Caderno 3
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«Por intermédio das palavras que flutuam à nossa volta, alcançamos o pensamento»
Friedrich Nietzsche
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Helena Bento, Vou pegar na bicicleta e rodar tudo de novo até ser feliz – entrevista a Rui Pedro Gonçalves
Otávio Campos, Exercícios sobre a espera I
Miguel Duarte, Conto Ferroviário
Tatiana Faia, O vermelho
Victor Gonçalves, Da impossibilidade de receber Sade
Dirceu Villa, Produtos da roça a 8 Km, estrada pro Rio de Janeiro
João Bosco da Silva, David Cronemberg e as as Rãs Transmutantes
Vicente Vaz, AJC
Paulo Rodrigues Ferreira, Diário de um investigador científico em vias de se tornar outra coisa
Hugo Pinto Santos, Selima Hill, Posso por favor ter um homem
Na casa desconhecida há um pátio com glicínias. Ouve-se o relógio da igreja. São os sinos, a brindar com o seu “cântico nos beirais”. Há uma cozinha com uma grande chaminé, umas escadas em pedra, e um piano, “sempre tocado a quatro mãos”, que guarda as impressões digitais para o futuro. Há uma sala onde se joga às cartas, “um rei, uma vitória, uma dama de espadas”. Alguém puxa de um trunfo, rendido na certeza de poder baralhar, de novo, o destino, e encontrá-lo, novamente, ao amanhecer. É a carta da “juventude”. A que vale mais e leva tudo à frente. Num dos quartos ouve-se Beethoven, quinta sinfonia, e noutro fala-se do Zeca, da Carla e da Maria. Há um livro onde “tudo se escreve”. Está guardado na cave, onde a casa “estende os seus braços e ergue-se em tourada numa possível lezíria onde os sismos recuam a medo”. Na casa grande da Granja, arde um fogo, “por motivos que o fogo não entende”, e noutra casa há uma capela onde há anos brotaram objectos que estavam enterrados, uma sala com um palco e portas tapadas, e talvez pessoas emparedadas.
Rui Pedro Gonçalves nasceu em 1973, na freguesia de Pontével, concelho do Cartaxo. Fez ali a escola primária. Depois foi estudar para o Cartaxo, para o Colégio Marcelino Mesquita, que já não existe. Fez a escola secundária ainda no concelho, e quando entrou na universidade, no curso de Geografia, na Faculdade de Letras, mudou-se para Lisboa. Viveu durante alguns anos na capital e depois voltou para o Cartaxo, para Pontével, para a terra da infância e para a casa de família, uma casa “muito grande e muito antiga, com muitos quartos, um espaço por onde já passaram várias gerações”.
O primeiro livro saiu em 2004, Uma Terra chamada Imaginário, com ilustrações de Inês Xavier. Foi publicado pela Câmara Municipal do Cartaxo, como recompensa por ter ganho o Prémio Literário Marcelino Mesquita, que distingue os melhores trabalhos inéditos nas modalidades de teatro, prosa e poesia, e que é atribuído pela Sociedade Portuguesa de Escritores e Artistas Médicos.
É nessa terra chamada imaginário que descobrimos que houve uma bicicleta: “nessa velha bicicleta / que ainda guardas no teu quarto de brinquedos / atravessámos o vento / ao som dos pedais da infância”, e que essa bicicleta, como vamos saber depois, foi muito importante: “Parece mentira / Mas foi um engano essa infância / de cerejas. / O pior de tudo / foi um furo no pneu / havia a minha bicicleta / e isso foi muito importante.”
Os pais tinham uma casa agrícola, que vinha do tempo dos avós de Rui. Produziam vinho e tinham uma exploração florestal. Quando a madeira tinha de ser cortada, de sete em sete anos a dos eucaliptos, e um bom par de anos no caso dos pinheiros, Rui ajudava os pais, assim como a irmã, mais nova, que também escreve. Foi criado com os avós paternos. O avô era produtor de vinho e tinha uma relojoaria. Tinham grandes propriedades de terra. Os avós maternos, com quem teve pouco contacto, também eram agricultores. Hoje, já poucas pessoas vivem da terra. Em parte, é essa a “história de certas famílias do Ribatejo e de outros lugares do país.”
Começou a escrever poesia “mais a sério” depois dos vinte, “vinte e poucos anos”. Não se lembra do primeiro poema. Começou, e continuou, por incentivo dos amigos, que liam o que escrevia e gostavam. Estava na faculdade, no curso de Geografia, que afinal não era bem aquilo que ele queria. Então? “Uma profissão ligada à terra”. “A coisa que eu mais gosto é de trabalhar com a terra. Depois vem a poesia, em segunda, terceiro ou até em quarto lugar.” Antes passava as tarde de inverno no café, mas agora escreve sobretudo à noite. “Tenho uma visão prática do dia. Gosto de me levantar cedo, fazer o que tiver a fazer, e isto [a poesia] não é uma obrigação, é um prazer que vem depois das coisas obrigatórias”. Também não lê durante o dia. “Não consigo conceber estar dias inteiros a ler, para mim não faz sentido.” Então? Caminha e cuida das plantas, e trata das tarefas ligadas à casa. E nos anos em que consegue colocação, ensina Geografia.
