Entrevista a Hugo Milhanas Machado

Salamanca, seis e três da tarde, crepúsculo. O poeta encontra-se três minutos atrasado. Nunca se deu o caso de entrevistar um poeta e pergunto-me se haverá alguma especificidade em relação a outro tipo de escritores. De acordo com as informações de que disponho, os poetas tendencialmente vestem-se como hipsters e são pessoas muito interessantes. Têm também fama de ser gente difícil: Byron dormia com a irmã, Fernando Pessoa gostava bastante a atirar para o demasiado de bagaço e aguardente, Manuel António Pina tinha gatos. Enquanto pondero estas questões, um ciclista em equipamento completo passa pela montra do café. O seu meio de locomoção: a bicicleta, evidentemente. Cinco minutos passados a prender o veículo com três cadeados (bicicleta de corrida, investimento considerável), o indivíduo aproxima-se. Apresenta-se como sendo o poeta que devo entrevistar, Hugo Milhanas Machado. Duvido dele, mas não há sinais de hipsters neste tranquilo café de Salamanca. O poeta senta-se e a entrevista começa.

 

Podia-nos falar um pouco da sua poesia? Tem consciência de que este livro não é muito fácil de ler? Confesso que gostei de quase tudo o que entendi, mas não podia ser um pouco mais lírico?

 Agradeço-lhe, em primeiro lugar, ter vindo aqui ao meu encontro e por ter lido este livro. Mas vai desculpar-me, não poderei dizer muito mais. Julgo que não me cabe defender como são ou como poderiam ser estes poemas, e muito menos ambiciono que o leitor os entenda como eu os entendo. São poemas, encontros de linguagem, jogos, diversões, pontos quentes na fala. Sim, reconheço que aquelas palavras também querem dizer qualquer coisa, mas julgo que essa preocupação é bem capaz de me sobrar. Nem sei se gostar das coisas tem realmente a ver com o entendimento delas. Gostar de uma pessoa, por exemplo: quando entendemos porque gostamos começamos a deixar de gostar, ou a perder o sentido do gosto, não acha?    

 

Quando começou a escrever poesia? De acordo com uma fonte anónima[1], partiu a cabeça na fonte da escola. Há alguma relação?

Sim, é verdade, estaria talvez na segunda ou terceira classe. Nunca tinha pensado no assunto nesses termos e há muito tempo que não me lembrava disso, mas pode guardar certa relação. Se me coloca a pergunta é porque alguma coisa terá que ver. Recordo o impacto contra a pedra, o impacto, a minha professora a mexer-me na cabeça e os dedos cobertos de sangue. Mas realmente só escrevi o primeiro poema uns anos depois, no sexto ou no sétimo ano do básico, e para impressionar uma colega de turma. A conquista falhou, mas comecei a interessar-me pela brincadeira.

 

A sua poesia é bastante original no contexto da poesia Portuguesa contemporânea, uma verdadeira experiência de estranhamento da linguagem. Como é que descobriu que esta era a forma de expressão que era mais adequada para escrever os seus poemas? 

Não sei se será muito original ou não, mas simpatizo com a formulação. Como disse há pouco não vejo grande pertinência em explicar ou defender como escrevo os poemas ou como armo os livros que depois publico. Posso sim recomendar algumas leituras ou resenhas muito atentas a partir de livros meus que de certo modo me permitem ver tudo isto desde fora, perspectivar as leis de construção que se vão intuindo nos livros. Refiro-me a textos de Nuno Dempster, Manuel Margarido, Rui Alberto Costa ou Henrique Manuel Bento Fialho, que aproveito para agradecer.

 

Este livro intitula-se Onde Fingimos Dormir como nos Campismos. Fale-nos um pouco da sua relação com o campismo. De acordo com a mesma fonte, com dezasseis anos foi acampar sozinho para Vila Praia de Âncora devido a questões amorosas. Agustina Bessa-Luís tem um livro intitulado Canção diante de uma Porta Fechada mas você montou, por assim dizer, a tenda à porta dela. Descreveria isto como um comportamento relacionado com o modo como entende a poesia?

