Costa e Kiarostami: o respeito pelo real

por Tiago J. Silva

Estabelecer pontos de contacto e factores de aproximação entre as obras de Abbas Kiarostami e Pedro Costa é tarefa que ocupa não só os críticos mas também, e não raramente, os próprios realizadores, que tecem considerações sobre estas possíveis inter-relações. A movimentação num universo cinematográfico que partilha inúmeras semelhanças éticas e estéticas não passa despercebida aos programadores de cinema mais atentos — recorde-se, por exemplo, a certeira rentrée da Cinemateca Portuguesa em Setembro de 2013, que conjugou o lançamento do livro O Caderno de Casa de Lava com a antestreia nacional de Like Someone in Love, projectando em conjunto ambos os filmes. Enquanto Costa é um dos mais proeminentes herdeiros de um projecto ambicioso de docuficção fortemente influenciado pelos ensinamentos de António Reis, Kiarostami reclama para si próprio a árdua tarefa de realizar um cinema realista sustentado no seio de uma cultura iconófoba, em que a função da imagem assume sempre um carácter problemático. Com formações culturais e profissionais diametralmente opostas, os cineastas encontram-se na sua interpretação singular dos pressupostos do cinéma vérité

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“Pride” de Matthew Warchus (Reino Unido, 2014)

http://www.hollywood.com 'Pride' Trailer Director: Matthew Warchus Starring: Bill Nighy, Andrew Scott, Dominic West UK gay and lesbian activists work to help miners during their lengthy strike of the National Union of Mineworkers in the summer of 1984. For more movie trailers, celebrity interviews and box office news visit Hollywood.com!

“This is where we would kiss if we were normal”

A citação é uma frase dita às tantas por uma das personagens de Pride, e permanece no meio do filme como o epítome de um dos seus temas mais importantes: a busca pela mediação entre um sentido de diferença e identidade que só pode ser alcançada se o ponto de partida for a solidariedade. Neste sentido, Pride, baseado em factos verídicos, é um filme cheio de humanidade. O filme narra a improvável história de como uma associação de activistas gay veio a tornar-se uma das principais apoiantes de uma pequena comunidade de mineiros no sul de Gales durante a greve de 1984-1985, durante o governo de Thatcher.

Pride não é um grande filme no sentido em que, por exemplo, Twelve Years a Slave é um grande filme. Ambos partilham o facto de serem baseados em histórias verídicas, mas enquanto Twelve Years a Slave se torna uma obra de arte, com a qual temos uma relação ética complicada justamente porque ela atinge este estatuto (sobre isto já aqui se escreveu), Pride não é esse tipo de filme, mas tendo dito isto, é um filme cheio de pulso, baseado numa história cheia de alma.

Eleito, na estreia, filme da semana pela crítica da BBC (a fantástica dupla Mark Kermode e Simon Mayo), Pride é uma pequena história sobre como a solidariedade pode vencer a diferença e o preconceito e desse ponto de vista é uma versão trazida à escala de duas comunidades de um microcosmo de tenções que são em termos abstractos parte de todas as relações humanas. O peso da resposta que o filme nos quer dar acaba por pender completamente para o lado mais positivo dos actos e resoluções que essa escala emocional supõe. O lado mais comovente do filme (Mark Kermode diz que começou a chorar aos quinze minutos e não parou mais) depende em grande parte disso.

Pride é um filme que nos enche de esperança na humanidade, cuja imagem acabada é essa fábula sobre o poder de pequenas comunidades que se juntam contra os grandes poderes opressivos, dos quais fazem parte uma polícia sem grandes problemas em levar a cabo detenções ilegais no meio de uma população desinformada ou as primeiras páginas homofóbicas e pró-Thatcher do The Sun de Rupert Murdoch, elementos que configuram talvez uma das linhas mais interessantes do filme em relação ao contexto da sua estreia – esse comentário contra o poder da desinformação.

Poder-se-ia aqui parafrasear Lampedusa para arrumar este filme entre o número desses objectos contemporâneos que, completamente desprovidos de alma, nos dão a ilusão de que tudo está a mudar para que tudo possa, afinal, ficar na mesma. Nem sempre se pode ser tão cínico e é preciso admitir que, não estando do lado do Leopardo, proferir esta frase não nos dá muitas vezes mais vantagem do que tornarmos óbvio que estamos a ver o que está a acontecer, sem mais vontade de reagir do que um aceno enjoado de grumpy cat.

