somos o púlsar das aves/ a rocha linguística/
toda potencia calquera virtualidade/ unha exposición infinita/
un infinito de dor// non cruzamos correspondencias
Chus Pato, Sonora
Solitude
/Hoje é a grande noite do Joe, com uma leitura pública
o seu trabalho será finalmente reconhecido.
Tem vinte e três anos e várias vezes já se lembraram
do seu nome para uma residência artística.
Lizzie, a melhor do curso de escrita criativa,
também vai lá estar com a nova namorada,
o seu cabelo negro lampeja para toda a gente, parece um
corvo desaustinado quando entra em clubes literários.
Até Bonnie, a gigante americana, foi convidada,
e já acabava de se vestir no seu quarto
quando se lembrou, sem omitir um sorriso,
que ainda ontem à noite lhe ocorrera o suicídio,
numa mão um copo de barbitúricos,
na outra um livro manuseado.
As luzes do dormitório apagam-se, uma a uma
desaparecem as paredes de contraplacado
pejadas de recortes da Norton Anthology of Poetry
e de frases que dissecam a morte da filosofia.
Os amigos vão juntos até Hampstead ver o Joe,
onde dizem que tudo realmente acontece.
Colocam gravatas uns nos outros, em casa juntam
todo o álcool que conseguem, sentem o peso
de cada uma das frases antes de partirem no comboio.
Da janela ainda vejo estes poetas a mijarem com vontade
sobre as roseiras, um fumo místico levanta-se
logo onde começa a propriedade privada.
Dou uma volta completa à cozinha comum,
largo um esgar indisposto para o lado,
inspecciono a carpete onde esmagaram beatas,
invoco os meus colegas para os detestar um a um.
É então que os olhos brilham e subo à mesa
onde se projeta a minha glória infinita.
Digo as palavras que só eu imagino ouvir:
«nesta noite tão especial, não consigo dizer
como vos estou agradecido por se terem
esquecido aqui de todas as bebidas.»
De Doze Passos Atrás, Artefacto, 2013.
«ben zakhai»
/de Teatro de Rua, Tatiana Faia, do lado esquerdo, Coimbra, 2013.
três da manhã em budapeste
no piso subterrâneo de um hotel
um homem e uma mulher
deixam-se ir ficando para a privacidade
suburbana de um parque de estacionamento
dentro do carro conversam
como quem joga xadrez
sacrificando peça após peça
com uma atenção metódica
indício talvez de um punhado
de critérios mais sábios
eles lembram-te de outra história de rabis
ben zakhai negociou habilmente sobre jerusalém
preparou em desespero o render da cidade
ele e o imperador tinham conversas de planos
entretiveram com tacto grave
discussões de sucessivas estratégias
mas por enigmas desencontrados
cada um deles reclamava ainda outra coisa
já que há tudo a perder mais vale
querer cada vez mais, imagina que
ben zakhai talvez tenha dito a vespasiano
uma destruição esconde sempre
outra destruição e a destruição seguinte outra
até não sobrar nenhuma casa
tu daqui vais para roma e eu sabe deus
e não há-de haver já nada
dentro de nenhuma das casas nesta cidade
contidas como soldados demasiado jovens
escondendo-se ao perceber o primeiro dever do medo,
o de se enterrarem no refúgio circular das muralhas
nada das coisas que compõem uma cidade
o nosso comércio o discreto barulho
das nossas mulheres no seu ir e vir
coisa calada de com os filhos pelas mãos
as intactas paredes das nossas casas
o recolhimento sossegado pela tarde
da sombra dos nossos pátios mais interiores
o sussurrar na fala grave de homens
entretidos em conversas de negócios
nada, não há aqui metáfora nenhuma
começando por uma coisa qualquer
é possível
se assim quiseres
continuar a partir tudo indefinidamente
tudo pode ser minuciosamente destruído
contra esta mais espessa noite
a ideia de um nó tão fundo que só isso explique
uma cidade inteira calcinada
para que a mesma cidade possa recomeçar
*
O livro será apresentado no próximo sábado, dia 30, pelas 18:00, na Fyodor Books. Apresentação da exclusiva responsabilidade do duo Barros/Faia.
Este sábado, na Fyodor Books
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