 Tempos giros, esses. Recordo bem essa aventura, e lembro-me que tinha um caderno comigo onde ia apontando umas coisas. Mas a minha experiência campista tem sobretudo que ver com Peniche, com o mar de Peniche, com as praias, as noites de vento e estrelas a céu aberto, a malta de lá. O meu livro anterior, Uma Pedra Parecida, junta poemas quase todos eles escritos no Parque Municipal de Campismo de Peniche, suponho que para começar a dar nome às coisas, às magias de um tempo de miúdo que se ia apagando.

Recordo bem essa aventura, e lembro-me que tinha um caderno comigo onde ia apontando umas coisas. Mas a minha experiência campista tem sobretudo que ver com Peniche, com o mar de Peniche, com as praias, as noites de vento e estrelas a céu aberto, a malta de lá. O meu livro anterior, Uma Pedra Parecida, junta poemas quase todos eles escritos no Parque Municipal de Campismo de Peniche, suponho que para começar a dar nome às coisas, às magias de um tempo de miúdo que se ia apagando.

Desde que chegou que lhe quero fazer esta pergunta. Não pude deixar de reparar que depila as pernas. Porque é que os atletas depilam as pernas? Não nos quer convencer de que pedala mais rápido por causa disso, pois não?

 Não, é mesmo pelo estilo. Já viu o bronze? É um creme bom que a malta utiliza para melhorar a exsudação das pernas. Mas agora fora de brincadeiras, a depilação permite uma melhora transpiração dos tecidos, não duvide, e portanto um comportamento muscular mais fresco, movimentos mais definidos. Mas não deixa de ser engraçado que numa ou noutra situação me distingam num grupo de poetas como o das pernas depiladas.

mas agora fora de brincadeiras, a depilação permite uma melhora transpiração dos tecidos, não duvide, e portanto um comportamento muscular mais fresco, movimentos mais definidos. Mas não deixa de ser engraçado que numa ou noutra situação me distingam num grupo de poetas como o das pernas depiladas.

 

O facto de depilar as pernas influencia a sua poesia?

 Sim, sem dúvida. Da mesma forma que lavar a louça depois das refeições. Tenho muitas ideias pequeninas enquanto cumpro estas tarefas. Quando faço a barba, por exemplo, ou quando engomo a roupa pela manhã.

 

Quais os escritores que mais o influenciam?

 À cabeça, Roberto Bolaño. Li tudo, uma e outra vez, estive três anos a ler a obra de uma ponta a outra, a procurar textos dispersos, publicações antigas. Agora em Fevereiro inaugura em Madrid o “Archivo Bolaño”, uma exposição que esteve no ano passado em Barcelona. Bolaño é uma verdadeira escola, mas a gente lê e não se apercebe que está na sala de aula. Os ritmos de narração, os tons, a intensidade do texto, é tudo brutal, contundente, rigoroso. Além de Bolaño, e por motivos muito particulares em cada caso, uma equipa grande e poliédrica: Nuno Bragança, Ruy Belo, António Ramos Rosa, João Cabral de Melo Neto, Jaime Gil de Biedma, Leopoldo María Panero, Javier Cercas, J.D. Salinger, Paul Auster, Haruki Murakami.

 

Vivendo há cerca de uma década em Salamanca, contaria autores contemporâneos espanhóis entre as suas influências? Miguel Delibes também tinha uma coisa com bicicletas.

 Sim, Miguel Delibes era um apaixonado pela bicicleta. Curiosamente, e talvez esteja a par, trabalho com uma editora de ciclismo, La Biciteca, dirigida pelo meu amigo Manu Martín, e o primeiro título que publicámos foi justamente um livro de Delibes, Mi Querida Bicicleta, um pequeno tesouro, deveria ler. Cheguei a Salamanca com 21 anos, de modo que muitas das leituras mais sérias que tenho feito nestes últimos tempos são em língua castelhana, não necessariamente autores espanhóis. Temos uma colecção admirável de poetas novos: Ben Clark, Luna Miguel, Fernando de las Heras, Andrés Catalán, Elena Medel, Carmen Camacho, entre outros, todos muito jovens. E quanto a narradores contemporâneos a lista é poderosíssima: Enrique Vila-Matas, Alberto Méndez, Javier Cercas, Javier Tomeo, Ana María Matute, Rafael Chirbes, muitos.

