“Assim, o mercador ou comerciante, movido apenas pelo seu próprio interesse egoísta, é levado por uma mão invísivel a promover algo que nunca fez parte do interesse dele: o bem-estar da sociedade."
Adam Smith, Teoria dos sentimentos morais
Ele abre a boca, estica os braços e fecha os olhos. Ele espreguiça-se na cama – ainda tem espaço. O dia é a noite e a noite é o dia – os relógios desapareceram. As vinte e quatro horas de rotação da Terra transformaram-se numa massa uniforme com um número de registo, nada mais. Uma pastilha que cuspimos e transportamos na sola dos sapatos, uma coordenada para pontos de linhas em gráficos.
O chão do apartamento com vista para o prédio da frente e para o do lado está preenchido por desejos comprados: roupa por estrear e electrónica por utilizar. Os livros, quadros e filmes desapareceram: primeiro das prateleiras, das molduras e dos ecrãs e depois da memória. A casa já não tem cozinha, tem uma farmácia: comprimidos conjugam água e comida. A luz está sempre acesa – apenas se apaga quando a casa está vazia (sem pessoas). Assim é este mundo de primeira classe e nível superior.
Estamos em Macau, no bairro da Areia Preta. Um bairro de torres iluminadas, dia e noite. Torres de dominó que tocam umas nas outras e escondem o sol. A chuva é coisa do passado: o governo criou uma barreira que encaminha tufões e afins para zonas menos avantajadas. Zuhai, a cidade vizinha, já não existe: foi adquirida a bom preço segunda as regras do mercado. A mão invisível funciona.
Ninguém trabalha: a remuneração chega uma vez por ano - ao braço que não precisa de suar. Ele, um soldado do sistema, vai recebê-la hoje. Os funcionários governamentais vão distribuir os cheques porta a porta. Começam numa torre e sobem, saltam para outra e descem. Robôs especializados em entrega rápida e eficiente de cheques. As pessoas aproveitam este dia para se levantarem e os cheques crescem de ano para ano. O último foi de dez milhões de patacas.
Ele acordou quando os robôs tocaram à campainha, antes de despejarem a encomenda pelo ralo, mas não reagiu: continuou na cama e abriu as persianas com a voz. As torres iluminadas substituem o sol. Ele engole um comprimido e saboreia a vista. O dia do pagamento é o dia em que todos os investimentos são recompensados, recebe dinheiro por ter dinheiro. Acumula dividendos sem risco e prémios por especulação. Ontem tinha muito património, hoje tem mais. A mão invisível tem um dono: um braço.
O dia do pagamento, o primeiro de cada ano, era o único que o fazia levantar da cama. Hoje não se levantou - descansou. Há três anos que não se levanta, os cheques perdem relevância em cada esguicho.
A persiana desce e a luz de um apartamento vizinho apaga-se – alguém saiu de casa. As torres de luz têm uma falha – uma brecha.
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