Uma última nota sobre interpretações. Bill Nighy alcança o prodígio de manter a mesma expressão durante todo o filme (com uma pequena, mas crucial, variação), o que paradoxalmente resulta numa interpretação excelente. Outra alegria que este filme nos traz é poder rever Dominic West, o McNulty de The Wire, e Andrew Scott, o actor  que interpreta Moriarty na mais recente versão de Sherlock da BBC (esta protagonizada por Benedict Cumberbatch e Martin Freeman), o que na ressaca pós-Sherlock, é sempre bem vindo (as séries são emitidas por vezes com dois anos de intervalo). Pride estreia em Portugal em finais de Outubro. 

 

Os pedaços de Simon

Simon (Brady Corbet) é um americano acabado de sair da universidade que, tendo sido abandonado pela namorada, viaja para Paris de modo a superar o desgosto amoroso. Precisa de esquecer a mulher. Sucede que em Nova Iorque, Londres ou Paris, a nossa cabeça é a mesma. Os fantasmas e fantasias acompanham-nos para todo o lado. Simon vê mulheres novas e bonitas mas não esquece a mulher que o deixou. Além disso, não sabe interagir com outras mulheres, faz má figura. Olha para duas parisienses e, qual marciano, persegue-as, faz-lhes perguntas descabidas, entra com elas no metro e, como não sabe dialogar como um terráqueo, segue viagem sozinho. 

O realizador americano Antonio Campos consegue em Simon Killer (2012) contar brilhantemente a história de um rapaz perturbado, auto-centrado, incapaz de gerar empatia. Simon conhece uma prostituta chamada Marianne (Constance Rousseau). Ela diz-lhe que ter sexo com ele será um real prazer, uma vez que todos os seus clientes são mais feios e velhos. Simon acredita e envolve-se, não se apaixona, que Simon nunca se apaixona. Ele sofre pela ex-namorada, liga-lhe incessantes vezes sem que seja atendido, mas não revela qualquer sentimento, antes obsessão, a mesma obsessão que o liga à prostituta. Estamos na presença de um narcisista que (só) chora por si mesmo. Campos apresenta os eventos a partir de fragmentos. O que temos é o olhar claustrofóbico de Simon. Não vemos as cabeças das pessoas mas um ombro, um pedaço da nuca, uma perna. Recortes. Um recorte da prostituta no chão. Uma perna coberta por uma liga preta e uns ténis converse a seu lado pertencentes a um homem aparentemente apático, submerso nos seus pensamentos sobre si mesmo.

Simon começa a viver com a prostituta. Não há amor. Repita-se. Amor não é obsessão. Em dado momento, Simon convence a prostituta a chantagear alguns dos seus mais ricos clientes, filmando-os enquanto fornicam. Não sabemos quais as motivações do par. Talvez uma forma de ganhar dinheiro. Uma forma de ir abandonando a prostituição. Simon só convence a prostituta a fazer algo do género por não sentir nada por ela e por ela já não saber amar como uma rapariga da sua idade deveria amar. O plano corre mal. Marianne é espancada. Simon vira-se para uma bonita francesa ao mesmo tempo que deixa a prostituta em casa, curando-se sozinha do espancamento. Também Simon acaba por espancar a prostituta quando se farta dela, quando ela já não lhe serve. Bate-lhe tão violentamente que se fica com a sensação (mas sem a certeza) de que a moça morreu. Simon acha que a matou e liga desesperadamente para a mãe e chora, chora, chora, parece uma criança arrependida, uma criança não verdadeiramente arrependida, desejosa de se livrar de qualquer condenação. Mãe, livra-me disto. 

Simon é um assassino, um canalha e um cobarde e nada de bom sentimos por ele. Não é daqueles anti-heróis que suscitam a admiração do espectador. O seu mundo é amoral e retalhado. Não o vemos procurar a salvação ou a cura para os seus desgostos amorosos. Simon é alguém que só consegue ser doente, obcecado, não existe bem nem mal no seu mundo, só patologia, pedaços de espelho espalhados por Paris, umas nádegas, duas mulheres perdidas na noite, um bordel qualquer, uma ex-namorada sem cara e sem voz. Uma espécie de incomunicabilidade. Simon é incomunicável. Fala para dentro, pensa para dentro. Nem o espectador sabe o que pensa. O realizador está de parabéns, criou um psicopata e fez-nos sentir repugnância ou desprezo pela personagem. 