 

Mantém um programa de rádio na Rádio Universidad de Salamanca “Historias de la Musica Portuguesa”. A música é importante para o seu trabalho de poeta? Que músicos portugueses destacaria? Não podia escrever poemas com um estilo mais directo, ao género de António Variações?

Sim, julgo que a música é fala muito vizinha dos meus poemas. Sabia que um escritor e crítico português de que lhe falei há pouco, Henrique Manuel Bento Fialho, escreveu em tempos numa nota sobre uma plaquette minha, Plato chico, que me via como uma espécie de DJ frustrado? Algo assim, não recordo com precisão, mas parece-me em todo o caso uma observação pertinente. O ritmo, o convite para a dança, o movimento, o compromisso entre paisagem acústica e corpo, recordo que sincronizava tudo isto, e só posso estar de acordo. E sim, gosto de meter música, de “pinchar”, como aqui dizemos. Falando em António Variações, é dele uma das minhas canções favoritas, a “Sempre Ausente”.   

 

Contaria outras formas de arte que não a literatura entre as suas influências?

 Com certeza, julgo que o poema trabalha contra tudo aquilo que o ensinou a ser linguagem, ou a ser em linguagem. Veja bem, contra e contra, encostado e em estado de oposição, temos estas coisas boas na nossa língua. Filmes ou certa sequência fílmica, fotografias, determinado retrato, uma canção, um achado sonoro, um elemento gráfico, qualquer coisa que mexeu de tal forma nas minhas palavras que depois permitiu o seu reencontro em forma de poema. Mas não penso só em discursos artísticos, creio mesmo que qualquer evento que nos é dado experimentar se pode converter num elemento gerador de inquietação, de estranhamento, de fecundação. O deporto, por exemplo. Agora só ando de bicicleta, mas sabia que em tempos joguei andebol e cheguei a treinar a equipa cá da terra? Devo umas quantas frases ou versos a muitos daqueles treinos na pista, enquanto imaginava com os meus colegas movimentos e fantasias dentro do 40x20, o perímetro em que as coisas do andebol devem acontecer, do mesmo modo que as dos poemas acontecem dentro das palavras que o compõem. Ou quando escrevo um poema de catorze versos e o penso ao lado de um jogo a ser disputado em duas partes de trinta minutos.    

Com certeza, julgo que o poema trabalha contra tudo aquilo que o ensinou a ser linguagem, ou a ser em linguagem. Veja bem, contra e contra, encostado e em estado de oposição, temos estas coisas boas na nossa língua. Filmes ou certa sequência fílmica, fotografias, determinado retrato, uma canção, um achado sonoro, um elemento gráfico, qualquer coisa que mexeu de tal forma nas minhas palavras que depois permitiu o seu reencontro em forma de poema.

 

Neste livro tem um poema intitulado “O Benfica”. Parece-lhe bem mencionar esse clube num poema? Não podia ter optado por uma influência explícita de José Miguel Silva (Bayern de Munique 1 X Porto 2 – Artur Jorge 1987)?

  Podia mesmo, até porque em Abril do ano passado escrevi um poema em Lisboa que levava um “33” no título, mas talvez fique para outro livro. Gostava de ler?


Nota: O último livro de Hugo Milhanas Machado, Onde fingimos dormir como nos campismos, está disponível aqui.

[1] Obrigada, Isabel!

Entrevista a um estudante de doutoramento

Jorge Chan, The Origin of the Thesis, PhD Comics

Jorge Chan, The Origin of the Thesis, PhD Comics


Hoje resolvemos olhar de perto uma realidade que afecta muitos dos nossos colaboradores. A sua condição de estudantes de doutoramento/ jovens investigadores. Fomos entrevistar um destes jovens. O estudante combinou encontrar-se connosco num café na esquina da Biblioteca Nacional. Informou-nos que não teria muito tempo para conversar connosco, mas que, ainda assim, tinha aceite porque entendia o interesse documental da entrevista. De ténis all stars, óculos de massa, o estudante exibe o tique nervoso de tamborilar com os dedos na mesa.

É comum os estudantes de doutoramento em Portugal gerirem o seu próprio horário de trabalho. Trabalha muitas horas por dia?

É só quando me começo a sentir como um autómato que sinto que tenho de parar. É raro, mas quando me dá atinge-me como o equivalente metafísico de uma dor de dentes.

