Pavões

1.

Quero poder usar a palavra espírito, disse ela. Quero nomear sem medo a penumbra e a vizinhança da carne. Mesmo que o espírito morra, quero a disciplina indolente e viva, que tanto se confunde com a própria vida, de ter e nutrir um espírito.
Estávamos sentadas no jardim debaixo da ameixoeira, observando os pavões. Observávamo-los com zelo, imóveis, para não lhes causar perturbação. Passávamos as tardes livres no jardim, o próprio terreno dos pavões, o chão que eles debicavam com fastio. Sentava-me ali com ela à sombra da ameixoeira – precisamente o lugar para onde, se numa vida paralela eu nunca a tivesse encontrado, estaria, da janela do meu quarto, a olhar – a fumar e a ouvi-la, e, se os pavões passavam perto, eu não estremecia de prazer nem de repulsa. O golpe de verde e de bronze com que o abrir de asas de um macho surpreenderia até o mais experiente observador não me intrigava – a caprichosa e rarefeita demonstração de beleza da ave deixava de conter sinais de um mundo a que eu não tinha acesso, esse mundo de que antes eu conseguia apenas, aleatoriamente, um cruel vislumbre. A beleza do pavão era normalizada pela beleza dela, da minha amiga, era engolida e explicada pela beleza dela, e já nada tinha que me assombrasse.

*

Não é de menosprezar a influência da beleza nas mais íntimas, meticulosas, em teoria livres decisões que tomamos. Antes de tê-la encontrado, eu espiava os pavões com devoção imperturbável. Observava-os da janela do meu quarto, ao poente, de tal modo que os seus gritos guturais, despudorados como goelas de flores que se abrissem de um só golpe do clima, se conjugaram para sempre na minha imaginação com o cair da noite e com a poeira desolada que um pôr-do-sol deixa a descoberto, como num quarto que se abre ao fim de muito tempo sem luz. Os pavões eram para mim uma provocação, um enigma. De onde lhes vinha a beleza? Não seria do rosto – pequeno, oblongo, ladeado por linhas brancas, como que a indicar à mão o sítio por onde deveria empunhar um objecto na aparência ergonómico como um guarda-chuva. Eram as asas do pavão o seu rosto latente, um rosto sem semelhanças, que nunca chegava a revelar-se; um pano exótico e poeirento que descobríssemos sobre uma mesa, coberto por velharias e quase completamente oculto, e que nos surpreendesse com um padrão trompe l’oeil, para depois nos sossegar por ser apenas um trapo garrido, liso, sem profundidade.

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Até que ponto eu a tinha escolhido pela beleza, não era exacto. A beleza fazia com que condescendesse com trejeitos, hábitos, atitudes que noutras pessoas me teriam sido intoleráveis. Pequenas traições eram nela sinal de carácter. Se me pedia dinheiro emprestado, eu não lho negava. Se se esquecia dos nossos encontros, eu não via nisso humilhação. A sua amizade prestigiava-me, a sua companhia divertia-me, e eu chegava a acompanhá-la ao cabeleireiro, pelo simples prazer de, sentada atrás da cadeira, poder contemplá-la no espelho.

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É claro, disse ela, que o espírito deve observância à carne. A beleza da carne é um trabalho do espírito, disse.
A noite caía, inteira, sem aviso, como um bêbedo ou um trabalhador braçal caem num sono impenitente. Ela temia o colapso da sua juventude. Acabará por perdê-la, e sentirá por essa perda a pena que sente a cabeleireira quando uma rapariga lhe pede que corte curtos os seus cabelos longos. Será discreta em relação a essa perda, porque perder a juventude é um pouco como perder a dignidade.
Mas domará a carne com um ardor de mística. Hei-de afinar a minha nudez, disse. A nudez é intemporal, sobrevive à juventude. E eu pensava num daqueles aparelhos de rádio pesados, sensuais, que reuniam as famílias em redor para ouvir as notícias, durante a guerra, um aparelho grande e patético, comovedor. O pai tenta sintonizá-lo, ao rádio, de respiração suspensa – é uma arte um pouco solene. Hei-de afinar a minha nudez porque a nudez é a penumbra e a vizinhança da carne. A nudez é o mais perto que se há-de chegar do espírito. E eu quero poder usar a palavra espírito, disse. Se a nudez é o instrumento do espírito, quero poder usá-la.