To the Wonder

Ben Affleck é o actor perfeito para To the Wonder (2013). É  dos melhores actores sempre que o papel exija silêncio. Affleck não poderia representar Macbeth ou qualquer outro papel que requeira mais do que gestos e testas enrugadas. Este filme de Terrence Malick, unanimemente desprezado, merece mais atenção por parte de quem liga a temáticas como o sentido da vida, o amor e a sua efemeridade. O amor começa como um nascer do sol, sobe do estômago até à cabeça, e em certo momento toma conta do sujeito irremediavelmente afectado por uma obsessão, a de possuir a amada. Affleck é perfeito neste filme por nada dizer, por gesticular quando zangado, por abraçar quando apaixonado, por cruzar os braços quando confuso. O amor é silencioso, ataca-nos do nada e igualmente do nada entrega-nos a outros sentimentos como a raiva, o ódio ou o desprezo. O amor é  um homem à mercê da força do mar.

As personagens interpretadas por Affleck e Olga Kurylenko apaixonam-se e deixam de se ver. O amor que os une não morre mas aparece a personagem interpretada por Rachel McAdams a encobrir esse amor. O homem sozinho procura apaixonar-se outra vez, mesmo que seja impossível, procura apaixonar-se correndo atrás da loira. Porém, Olga Kurylenko reaparece com a sua paixão e na cara de McAdams só vemos tristeza. Ben Affleck vai cumprir o seu destino, que é estar ao lado da pessoa que ama. Sucede que estar ao lado da pessoa que se ama não equivale a ser feliz. Colocam-se diversas questões. Com quem estiveste na minha ausência? Por que motivo não conseguiste esperar? O que faremos com estas horas mortas? Discute-se por razão nenhuma. Agride-se por pouco. Duas criaturas que nunca deixarão de se amar não suportam a companhia uma da outra e separam-se. Separam-se para sempre. O homem fica sozinho no aeroporto vendo a amada partir. Há um sofrimento atroz. Aquelas duas pessoas amam-se e não podem, não sabem estar juntas, não se entendem. O que fazer com aquele amor que não deixará de existir? Ela viverá na Europa, ele nos Estados Unidos. Talvez nunca mais se voltem a ver. O que fazer com aquele amor que nunca se extinguirá? Esperar que apareça outra Rachel McAdams ou deambular ou beber, beber até cair ou esperar sentado na casa vazia pela serenidade que permitirá aceitar que aquele amor nunca poderá conduzir à alegria?

O homem não tem respostas, o filme não é de respostas, o filme é sobre sentimentos, sobre nuvens, marés, amor, desaparecimento, esquecimento e dor. Talvez não seja um grande filme, como a unanimidade crê. Que importa se lá se encontra a poesia que não se vislumbra em tantas centenas de livros?

SKIN DEEP

    Só por cansaço ou embutimento dos sentidos tomamos por “natural” o nosso lugar  no mundo ou inserção no relevo da paisagem. Basta uma brisa de vento agitar a vida própria dos átomos e dos seus micro-organismos, todo o invisível material que está lá, no espaço, para termos a percepção de como as coisas giram sobre si mesmas, englobando-nos, sem contemplações, no seu devir eufórico-trágico indiferente e, podemo-lo dizer, imundo.

    Assim, a estrada obcessiva, iluminada pelos faróis de Karma Police , o parque de caravanas, isolado, de Street Spirit (clips de Glazer para os Radiohead), ou, aqui, o lugar ermo da costa da Escócia onde alguém, um checo, diz encontrar-se porque procura um lugar “fora de tudo (“nowhere”), constituem não-lugares  da mesma ordem, e com as mesmas propriedades (anónimas e anómalas), daqueles que percorre aleatoriamente o personagem-alien  de Under the Skin (um ser sem nome ou determinação sexual), ele próprio “formação”= “figura” do “lugar-nenhum” de onde vem o filme  de Jonathan

 

Glazer, dando forma e corpo a uma conhecida tese de Serge Daney: “Le cinéma n’a plus d’autre spécifité que celle d’acueillir des images qui ne sont pas faites pour lui”.