Faz parte de um grupo de investigação coeso? Há muito diálogo entre os jovens investigadores?

Diálogo, não muito. As equipas de investigadores são pequenas e agora com os cortes nos orçamentos vai ser cada vez mais cada um por si e deus a olhar por todos. Nas humanidades então cada especialista tende a ser um exemplar único. Também temos uma tradição de não haver muita competição entre especialistas e Portugal é um país de brandos costumes em que se gosta de honrar a tradição. Mas costuma acontecer que por ciclos me sento sempre perto da mesma pessoa aqui na biblioteca. Acontece que estas pessoas por vezes não estão aqui por períodos extensos. Dois, três meses e desaparecem. Eu próprio me esqueço frequentemente do elemento humano. E há alturas em que entretenho conversas de corredor abjectas, com indivíduos que me começam por perguntar qual é o meu orientador, a faculdade e o tema da minha pesquisa, mas cuja maior curiosidade mesmo é saber a quantidade de palavras que sou capaz de debitar por dia no manuscrito da minha tese, na intricada relação tempo/débito de palavras em manuscrito word. Este é o tipo de diálogo intelectual que mais comummente tenho entretido. E esta é sempre a questão que mais ansiedade gera entre os estudantes de doutoramento. Na verdade, não raro mal orientados ou completamente desorientados, esta é, à medida que o financiamento se esgota, a grande questão. A menina está a apontar? Questão com Q grande para se entenda que é conceito. Quer que eu explicite o que entendo por Questão?

Não, deixe estar, não é necessário. Algum motivo em particular para ser essa a questão determinante?

Bom, se escrevemos menos do que o nosso interlocutor, ele poderá adoptar uma atitude paternalista, dar-nos conselhos. Dar-se a intimidades. Pousar-nos a mão no ombro. Se ele próprio for de escrever pouco, as suas outras vulnerabilidades começam a surgir. Dificuldades em fazer o índice. Ater-se ao plano. Publicar artigos. Mas, no fundo, este indivíduo sente-se bem com ele próprio se dermos a entender que estamos pior do que ele. No entanto, se escrevemos mais, mas muito mais, ele poderá sentir-se emasculado. Os sintomas variam. É sempre preciso ter cuidado com o tipo de resposta que se dá, esta é a pergunta crucial, que muitas vezes pode definir toda a estrutura das relações sociais de um estudante de doutoramento. Ao responder é preciso medir o grau de ansiedade ou relaxamento do nosso interlocutor. Às vezes não é tanto o caso de não melindrar a pessoa, quanto o de não a deixar à beira de um ataque de nervos. Há estudantes de doutoramento muito nervosos. A menina sabe, escrever tese em Portugal não é emprego, é maneira de tentar enganar o desemprego, mas a desocupação às vezes sobe à cabeça do jovem investigador lusitano.

A minha eficácia é da ordem da da personagem de Uma Thurman em Kill Bill. Em média oitocentas palavras em meia hora. Sou capaz de escrever dezasseis horas sem parar, às vezes escondo-me aí nos recantos dos guardas para conseguir ficar 24 horas na biblioteca. Vantagem, vantagem, vantagem. Liberdade? Criatividade? Isso é para meninos. Eu é como os ciclistas num sprint de montanha. Nem para ir à casa de banho paro. Este saquinho com o tubo intravenoso? Cafeína, menina.

E escreve muito num dia de trabalho normal?

A minha eficácia é da ordem da da personagem de Uma Thurman em Kill Bill. Em média oitocentas palavras em meia hora. Sou capaz de escrever dezasseis horas sem parar, às vezes escondo-me aí nos recantos dos guardas para conseguir ficar 24 horas na biblioteca. Vantagem, vantagem, vantagem. Liberdade? Criatividade? Isso é para meninos. Eu é como os ciclistas num sprint de montanha. Nem para ir à casa de banho paro. Este saquinho com o tubo intravenoso? Cafeína, menina. Directamente na veia. Para que não haja dúvidas do meu amor à produtividade. Em academia que se preze o estudante de doutoramento nunca tem tempo que chegue para fazer todo o trabalho que tem para fazer.  Neste momento tenho um manuscrito de quatro mil e quinhentas páginas. O meu objectivo é debitar mais mil nos próximos dois meses.

