quando a pé reparem não é para todos logo ali ficou tudo estragado. passados duzentos quilómetros estávamos nós a chegar à outra extremidade do mundo continuava com aquelas trombas agressivas e percebi que tinha dito qualquer coisa entredentes talvez mesmo só no seu pensamento e eu percebi é pá esta coisa aqui é mesmo indelicada só pensa em si então tanto exercício para quê aqueles agachamentos pesos corridas yogas aulas vídeos crossfitting babylifting romewatching touristing e tal. sim tem tempo para isso lá eu não não tenho tempo para essas coisas. bom a coisa já estava azeda entre nós quando reparei que me disse algo como essa merda do saco estava pesada podias-me ter ajudado não disse com palavrões mas disse-o com  agressividade extrema e calma grotesca quase a roçar o grito contido parecia uma rolha de champanhe a rebentar e logo ali estremeci caramba as pessoas não me criaram para estas coisas comigo sempre foram delicadas comigo nunca me habituaram a este tipo de violência extrema e calei-me logo ali nem lhe dei hipótese àquela coisa. durante trinta dias nem nos falámos bem que tentava mas eu toma lá disto e toma lá daquilo quando falávamos eu dizia-lhe aquelas coisas normais não tens maneiras não és uma pessoa feliz devias procurar um psiquiatra tu não és normal a tua infância não valeu nada não sabes viver em sociedade se morreres nem dou por isso a tua mãe isto o teu pai aquilo e outras coisas ainda mais verdadeiras nem me lembro bem. quando olhava para mim eu desviava o olhar e quando tentava falar comigo eu respondia-lhe mas com muita cautela porque a mágoa era imensa e nem todos os dias se é vítima de violência e eu nem devia ter perdoado da primeira vez. entretanto foi preciso carregar mais quatrocentos e vinte quatro sacos de bacalhau perguntas para quê tanto bacalhau sei lá é absurdo mas eu até carreguei cem repara que apenas carregou com os outros três terços afinal tanto exercício é porque tem tempo não é e é mesmo assim aquelas aulas todas e mais os agachamentos e as dietas e os alongamentos e os abdominais e pronto já sei a minha forma não é a melhor mas até parece que temos de ser todos fortes que nem touros isso é um preconceito já não estamos no século dezanove. disse-lhe nunca mais te vou pedir mais nada ouve lá que parvoíce da tua parte nunca mais nunca mais. entretanto ao quadringentésimo vigésimo quinto saco gritou pega nesse pá mas disse-o com tal raiva no olhar e com tal berro que eu decidi nunca mais haveria diálogo entre nós. e é assim que devemos ser já basta. até havia coisas boas na relação cozinhava bem e tinha a casa arrumada mas é isso que pensam todas as vítimas de violência antes de serem assassinadas já lhe disse temo pela minha integridade física a sério qualquer dia ainda me matas ah sim pote de merda ainda no outro dia tive oportunidade de dizer que não vales nada e que não me mereces andar para aí mas não vales nem metade da minha integridade moral em comparação comigo és uma lesma moral um escroque moral um cagalhoto moral e podia continuar por aqui fora mas não tenho paciência não entro no teu jogo prefiro ficar em silêncio porque assim é melhor e tu também já que não dizes nada de jeito é melhor calares-te a não ser que tenhas um tema interessante estás sempre de boca calada és horrível devias ir a um psiquiatra a tua infância foi difícil não foi até estás bem mas eu não deixo de ser uma vítima disto e estou para aqui mas é horrível temo pela minha saúde. por isso por favor se alguma coisa me acontecer já sabes com quem me casei. casei com uma besta quando tinha dezoito anos. ainda bem que já passaram outros dezoito desde o meu divórcio mas nunca nunca permiti que nada semelhante me acontecesse outra vez. era o que faltava. ainda me lembro da última vez em que discutimos. tudo a propósito de um dia ter insistido em ser o que era quando já lhe tinha dito que aquela forma de ser para mim não dava. que horror. ainda me lembro de lhe ter dado um tiro nos cornos. sim cumpri dezoitos anos de prisão mas não considero violência era o que faltava. é que estávamos na rua. saquei do meu revólver era a primeira vez que escrevia a palavra e lá vai disto pum pum pum pum quatro tiros à queima roupa. nem tremi. afinal tive uma infância melhor que a tua. veio a polícia. ficaram admirados com o meu género e com a forma como os leitores lêem esta carta que não atribui género a qualquer um dos seus sujeitos ela ele etc.. e o resto já sabes toda a gente sabe é como se o sujeito tivesse que ser forçosamente tu sabes o quê. discriminação. todos nós lemos como queremos.