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Não, não podemos excluir a beleza da equação única de cada acto nosso. A beleza suspende qualquer julgamento de que parecíamos ser capazes. Porque aceitamos o outro – o belo – sem qualquer critério, somos livres. O mesquinho beco de cada pensamento, de cada perspectiva, deixa de tentar-nos. Pela contemplação, pela prolongada convivência com a beleza, tornamo-nos puros, tolos, beatíficos.
Flannery O’Connor, que durante boa parte da sua vida conviveu com pavões, explicava a raridade e arbitrariedade com que o macho, de outro modo deselegante, incerto, como que vagamente insatisfeito consigo próprio, abria o leque da sua cauda. Era pelo menos raro e arbitrário que o fizesse diante de olhos humanos, e a escritora pôde observar nesses encontros inesperados diferentes reacções por parte dos espectadores. Ora uma negra, para quem a miríade de cores do pavão equivalia a um milagre, se ajoelhara no campo a rezar aos céus, ora um camionista, que se limitava a lançar às coxas da ave o mesmo tipo de comentário grosseiro que lançaria às coxas de uma rapariga.
Eu podia explicar tais reacções antipódicas. Eu própria vivia entre o susto e a indiferença.

 

*

Estávamos sentadas debaixo da ameixoeira, pressentindo, nos gritos crepusculares dos pavões, as dores vindouras da carne, quando na penumbra irrompeu dela o riso largo: se eu me deitasse contigo, disse ela, seria com desdém, sem esforço, delicadamente. Para não te magoar. Porquê, perguntei. Porque a violência não está na tua natureza, disse ela, não está na tua natureza lutar.
Era Verão. Eu podia sentir-lhe o suor indolente das axilas. Sentada ao seu lado debaixo da ameixoeira que agigantava a promessa de escuridão, eu pensava em mim própria como numa dessas mulheres que temem e adoram os homens de grande força física, porque sabem que nem o amor que tenham por eles os impede de um dia quebrar-lhes os pulsos, de desarticulá-las.
Era Verão e ela encolhia os ombros. A sua nudez crescia e assombrava-a, como um poeta cego ou uma mulher muito bela. Existia em imanência, causa dentro da própria causa.

Cotailismo: Macau, protótipo de um mundo em simulação descontrolada

“Assim, o mercador ou comerciante, movido apenas pelo seu próprio interesse egoísta, é levado por uma mão invísivel a promover algo que nunca fez parte do interesse dele: o bem-estar da sociedade." 

Adam Smith, Teoria dos sentimentos morais 

Ele abre a boca, estica os braços e fecha os olhos. Ele espreguiça-se na cama – ainda tem espaço. O dia é a noite e a noite é o dia – os relógios desapareceram. As vinte e quatro horas de rotação da Terra transformaram-se numa massa uniforme com um número de registo, nada mais. Uma pastilha que cuspimos e transportamos na sola dos sapatos, uma coordenada para pontos de linhas em gráficos. 

O chão do apartamento com vista para o prédio da frente e para o do lado está preenchido por desejos comprados: roupa por estrear e electrónica por utilizar. Os livros, quadros e filmes desapareceram: primeiro das prateleiras, das molduras e dos ecrãs e depois da memória. A casa já não tem cozinha, tem uma farmácia: comprimidos conjugam água e comida. A luz está sempre acesa – apenas se apaga quando a casa está vazia (sem pessoas). Assim é este mundo de primeira classe e nível superior. 

Estamos em Macau, no bairro da Areia Preta. Um bairro de torres iluminadas, dia e noite. Torres de dominó que tocam umas nas outras e escondem o sol. A chuva é coisa do passado: o governo criou uma barreira que encaminha tufões e afins para zonas menos avantajadas. Zuhai, a cidade vizinha, já não existe: foi adquirida a bom preço segunda as regras do mercado. A mão invisível funciona. 

Ninguém trabalha: a remuneração chega uma vez por ano - ao braço que não precisa de suar. Ele, um soldado do sistema, vai recebê-la hoje. Os funcionários governamentais vão distribuir os cheques porta a porta. Começam numa torre e sobem, saltam para outra e descem. Robôs especializados em entrega rápida e eficiente de cheques. As pessoas aproveitam este dia para se levantarem e os cheques crescem de ano para ano. O último foi de dez milhões de patacas. 

Ele acordou quando os robôs tocaram à campainha, antes de despejarem a encomenda pelo ralo, mas não reagiu: continuou na cama e abriu as persianas com a voz. As torres iluminadas substituem o sol. Ele engole um comprimido e saboreia a vista. O dia do pagamento é o dia em que todos os investimentos são recompensados, recebe dinheiro por ter dinheiro. Acumula dividendos sem risco e prémios por especulação. Ontem tinha muito património, hoje tem mais. A mão invisível tem um dono: um braço. 

O dia do pagamento, o primeiro de cada ano, era o único que o fazia levantar da cama. Hoje não se levantou - descansou. Há três anos que não se levanta, os cheques perdem relevância em cada esguicho.  