Quando isto estiver acabado, vou precisar de assaltar um banco para pagar a impressão e de um guindaste para entregar na secretaria. A funcionária estrábica que costuma aceitar a submissão de teses lá na faculdade vai entortar ainda mais os olhos.

E acredita ser possível?

A este ritmo acredito ser possível. Quando isto estiver acabado, vou precisar de assaltar um banco para pagar a impressão e de um guindaste para entregar na secretaria. A funcionária estrábica que costuma aceitar a submissão de teses lá na faculdade vai entortar ainda mais os olhos.

E acredita que haverá um júri disposto a ler uma tese com essa extensão?

O júri? Não conseguirá articular uma palavra por causa das cefaleias, causadas por excessiva exposição a tinta impressa em papel. Os únicos arguentes possíveis desta tese serão os que não a leram (em média estima-se que haja sempre uns três ou quatro desses em cada júri de doutoramento).  

É comum os estudantes de doutoramento gerirem bem esse tipo de pressão?

Nem sempre, menina, nem sempre. Nunca me hei-de esquecer deste tipo. Víamo-nos todos os dias, e até chegámos a trocar umas palavras, nos cinco minutos em que os estudantes de doutoramento se permitem ter vida própria (houve uma altura em que o meu intervalo coincidia com o dele). Um dia abriu dois livros à minha frente, abriu um terceiro, fechou-o com estrondo e raiva. Ao contrário da rotina o tipo nem tinha tirado as coisas da mochila. Com o rosto congestionado, começou a soluçar incontrolavelmente, pegou no casaco e desapareceu para nunca mais. Um colega teria refutado a sua hipótese, ou ele tinha descoberto que ela estava errada, ou que a sua tese já teria sido escrita. Eu cá não perco tempo a ler. Até no teclado do multibanco às vezes desato a debitar fragmentos de tese. No piano da minha tia. No ombro da deleitosa esposa a tentar fazer amor. Na toalha de mesa à espera do jantar.

Mas com esse grão de empenho não teme uma crise de nervos? Um esgotamento?

Não. É como eu sempre digo, menina, o truque para ser bem sucedido a escrever uma tese de doutoramento é não parar para pensar. Nunca.

Entrevista de John Ashbery a Henri Michaux (1961)

Henri Michaux não é exactamente um pintor, e também não é um escritor. É uma consciência: a mais sensível substância já descoberta para registar a angústia flutuante do dia-a-dia, minuto a minuto.

Michaux vive em Paris, na rua Séguier, no coração de um pequeno distrito de mansões aristocráticas em ruínas misteriosamente silencioso e apagado, apesar da proximidade de St. Germain-des-Prés e do Bairro Latino. Para evitar que se desmoronem, foi instalado um andaime de madeira nas escadas do hôtel particulier do século XVII, em que vive. O apartamento de Michaux parece ter sido separado de outro maior e, pese embora a arquitectura e a presença de móveis antigos e ilustres, que lhe conferem um traço distintivo, o ambiente é neutro. As paredes não têm cor, e o jardim exterior tem algo de fantasmagórico.

Há apenas quadros: uma obra de Zao Wou-ki e um quadro chinês, que representa, se quisermos, um cavalo. Tanto um como outro parecem estar ali por casualidade: «Não vale a pena tirar conclusões a partir deles». O único objecto digno de referência é um enorme e sofisticado rádio: assim como muitos poetas e pintores, Michaux prefere a música.

Detesta entrevistas, e parecia incapaz de se lembrar por que aceitou responder a esta. «Mas já que está aqui, pode começar». Sentou-se de costas para a luz, de modo que se tornava difícil vê-lo; protegia o rosto com a mão e observava-me pelo canto do olho. Nada de fotografias. Nem de retratos seus para publicar com a entrevista. Para si, os rostos exercem uma fascinação atroz. Foi, aliás, Michaux quem escreveu: «Um homem e o seu rosto é um pouco como se estivessem a devorar-se mutuamente sem parar». Numa ocasião, quando um editor lhe pediu uma fotografia para publicar num catálogo com a de outros autores, respondeu: «Escrevo com a finalidade de dar a conhecer uma pessoa que, aos olhos dos outros, nunca poderia ter existido». Em vez da fotografia, foi publicada a frase.