 

angra do heroísmo

agosto de 2018

Carta sobre "cinema circular" de Frederico Klumb

 

Fred, mano,

na segunda eu terminei de ler o seu cinema circular. você ter encasquetado, ido pro quarto de noite e ficado trabalhando numa plaquete em casa que na mesma noite já era uma plaquete impressa, feita, com selo - "transferidaça", que é um baita nome - capa, dois tipos de papel, achei tudo isso uma loucura bonita, foda. no mesmo dia ou depois de ter comprado a plaquete, não lembro, fui pra internet olhar preço de impressora, olhar guilhotina, me deu vontade de transformar o escritório num cacete de uma gráfica e aí ninguém seguraria a gente. esbarrei nos preços mas continuo animado. isso foi de uma vitalidade imensa. a gente fermentando livros na madrugada, quase clandestinos, eu imaginando aqui que seu livro tá pronto há bastante tempo e não sai e você resolveu publicar outro, um novo, na calada da noite. isso foi bonito, me encheu de orgulho e de suingue, coragem, nó na garganta também porque tenho ficado frouxo esses dias. nada mais acertado dizer que o verso de um dos primeiros poemas do cinema, "todos os dias há alguém parindo a noite". e é legal isso ter vindo de você, que é notívago, talvez não por opção, mas por circunstância agora. acho que uma hora isso muda. não quero que deixe de amar a noite. eu amo. mas desconfio que logo você vai estar esse trem bala de dia também.
e depois vem um "o sol esquenta as penas", com a referência ao Gullar do "Galo galo", mas autônomo, porque realmente as penas são infinitas e aquecer o coração delas é importante. ah, dá uma olhada na p.16, tomara que faça outras tiragens, tem um “do olhos”, que acho que devia ser “dos olhos”, e talvez, agora não tenho certeza, um “a terra” em que cabe crase se eu tiver entendido direito. você se vendo no gato e terminando o texto com desespero por conta de um cachorro que está alto, "o cachorro está alto" é a frase, isso é uma joia, e a conversa entrecortada dessa e da outra prosa da plaquete, a primeira uma conversa desconfiada, a segunda um sonho, mostram uma vontade nossa de contar, de narrar, que eu imaginei que viria, e veio. no seu caso é justo porque já vem do roteiro pra cinema antes, mas a prosa é incontornável. eu também devo ir pra cima dela se deixar de chororô um dia.
vi o Ítalo do seu "moro do rio" que fecha um dos haiku, no seguinte achei bonito um aprendizado do sono que você foi caçar nas traças, é legal ir vendo o poeta e a pessoa dentro do texto, sei que pena pra dormir às vezes. como é doce o livro. é doce. doce como o sergio uma vez me disse que o chacal era doce, doce como quando a gente tá triste mas começa a achar as coisas bonitas mesmo estando triste, doce como o Gagarin do Eucanaã. bonito, doce.
o último poema antes da terceira parte foi o que mais me chamou atenção na primeira lida, acho que pela semelhança de traquejo, mas também porque, pensando agora, a noite que vinha até aqui sendo a noite doce, do trabalho, da criação, da invenção da própria noite a cada noite, muda de figura. a noite que você vinha armando era a noite divina, uma que só existe se empenharmos trabalho e fé, como se ela precisasse ser fabricada pelos fiéis. agora não, a noite vem como Saturno, no último poema da segunda parte aparecem os pastores de ovelhas e o canto deles que sei que te encantou num filme, que filme era mesmo? e os bichos se substanciam naquilo que os mata, passam a ser feitos de lâmpadas. o céu é imenso, os pastores menores, as ovelhas ainda menores, os bichos que batem a cabeça nas lâmpadas no verão menores ainda e o poema ganha a proporção que precisa para falar das abelhas que a noite engole. a noite imensa, voltando à proporção do céu que inicia o poema, se indigna a ir comer as abelhas. e come porque são dela: eu as faço, eu as como. concordam a noite e saturno num "mundo irremediavelmente aceso". e aceso pra contrastar com o breu da noite e da morte, mas também pra lembrar dos holofotes da guerra do Pasolini no tantas vezes retomado texto dos vagalumes, eles também tão pequenos e arriscando serem comidos pelos holofotes num mundo claro e branco e aceso que nos tem cegado e nos cega.
quando vem a prosa que na prática fecha círculo do cinema circular, a gente larga tudo, já que é um sonho, larga a noite, os bichos, e vai pra uma cena arquétipo. como pode algo ser tão signo de uma comunidade como uma jangada com casais e seus bebês carregando um oráculo pelo mar. o oráculo é jovem e gordo e grita "miracolo! miracolo!", como num Fellini, o som estourado e algo espantoso que só espanta o espectador. 
o absurdo permanece comum para quem o fabrica. deve ser isso. queria ver isso desenhado. essa jangada com o miracolo.