A persiana desce e a luz de um apartamento vizinho apaga-se – alguém saiu de casa. As torres de luz têm uma falha – uma brecha. 

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A carta

 Um qualquer dia/ de qualquer mês/ de qualquer ano

           

            A um leitor,

            Esta cidade podia ter um qualquer nome, podia até nem existir. A sua capital é a nossa, não conhece os confins que limitam o mundo. Aliás, posso garantidamente dizer que o mundo habita aqui, não me sinto daqui ou de acolá, mas sim, pedindo licença ao grego mestre, cidadão do mundo, e talvez por esta razão não me é estrangeira. Na verdade, sinto-me como se nunca tivesse saído de casa, não que isso signifique a completa ausência de novidade, há-la aqui e em abundância, seja em que província for; refiro-me à inusitada sensação de familiaridade ao saltar, digamos desta maneira para bem ilustrar, de uma página para a outra. Se fosse possível reunir todas as cidades do mundo numa só, seria este o local. Não me peçam que a localize no mapa, por favor, seria uma perda de tempo, todos vós lá estivestes.

            Podemos em cada região contemplar exemplos sublimes de arquitectura, maravilhas de  engenharia, belas articulações de palavras; podemos misturar-nos nas rumorosas avenidas ou fecundar o sossego de uma viela, abrigar-nos sob as copas das árvores de jardins frondosos de cores de Outono, ou perder-nos nas ruas em descuido e decadência rodeadas de prédios abandonados onde os brados morrem e se sentem as preces de piedade e boa vontade, ou pode acontecer que nos percamos no mais obscuro beco que a nossa imaginação ouse recriar. Afinal de contas, uma cidade não é feita de turismo, não é feita apenas do belo que ofusca o obscuro, muito menos uma plural em cidades como esta. 

           Há, sobretudo, que saber distinguir o turista do habitante, este último, se aguçarmos os nossos dotes de observação, revela a sua verdadeira identidade pela familiaridade com que olha para tudo o que compõe a cidade, para um monumento, por exemplo, como se o saudasse, passada já a condição de forasteiro com que inicialmente aqui se entra, num acto preambular de introdução, e uma vez ultrapassadas as cortesias ali nos deixamos ficar em diálogo, no silêncio que nos conta sobre as pedras de que também somos feitos.

            Nem seria oportuno discorrer sobre os costumes da população, pois note-se que o único hábito verdadeiramente consueto é a alternância do quotidiano conforme o visitante, coisa que parece aplicar-se às próprias ruas, históricas ou novas, aos parques viçosos ou aos bares de eleição que transmigram alegremente a sua existência para outra morada; imagine-se que encontrei o Bar Utopia cinco quarteirões depois do lugar que me fora indicado, e a Praça Calípole ao fundo da rua à esquerda, chegando à encruzilhada, e não à direita. As paredes desta grande metrópole estão recheadas de testemunhos deste tipo, autênticas margens de apontamentos e reflexões de toda a natureza. Quem visita esta cidade fá-lo geralmente sozinho, porém, ainda que acompanhado, a urbe estender-se-á para cada um consoante o modo com que os olhos absorvem a paisagem tingida, que se erguerá com o orto do sol a Este para um, e a Oeste para o outro.

            Os aspirantes a futuras viagens sintam-se perdidos, sem rumo, não importa para onde vão desde que saibam que todos os caminhos vão dar além de Roma. Existem uns tantos que conduzem até cidades inexistentes, com mais população do que aquela que ousamos imaginar, onde melhor e livremente somos errantes a cores através de preto estampado no branco.

A Dormideira

 Há uma mulher vestida de noiva à minha espera, quando eu morrer não chores não, ouve a minha voz a rimar no Rio Trancão.

Allen Halloween  

 

Se o lápis do narrador a adormeceu, só esse mesmo lápis a pode a acordar... Abriu a sebenta azul, as páginas numeradas, as 3 histórias do Capitão Soninho, e por cada ponta que se corta nasce uma estrela nova, depois a página 31 numa caligrafia quente, letras muito redondas e cheias, que podiam ser vistas como desenhos, sem serem lidas, ali o leitor podia adivinhar o seu gesto calmo, a respiração pausada: a letra gorda que anestesia os olhos, antes do lápis ficar mais nervoso, adivinha-se nas páginas seguintes o fio de um raciocínio mais rápido, o arfar a passar para a escrita, o lápis acompanhando a história da Dormideira.