No entanto, o rosto de Michaux é doce e agradável. Belga, nascido em Namur, em 1899, exibe a tez pálida típica das gentes do norte, e também algo da sua brandura, a que se opõe, por vezes, um semblante iluminado por um largo sorriso flamenco e uma inesperada e encantadora gargalhada.

 

Para Michaux, a pintura suplantou a escrita como meio de expressão?

Absolutamente. Nos últimos anos realizei três ou quatro exposições e publiquei três ou quatro livros. Desde que assumi a pintura faço um pouco mais de tudo, mas não ao mesmo tempo. Escrevo e pinto em períodos alternados. Comecei a pintar em meados da década de 1930, em parte como consequência de uma exposição de Klee a que assisti, e em parte por causa de uma viagem ao Oriente. Numa ocasião, quando estava em Osaka, pedi indicações a uma prostituta e ela respondeu com um desenho encantador. Toda a gente desenha no Oriente.

 

A viagem foi uma experiência capital na vida de Michaux: dela resultou Um bárbaro na Ásia [Un barbare en Asie, 1933], além de todo um novo ritmo de vida e criação.

Sempre soube que havia outra forma de expressão para mim, embora jamais tivesse imaginado que fosse a pintura. Mas, enfim, estou sempre enganado em relação a mim mesmo. Quando eu era novo queria ser marinheiro, e tentei sê-lo durante algum tempo; mas depois descobri que não tinha força física necessária. Também nunca pensei em escrever. C’est excellent, il faut se tromper un peu.

Além disso, irritava-me tudo o que era acessório na pintura. Os artistas agem como primas-donas; levam-se demasiado a sério, e têm todos esses acessórios: as telas, os cavaletes, os tubos de pintura. Se eu pudesse escolher, teria preferido ser compositor. Mas para isso é preciso estudo. Se houvesse, no entanto, alguma forma de entrar directamente num teclado… A música desperta a minha insatisfação. Os meus desenhos a tinta não são mais do que ritmo. A poesia não me satisfaz tanto como a pintura, mas é possível que existam outras formas.

 

Quais são os artistas mais importantes para si?

Admiro a obra de Ernst e de Klee, mas isso, por si só, não me faria querer começar a pintar. Não aprecio tanto os estadunidenses, como Pollock e Tobey, mas é certo que criaram um certo ambiente em que podia expressar-me. São instigadores. Deram-me a grande permissão (la grande permission). Assim também com os surrealistas, que apreciamos não tanto pelo que escreveram, mas por terem permitido que toda a gente escrevesse o vai na cabeça. E, como é evidente, os pintores clássicos chineses, que me ensinaram aquilo que podia fazer apenas com alguns traços e signos. Mas, no geral, não acredito muito em influências. Podemos ter o prazer de ouvir as vozes das pessoas na rua, mas não é isso que vai resolver os problemas. Quando algo é bom, fica-se distraído do problema.

 

Alguma vez sentiu que a sua poesia e pintura eram duas formas diferentes de expressão de uma única coisa?

Ambas pretendem expressar uma música. Mas a poesia também trata de expressar uma verdade não lógica; uma verdade diferente da que se lê nos livros. A pintura é distinta; não tem nada que ver com a verdade. Nos quadros crio ritmos, como se dançasse. Isso não é uma verdade (vérité).

 

Perguntei a Michaux se considerava que a experiência com a mescalina havia influenciado a sua arte, para além dos desenhos que fez sob o efeito da mesma, reunidos num conjunto intitulado dessins mescaliniens, e que, pela concentração hipersensível de linhas insubstanciais, como filamentos, apresentam em determinadas zonas um aspecto muito diferente do que apresenta a obra abrupta e dinâmica que realiza em condições normais. «A mescalina aumenta a tua atenção por tudo; pelos detalhes, pelas sucessões terrivelmente rápidas.»