Um abraço, obrigado por mais essa.


Heyk
21 de março de 2018.
 

Querido trágico

Querido trágico,

   por alguma razão a ópera morreu. Não que estivesses fechado dentro dela, os monstros agora já não estão vazios, decorrem. Há algum tempo dir-te-ia que nunca poderias proibir Turandot de gritar, mas agora não estou securo, sabes, perdi as tuas coisas. Tinha-as demasiado perto e gritavas, casa com a mãe, casa com a mãe, pobre rapaz, tinha pena de ti, as tuas histórias vinham sempre uma oitava acima e tinham ritmo por trás. Escrevo-te por uma razão. Tenho sempre uma razão, nem que seja porque aranha e razão partilham diversas letras. Vivo neste mundo pós-mundo, sabes, a religião agora não tem crucifixos nem ateus, fica parada, estamos todos tão presos, sabes, derramam as letras e elas formam-se em forma de crucifixo. E pensas: lá do oriente, lá do oriente, mas os antropólogos deram cabo disto tudo, sabes, sei que sabes muitas coisas, querido trágico, ficas aí tão no teu milénio, mas eu tenho modernices, sabes, posso “telefonar-te”, e depois tens de me pedir desculpa e dizer: “continua lá a falar do teu trágico”, e eu digo “qual trágico?”, e tu respondes: “não somos todos uma tragédia, meu querido?”, e eu penso, querias que casasse com a mãe, não era, seu porco, mas não, não, nunca matei nenhum pai, quer dizer, matei já trinta ou quarenta, mas nunca um, e tu perguntas, “confessas?” e eu: “confesso o quê?” e tu continuas-me a tratar-me por “trágico” e eu fico confuso, afinal que carta era esta, ouvida ao som de Turandot, eu fico a pensar, querido trágico, nervos e pele, pele e ossos, ossos e pó, pó e nada, nem sombra, sombras-me, e penso, “tragédia, meu querido?”, tragédia nunca vem do oriente, é sempre mais modesta, não tem escalas pentatónicas, nem hexatónicas, queria que criassem escalas sem notas, isto é, vicissitudes de som, desafinadas, queria que criassem, espero que leias estas notas em voz alta, soa sempre melhor, as pessoas lêem demasiado baixo, queria que os comboios se enchessem de pessoas a ler alto, Shakespeare de um lado, A Bola de outro, o Segredo dos Trinta e Sete de um lado, a Jóia de Peterson de outro e mais cinco mil livros que nunca existiram e no fundo o revisor seria verdadeiramente um revisor diria: “ponto e vírgula, senhor”, e outro responderia: “não aceito”, e tu, querido trágico, farias a tua fulgurante intervenção: “o senhor é pai deste senhor?”, e eu, eu seria forçado a dizer, enquanto lia, ou melhor leria do meu livro: “é sobre mim que fala, senhor?”, e o outro senhor ficaria na esquina, isto é, se os comboios tivessem esquinas, faria um leve diminuendo, e diria “Deus, que fazes?”, e outro responderia, “não sabes? sofro, sofro” e tu dirias: “mas vocês sofriam muito no século XIX” e tu dirias “no século xis i xis?” e tu pensarias: “que coisa esta, Turandot, Turandot, Turandoooooot?”. É claro, tens cinco tons. Não te cales por enquanto, estamos dentro da cena. “Deixa-me passar”. Deixa-me passar, não dividas atenções.