    No personagem de Scarlett Johansson (uma versão feroz e voraz do alien personificado por David Bowie em The Man who fell to earth de Nicolas Roeg [1976]) [link A]), encontramos sinais de uma constante desadequação, impropriedade, da relação com o corpo que, afinal, é também a nossa. Será o corpo o “estranho” em nós – uma espécie de alien de 2º grau, teodolito caído do espaço a que damos a cobertura  de uma aparência que atenua, torna suportável (vivível?) a sua radical “estranheza” ( a “estranheza” do orgânico, dessa semente do cosmos de que somos os portadores [Lucrécio]) – ou somos nós o “estranho” nele, o elemento invasivo (um vírus, infecção da matéria) que vem parasitar o seu funcionamento?

 

    Com efeito, debaixo da pele = película, do personagem ou do filme, o que se encontra?      

    Quando Scarlett Johansson começa a retirar a pele que a cobre temos a percepção de que, debaixo dela tanto se pode encontrar o vazio ( e então ela pode abrir para o espaço sideral, o nada), como a  substância negra, não impressionada (virgem de impressões, sensações, figuras), do “negativo” do próprio filme. Uma matéria (substância) negra, maleável, moldável, mas sem atributos, especificações (qualidades) que é, como se diz, a do “sonho” e a do cinema.

 

    O desajuste do “alien” em relação ao (seu?) corpo (“ O cinema não reproduz corpos, ele produ-los com grãos, que são grãos de tempo”, afirma Deleuze numa entrevista aos Cahiers du Cinema nº 380, 1986) [link B] é, afinal, o das imagens de cinema em relação ao seu “destino”(fatalidade) figurativo e narrativo. Quando o processo devia ser o inverso (aquele que, com desigual sorte, aqui ensaia o alien): o que conduz do negro/ vazio original à  alucinação da imagem ou à  hiperestesia (hipnótica, siderante [vd. sequência na discoteca]) das (des)conexões (sinapses) dos neurónios e sentidos em sintonia com uma concepção de cinema (vida) como Ipad, ecrã de simulação e de interacção virtual/ real (“O cérebro é o ecrã”/ “o cinema não introduz só movimento na imagem, ele introdu-lo também no cérebro”, observa Deleuze na mesma entrevista).

    Under the skin confronta-nos, assim, com uma ideia de cinema (que o autor vem desenvolvendo dos clips musicais e anúncios de publicidade aos seus filmes: Sexy Beast [2000] e Birth [2004]), ela própria dada entre a abstracção (vd. as atmosferas monocro-máticas, bolhas de descompressão do real=gravidade, a branco ou negro,que constituem também espaços kubrickeanos de suspensão formal que Glazer já evocara em clips como The Universal, dos Blur [Clockward Orange], e Karmacoma, dos Massive Attack [Shinning]) e, continuamos, o máximo de sensorialidade  da fotografia suja e húmida de um microrealismo do quotidiano e do pormenor (urbanos) que conhecemos do cinema inglês (muitas vezes local, regional) que vem desde os anos 80 e 90 ( vd. Chris Bernard, A Letter to Brezhnev [1987], Alan Clark, Rita, Sue and Bob too [1987], Mike Leigh, Naked [1993], Lynne Ramsay, Morvern Callar[2002], entre outros).

    De tão “próximo”, o real torna-se “estranho” (“estranheza” de que aqui o “homem-elefante”, vindo de Lynch, pode ser a “figura”) ou mesmo “estrangeiro”, como se checos, albaneses, eslavos, porque tomam o “real” por baixo, aquém ou à margem da representação, se tornassem os “herdeiros” desse mínimo (denso) de real, das coisas e sensações,  aquém da linguagem e dos conceitos, a resgatar (Kracauer) pelo cinema.

 

    Essa experiência= via das sensações= sentidos, é aquela por que passa o alien do filme. Uma via, experiência, que, como com o cinema, se irradia e transmuta em hipersensibilidade, abstracção sensível, transportando-nos das determinações locais dos corpos e do espaço – através de um processo de indeterminação para o qual muito contribui o som, aqui, devido ao carácter electrónico das instalações sonoras, tanto menos uma dimensão (porque lhe falta “expressividade” figurativa / narrativa) como uma 3D da imagem (ele é, em certa medida, o coração/ centro pulsante do filme que sustém, do princípio ao fim, esse efeito de irradiação “sensurround” abstractizante) – para, sim, a sua dissipação (infra ou ultrasensível) no Tempo (“A  imagem, em si mesma, é um conjunto de relações temporais […].As relações de tempo nunca são vistas na percepção comum mas elas podem ser vistas na imagem […]. A imagem torna as relações de tempo […] sensíveis e visíveis”, precisa ainda Deleuze [para uma versão em inglês do texto cf. Gregory Flaxman (ed), The Brain is the screen – Deleuze and the Philosophy of cinema, University of Minnesota Press, 2000 [365/ 373]).