Um corvo tinha deixado cair uma semente gorda de papoila. Com a chuva ela inchou e rebentou a terra quente … Na estação seguinte a Dormideira ganhou vida – o seu caule seguro, tomado ao mesmo tempo pela dose certa de apatia controlada, a castração do desejo que a inibia de se erguer. A Dormideira espreguiçava-se por dentro em jeito de oração. Podia não ter sido um corvo – Podia ter sido um homem. O narrador tem um lápis, mas ele é imaterial, desenha só o fundo das personagens, o seu perfil e núcleo, a sua essência, de resto os géneros mentem, as espécies mentem, não as há – Apenas uma vida cuja razão era dormir - tirar a dor, anestesiar. A Dormideira que crescia, com os ramos que se entrecruzavam, imitados na Arte Nova, em candeeiros, varandas, entradas de metro, o ferro trabalhado como braços de sono, torcidos, entrelaçados - vida correndo para as pontas: se alguém lhe cortar uma ponta ela crescerá com mais força - Irrompe no céu muito escuro.  Ela ganha novas inclinações, como uma estação de Metro, o túnel do ferro de saída para a rua. Depois da estação das chuvas, a papoila fechava-se durante a noite, cinco minutos de um lento virar para dentro para dormir - dormir verdadeiramente como nunca nenhuma pessoa conseguiu. Este momento era captado por um realizador de Cinema Mudo, a câmara na sua visão parcial apontava em campo/ contra-campo o crescimento do verdadeiro sono. O realizador escrevia legendas em fundo negro, o dia-a-dia da Dormideira, aforismos que retirava da sebenta azul. Procurava filmar naquele instante a origem da Anestesia; o ponto de viragem (algo parecido com a música e daí muito parecido com o cinema Mudo, as estátuas da Morte e as danças da Ilha de Páscoa). Neste abrir-se o realizador procurava o segundo em que a dormideira começava a ser uma poderosa fonte de alívio da dor.

 

Amava para dentro,
 A sua função era dormir…  

                                                           *** 

O narrador tem uma borracha, pode apagar o sono, decidir acordar a personagem. Continuar a história com toda a pressa e na sua vontade de dizer tudo despertá-la. O traço torna-se rápido, nervoso, o bico do lápis parte-se. A Dormideira Fica interrompida. A sua razão é dormir.

 

Nuno Brito, Cidade do México, 2 de Julho de 2012. 

A rua mais estreita

Numa das ruas mais estreitas da cidade há velozes migrações humanas que aos pássaros parecerão demasiado rápidas, manchas confusas num movimento estranho, observadas de cima para baixo entre as duas filas de telhados que quase se tocam, ali onde um gato pode facilmente saltar para o outro lado da rua; é uma das ruas mais estreitas da cidade, a mãe que agora amamenta a filha no último andar raramente vem à janela, há também pouco sol para secar a roupa. Ali onde há pouco um se gabava de que com aquela gaja tinha sido como foder com duas focas ao mesmo tempo, onde tudo é deixado como a uma casa de penhores colossal, há poucos minutos um homem tirou do dedo o anel de casamento e deixou-o ali ficar, na rua, para sempre, em troca de outras migrações (variantes da fome), que essa velhinha que pode ter só 37 anos procura no chão, a pedra mais pequena, mais branca da rua. Parece-se ao fantasma de uma gaivota - paralítica, sem asas e impossibilitada de olhar para cima, deverá haver um qualquer mito grego para ela, um castigo dos deuses por alta traição, a falsa previsão sobre o futuro de uma cidade que logo é queimada pelos inimigos do rei. Estar sempre na mais estreita linha que separa os homens e os animais, presa àquela rua como os fios de secar a roupa por baixo das janelas que ali são quase inúteis. Às vezes uma pequena linha de luz atravessa a janela e ri-se ao encher o quarto onde a mãe amamente a filha, uma corrente de vida que se expande e ilimita quando pensa em migrar para fora da rua, e a luz dá em cheio nas duas, no sorriso das duas, no quarto todo, corrente de luz que se ilimita e acende, mesmo depois do sol se esconder por trás das casas. Pouco tempo de exposição que não apaga nem quebra uma corrente, uma vontade, um laço - Há uma filha entre os braços - a migração dos pássaros que no fim do Verão partem para África para voltarem no ano seguinte - Em busca de calor e comida, eles não poderiam perceber as velozes migrações destas ruas, destes grupos que se formam e dissolvem à velocidade de certos sons, que se rodeiam rápido e desfazem ainda mais rápido, em círculos ou filas que se tornam manchas e desaparecem a correr - que aparecem rápido demais e caem rápido demais - que sobem e baixam rápido as escadas seguindo outras manchas que abrem as suas portas, que se aninham e encostam aos muros como dormideiras. Fiéis a esta linha entre a vida e a morte como as gaivotas às cidades marítimas. Numa das ruas mais estreitas da cidade há migrações que os pássaros não entendem – só nisso, talvez, são mais livres que os homens.

19 de Janeiro de 2015.