 

Com os melhores cumprimentos, e aguardando resposta,

 

Pedro Braga Falcão

Carta do Grande Maestro Adolph

Caríssimo Senhor,

    provavelmente não me conhecerá, mas por razões bastante recentes fiquei incapaz de me dar a conhecer senão por carta. Fará tudo isto parte do rumo natural dos acontecimentos e de uma certa e continuada estratégia, que logo me dirá se será a mais acertada. Além disso, tornei-me verdadeiramente incapaz de prever o futuro, se é que alguma vez fui, a partir daquele dia em que, como lhe explicarei, a minha vida se tornou assim como que compacta.

    Os factos, que poderão parecer à primeira vista um pouco corriqueiros, ou até monótonos ou aleatórios, revelar-se-ão de uma importância capital, pelo menos no que diz respeito à minha pessoa.

    Mas para que saiba quem lhe escreve, apresento-me com a humildade possível dado o presente transe em que me encontro: sou Adolph Schindler, outrora braçudo e façanhudo contabilista das Indústrias Palhod, que, embora parecendo um anagrama demasiado óbvio, corresponde inteiramente à verdade do seu nome (das Indústrias, não do meu nem do seu, bem entendido), fábrica essa que se dedica à construção de térmitas, um processo que eu próprio nunca entendi muito bem; confesso-lhe que com insectos, tirando um ou outro por quem me encantei na juventude (quem não o poderá dizer?), nunca estabeleci a mais flébil relação.

   Não querendo tomar demasiado o seu tempo, até porque adivinho a enormidade e velocidade das constantes solicitações a que vossa eminência altíssima seguramente estará sujeito, exponho-lhe muito sucintamente as razões desta minha carta. Aspiro, fundamentalmente, a uma posição semelhante à de vossa senhoria numa firma análoga à de vossa mercê, e nesse sentido, e para me preparar para um tal caminho, venho procurar junto de si conselhos acerca de uma linha de acção que me permita vir a exercer funções pelo menos aproximadas daquelas que vossa reverência executa no seu dia-a-dia. Mas antes de avançar, perguntar-se-á seguramente porque lhe escreve um contabilista, cujo ofício de números tão pouco se irmana com o seu, e porque procura uma carreira semelhante à sua?... O que a seguir lhe historio tornará a questão mais evidente. Deixe-me, pois, que lhe narre o momento da minha vida em que tudo se arrevesou, os factos a que me referia ainda há poucas linhas, e que predicava de aparentemente banais. Tentarei ser breve.

No passado mês, estando eu intestinamente agastado, “afrontado” seria talvez melhor palavra, depois de uma refeição particularmente opípara e volumosa, dei por mim a dar um longo passeio a ver se tais tormentos amainavam; quis o destino, porém, que, ao passear pela Rua dos Parênteses, abundante, como de certeza não ignora, nas mais variadíssimas lojas de antiguidades, entrasse num estabelecimento comercial que se dedica àquilo que com certeza será a sua única paixão, a música.

   Na verdade, andava já bastante agoniado com a minha situação “de baixo-ventre”, chamemos-lhe assim, e anelava, qual salmão contra a corrente lutando para cumprir a sua natureza, por um espaço onde pudesse dar alívio a esse meu tormento, preferencialmente num espaço com recato acústico. Pareceu-me, então, divisar através da montra ornamentada com uns quantos instrumentos musicais, uma pequena porta que parecia revelar a da almejada salvação. Nunca fui particularmente arrojado ou fértil em metáforas ou comparações, mas deixe-me que lhe diga que tamanha provação, tamanha aflição nem mesmo o nosso primeiro ministro experimentou quando foi acusado de exercer política. Uma loja de música pareceu-me também conveniente, uma vez que o silêncio, pelo menos do ponto de vista teórico, não parecia fazer grande sentido num espaço como esse, isto considerando o único desenlace possível de uma circunstância tal como a que vivia no meu interior. Depois de olhar apressadamente à minha volta, em suores frios e sem grande atenção ao que quer que fosse, após um período de tempo socialmente aceitável, pedi licença de utilizar o quarto de banho, que me foi gentilmente cedida. Perdoe-me que lhe narre tais sórdidos pormenores, mas como verá em breve eles assumirão uma importância fulcral. Bom, após bastante tempo, pude sair daqueles preparos e respirar de alívio; eis se não quando me deu no entendimento observar com mais atenção o sítio onde estava, a loja de música, bem entendido, não a latrina, que entretanto dela tinha já saído.