    Daí que, apesar das conexões com Kubrick, o percurso do filme de Glazer nos pareça muito diferente (desse ponto de vista, ele encontra-se mais próximo da sequência com o corpo na morgue de Eyes wide shut do que de 2001- A Space Odity – aqui não há “osso” que sirva de suporte material/ físico à Alegoria): passando, na abertura, dos flashes de luz à imagem do olho, personagem e filme, depois de percorrerem (e testarem) a alego-

ria sensível das suas diversas figurações (tentativas de corporização= figuração por adopção das “imagens” do mundo [vd. cena de “não-relação” sexual, já perto do fim]), desintegram-se e dissipam-se de novo em som-tempo e luz-energia (cósmicos), ou seja, no cristalino diáfano da própria matéria= substância luminosa- corpuscular (agora não “negra” mas “revelada”) do Cinema.

 

 

Link A:

    Como o próprio Roeg esclarece, o filme trabalha sobre situações de uma dupla estranheza que advém da colocação de um alien (extraterrestre ou cidadão inglês) num cenário e paisagem também eles “estranhos” (seja o deserto do Novo México ou a flatness icónica da cultura americana).

    No entanto, à opacidade (negra) e ao excesso (pulsional= sensorial) do universo de Under the Skin  contrapõe-se aqui a virtualização do real nos ambientes hiper-mediáticos ( e mediatizados) das instalações de aparelhos de TV construídas pelo alien (“o que me interessa é a energia, a transferência de energia”, afirma): assim, esse aquário de imagens, a banda-sonora (com segmentos de música electrónica que evocam os Pink Floyd da altura e anunciam o Bowie de Station to Station e, sobretudo, Low [discos em cujas capas se reproduzem fotogramas do filme]), ou mesmo a abertura do espaço exterior (o deserto), constituem a substância oca, o vazio a preencher de matéria (com água, informação ou imagens) para que se fixe, sedimente algo, haja, por assim dizer, real (que será também sempre “alienígena”, localizado, como nostalgia: utopia, num universo diferente).

 

    Pela mesma razão, no filme, as imagens de si no espelho, ou as dos outros enquanto espelho (Mary Lou e o alien, Thomas Jerome Newton, como o andrógino um do outro), nada fixam a não ser o espaço entre elas, a dobradiça do dispositivo de reflexão/ figuração criado, o cinema. Em Under the skin, contudo, é o excesso de opacidade (negro) do corpo (que refere a opacidade interna do seu funcionamento: o duplo enigma do desejo e da carne) que absorve (mastiga e cospe), na sua densidade: espessura (inumanas) qual-quer imagem.

 

Link  B

    É curioso constatar como Scarlett Johansson tem dado corpo e voz a estas experiências sobre “figuração do imaterial” no cinema.

    Deste ponto de vista, Under the Skin tem semelhanças, ao mesmo tempo que é como que o seu inverso, com Her de Spike Jonze.

    Em Her era pela Voz – o mais abstracto e não figurativo, embora figural – que se procurava produzir: projectar – e no melhor dos ecrãs: o cérebro do personagem/ espectador – o corpo de sensações que constitui o simulacro imaginário-real da atmosfera sonora do “fantasma” da rede/ computador (e, claro, da ideia-imagem, no nosso banco 

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de dados, da actriz); em Under the Skin, contudo, a via é a do invólucro (película: cobertura) do corpo para a constelação sensível (astral,cósmica) que nele, pelas suas “presas”, se procura encarnar (só o “homem-elefante”, homólogo figural do “alien”, se  salva).

   O corpo e a voz, hipersensuais, de Scarlett Johansson – assim como a relação de acordo: conveniência que entre eles parece haver e que ambos os filmes desconstroem para a testar e, em última análise, refundar – funcionam aqui como uma verdadeira antena de sensações, lugar (passional e em certa medida “sacrificial”) da precipitação: condensação e depois irradiação do real. Ou seja, no sentido pleno do termo, uma imagem.