Ao descrever uma destas experiências, no seu recém-vindo Paix dans les brisements, escreveu: 

O meu desassossego era grande. A devastação, maior. A velocidade, ainda maior… Uma mão duzentas vezes mais ágill do que a mão humana não seria suficiente para seguir o curso acelerado daquele inextinguível espectáculo. E tínhamos de segui-lo. Não se pode conceber um pensamento, um final, uma figura, para depois os explorar e fazer com que sirvam de ponto de partida ou inspiração ao improviso. Todo o poder se esgota neles. É esse o preço da sua velocidade: a independência.

 

Também falou sobre a distância sobre-humana que percepcionou ao estar sob o efeito da mescalina, como se pudesse observar o mecanismo da sua própria mente a partir de uma certa distância. Esta distância pode ser terrível, mas numa ocasião traduziu-se numa visão de beatitude, a única em toda a sua vida, que descreve em L'Infini turbulent«Vi milhares de deuses (…). Tudo era perfeito (…). Afinal, não tinha vivido em vão (…). A minha existência fútil e errante entrava, finalmente, na estrada milagrosa.

Este momento de paz e satisfação nunca lhe acontecera. Não o repetiu. «Já basta ter sucedido uma vez». Foi uma experiência que não se prolongou para além de um ano; pelo menos que ele saiba. «Talvez tome outra vez quando voltar a ser virgem», disse. «Mas isto são coisas para fazer apenas de vez em quando. Os índios fumavam o cachimbo da paz nas grandes ocasiões. Hoje em dia as pessoas fumam cinco ou seis maços de cigarros por dia. Como se pode experimentar alguma coisa assim?»

 A casa começara a ficar escura e, no exterior, as árvores do jardim pareciam fazer parte do lodoso território metafísico que descreve em Mes propriétés. Insinuei que na sua obra aparece apenas a natureza. «Isso não é certo», disse. «No caso dos animais, sim. Gosto dos animais. Se alguma vez for ao seu país, será sem dúvida para visitar os jardins zoológicos» (a única vez que visitou os Estados Unidos foi em 1920, era ainda marinheiro, e esteve apenas em Norfolk, Savannah e Newport News).

Numa ocasião, em Frankfurt, deixei escandalizado o director do museu onde estavam, por esses dias, expostos alguns trabalhos meus, porque lhe pedi que, nas duas horas que tinha livres, me falasse sobre o jardim botânico, e não sobre o museu. Na verdade, era um jardim encantador. Mas desde que tive a experiência com a mescalina, os animais já não me inspiram qualquer sentimento de fraternidade. O espectáculo da minha mente a trabalhar de algum modo me tornou mais consciente da minha própria mente. Já não sinto empatia com um cão, porque ele não tem mente. É triste…

 

Falámos sobre os meios que utiliza. Trabalha com óleo e aguarela, mas prefere a tinta da china. Serve-se com frequência de grandes folhas brancas de desenho que, ora nos chegam preenchidas de pequenos nus negros, ora surgem com figuras vagamente humanas, dispersas, que evocam alguma batalha ou peregrinação desesperada. «Com a tinta da china posso fazer pequenas formas muito intensas», dizia. «Mas tenho outros planos. Entre outras coisas, tenho estado a pintar quadros com tinta chinesa sobre tela. É entusiasmante, porque com uma mesma pincelada, num mesmo instante, posso ser ao mesmo tempo preciso e difuso. A tinta é directa; não se corre qualquer risco. Não tens de lutar contra a rapidez do óleo com todos os acessórios da pintura.»

É nessas telas que Michaux costuma pintar três largas franjas verticais, utilizando pouca tinta para conseguir produzir um efeito de desvanecimento. Nesse meio difuso, flutuam dezenas de figurinhas desesperadamente articuladas: aves, homens, caules, animadas pela mesma energia intensa dos desenhos, mas delineados de forma mais deliberada.

Estes óleos parecem cumprir, melhor do que as demais obras, as suas intenções pictóricas, tal como as formulava recentemente na revista Quadrum:

Em vez de uma imagem que exclui as outras, eu gostaria de ter desenhado os momentos que, postos lado a lado, fazem a vida. Expor a frase interior, uma frase que não tem palavras, para que vejamos uma corda que se desenrola sinuosamente e que acompanha intimamente tudo o que nos afecta, seja desde o exterior ou desde o interior. Queria desenhar a consciência da existência e o fluxo do tempo. Como quando medes a pulsação.

 

 

Publicada originalmente na revista ArtNews, em Março de 1961