    Como poderei descrever-lhe por palavras ou grunhidos a maravilhosa e extraordinária panóplia de instrumentos que o ser humano criou na sua arte e engenho musicais? Com certeza a sua vocação e o facto de todos os dias contactar com tal extraordinário portento de criatividade não lhe hão-de fanar o quotidiano espanto perante uma tal diversidade de feitios, formas e cores. Conquanto desconheça de todo como soa ou mesmo o timbre particular e característico que cada um destes lagares de Apolo decerto terá, não consegui deixar de suspeitar de que o som desses instrumentos extraordinários e inimaginavelmente compridos ou tortos seria melífluo, bondoso, ou mesmo pastoso ou gelatinoso. Gelatinoso, perguntará? Eu também me pergunto, mas não para o pôr numa posição triste ou difícil, apenas para chegar àquilo a que quero chegar desde o início desta carta, que infelizmente vejo agora que já vai longa demais para um formato moderno, digamos assim. Espero que tenha paciência de me ler um pouco mais; creio que valerá a pena.

   Enfim, perante uma tal maravilha, que nem Pânfilo teve perante o ocaso do Pigmalião dourado de Dublin, que nem os heróis terão perante as portas escancaradas de Valhala, que nem as Valquírias terão perante os cruzamentos da Via Ápia, perguntei-me: “Meu caro Adolph Schindler, não terá você passado ao lado da sua verdadeira vocação?”. Poderá estranhar porque não me tuteio na minha intimidade, excesso de zelo, pensará Vossa Excelência, não será tanto quanto uma espécie de reverência a que me forçou aquilo que a seguir lhe narro. Experimentando um ou outro instrumento com afinco e muito zelo, um violino, um clarinete, um saxofone e uma harpa (repito-lhe os nomes que o lojista me ia sussurrando), fiquei rapidamente frustrado, dada a complexidade e dificuldade no manejamento de tais organelos. O violino parecia que gemia em agonias de cabrito recentemente privado de sua terna mãe, num pasto recentemente abrasado pela Canícula, o clarinete e o saxofone insistiam num silêncio agoniante perante o carácter óbvio da sua instrumentalidade e o esforço do meu sopro; de todas aquelas ferramentas, foi a harpa a que mais me seduziu, mas cedo constatei que as suas possibilidades e recursos eram limitados àquilo que, segundo me explicou o lojista, eram meros glisssandi, ou seja, a passagem afectuosa do dedo pelas cordas para cima e para baixo, o que embora esteticamente viável, não é propriamente a única coisa de que se está à espera num instrumento, pelo menos não eu, ainda que, reitero, nunca tenha ouvido muita música na minha vida, se mesmo alguma.

   Veio então o momento que, assim o espero, me transformou para sempre; “para toda a eternidade”, seria talvez melhor expressão que o descrevesse, considerado o caminho que encetei a partir desse auspicioso momento. Atrás de uma flauta, escondido, quase envergonhado, estava um pauzinho, um pauzinho pequenino e desamparado, tal como nunca vira, com uma espécie de rolha de cortiça arredondada na parte inferior, digno, delgado e cândido no restante corpo. Chamei-lhe “pauzinho”, mas o senhor da loja prontamente me corrigiu; chamou-lhe “batuta”, e peço aliás que confirme se é assim que se chama, pois por vezes somos enganados, vendendo-nos gato por lebre, mesmo que seja somente em palavras e não em coisas, como é o caso. “Que som faz?”, perguntei-lhe, ingénuo, inocente. “Nenhum”, respondeu-me com a bonomia de quem reconhece no outro a indiscutível e imediata centelha do talento. “Mas isso é o ideal...”, respondi prontamente, sem querer entrar em grandes pormenores, até porque neles não poderia entrar. “E como chamam ao ‘batutista’, à falta de melhor expressão?”. “Maestro”, foi a resposta, grandiosa, infinita, gulosa.

   Eu que, embora sendo contabilista sempre soube reconhecer a excelência, não pude deixar de constatar que ali estava um cargo invejável. E logo ali tratei de fazer tudo para me tornar também eu um maestro, começando exactamente por comprar a batuta. Dir-me-á: um passo pequeno. Sim, reconheço, mas também enorme naquilo que representa para mim, e por inerência, para o mundo. E é precisamente nesse sentido que lhe escrevo, rogando os seus conselhos, decerto avisados. Pois quem melhor do que o artesão para explicar o seu próprio ofício? Pergunto-lhe, portanto, por onde devo começar para me tornar o maestro de uma dessas firmas como a que o senhor dirige? Agora que já tenho a batuta, como aprofundo o meu ofício? Fiz bem em abandonar a minha carreira com efeitos imediatos e não retroactivos?

Já agora, tendo estudado um (muito) pouco sobre o assunto, veio-me à mente, enquanto escrevia, um outro tipo de perguntas sobre as quais, se tiver a bondade, poder-me-á elucidar. O que é uma colcheia? Porque há tantos instrumentos? Porque é que não se escreve música como se fossem letras? Porquê aquelas cinco linhas? Quanto à géstica em si, devo-lhe dizer que tenho feito grandes progressos; havia vossa excelência de me ver manejando a batuta com bravura e galhardia, a forma como desenho agitados e grandiloquentes círculos no ar, e como eles se abafam no infinito do chão, como se todo o mundo se prostrasse à magnificência e potestade do meu gesto, com que honestidade a ponta do madeiro se eleva nos ares para logo grácil de deslocar ora para a esquerda, ora para a direita, e sinistra e dextra, assim por diante, até tudo culminar num único gesto resoluto e convicto, que tudo faz cessar.

    Mas para que saiba que nem tudo em mim é talento ingénito, deixe-me confessar-lhe que estes ensaios que descrevo se baseiam numa admirada contrafacção (não tenho melhor termo) que tenho feito de si, baseada na primeira e única apresentação musical a que tive a honra de assistir, na passada sexta-feira, que a sua firma executou no Grande Auditório; vi-o empoleirado, soberbo, impante como eu desejo ser, cheio de silenciosa verve, cheio de majestade, cheio de presença, hirto, rijo, tonificado embora avantajado pela natureza, alto, e vi o suor escorrer artisticamente do seu rosto, adivinhava a forma como a sua face se iluminava e enrubescia, ou se irritava e agredia, e deixe-me que lhe pergunte, no meu entusiasmo: porque nos mostrou sempre as suas costas, excepto quando o aplaudiam?... Porque não nos deixou ver o seu douto ar seráfico e angélico percorrendo as planuras daquela sala, os eróticos esgares de todas e todos aqueles que o escutavam, porque não nos encarou constantemente com toda a sua magnificente plumagem, com a costura impecável do seu fraque, com a juventude da sua iniciativa privada, o empreendedorismo das suas articulações?... Devo também fazê-lo?... E aquelas pessoas à sua frente, o que faziam?... Porque se esforçavam tanto com os dedinhos para cima e para baixo? Sempre acabei por ouvir, a custo, uma daquelas coisas produzidas pelo que eu reconheci como uma harpa, os tais glissandi, como assim que lhe chamou o lojista; mas diga-me, o salário de um tal intérprete deve ser exíguo, que outras actividades enceta para completar o seu pecúlio?... Bom, mas isso tudo serão pormenores necessariamente acessórios. Os músicos, os instrumentos, serão com certeza fait-divers; a mim o que me preocupa verdadeiramente é isto, resumindo numa só pergunta, ou duas: o que devo fazer agora, que tenho a minha batuta? Que passo seguro me aconselha a dar?

Com os melhores cumprimentos,

Adolph Schindler