Mas voltemos à bicicleta. Entre casas reais e imaginárias, esses “organismos que ardem por dentro”, houve portanto uma bicicleta. “A bicicleta é para mim a coisa mais palpável e mais materializável que talvez exista na minha vida”. A bicicleta serviu para tudo, para fazer amizades, descobrir ruínas e terriolas, andar dentro de casa e fugir dos cães. E o poema, o tal que fala duma infância de cerejas e de um furo no pneu, continua: “O mesmo será dizer que andei por aí / A buzinar aos cães e aos velhos / E a fazer trim / Nos trilhos das formigas.
Houve, aliás, várias bicicletas. Verde, azul, verde, e agora uma de montanha, porque apesar de a bicicleta estar guardada naquele “lugar feliz da nossa cabeça, onde as memórias boas estão guardadas”, e onde as raparigas e os rapazes crescidos em desespero ainda vão dormir à cama da mãe, o poeta escreve: “Ainda tenho uma bicicleta obsessiva / no rebentar das ondas do mar / da minha solidão”. E noutro poema: “Vou pegar na bicicleta / E rodar tudo de novo / Até ser feliz”.
Em 2006, Rui Pedro Gonçalves publicou o livro Noites na Granja (edição de autor). Na primeira página há uma citação de um livro de Gógol, o Noites na Granja ao Pé de Dikanka, que ajuda a explicar o título do seu livro. Diz assim: “Petró dormiu dois dias e duas noites seguidos. Ao terceiro dia acordou e pôs-se a olhar demoradamente para todos os cantos da sua casa, mas foi em vão que tentou lembrar-se de alguma coisa: a sua memória era como o bolso de um velho sovina, donde ninguém consegue tirar um tostão”. Uma epígrafe que, de resto, não podia ser mais enganadora. O que se segue é um exercício de memória, de recuperação, de regresso a casa, à infância e à bicicleta, ensaiado ao longo das páginas deste documento pessoal. Um bocado como o homem do cais que atira as coisas todas para o rio, sapatos, chapéus, livros, um frigorífico, um elefante, presos a uma corda, e depois, já em velho, volta para vir buscá-las e levá-las para aquele lugar feliz da cabeça. Os últimos versos de um dos poemas dizem assim: “À noite / Ainda de janela aberta à grande planície, / Ouvíamos os cânticos da terra e a sua transpiração mediterrânica. / Sem o sabermos, / Íamos fundando raízes no interior de nós / E, depois, adormecíamos na frescura do pinhal / E dormíamos muito, muito.”
Rui Pedro Gonçalves é também autor de Diques (2007) e Nitratos do Chile (2010), título que vem do painel de azulejos que ainda hoje se encontra em muitas localidades portuguesas, “Adubai com Nitrato do Chile”, o adubo natural que era usado na agricultura, e que o avô, segundo conta, provavelmente terá usado para enriquecer a terra. O título presta-lhe por isso homenagem.
Em 2009, participou num livro de textos e poemas publicado pela editora Averno, Merry Christmas, que reúne autores como Alberto Pimenta, Fernando Cabral Martins, Manuel de Freitas, Renata Correia Botelho, entre outros, e em 2012 participou em Ruindade, o livro dos poetas ‘Ruis’: Rui Caeiro, Rui Pires Cabral, Rui Pedro Gonçalves, Rui Miguel Ribeiro e Rui Azevedo Ribeiro. Tem também poemas publicados em alguns números da revista “Telhados de Vidro”, editada por Manuel de Freitas e Inês Dias.
Este ano publicou Um Rapaz à Procura da sua Idade, pela editora Do Lado Esquerdo. O livro abre como uma dedicatória a Bernado Sassetti: “Era uma vez um rapaz que gostava de tocar piano. Aprendeu a tocar, pois não conseguia ter gaivotas entre quatro paredes. Um certo dia, o piano ficou fechado e o rapaz foi ter com as gaivotas. Ainda foi a tempo de registar umas certas notas musicais, mas deixou-as consigo, por ser tarde nesse dia de Maio”. Rui não chegou a conhecer o pianista, mas admira a música dele. “Tem um bocado a ver com a bicicleta, com o movimento da bicicleta. É uma música circular, obsessiva, como se andasse sempre em círculo.” Como se quisesse rodar tudo de novo até ser feliz.
E aqui estava ele sentado ao meu lado, pernas afastadas. Eu não conseguia aguentar mais. Toquei-lhe no interior da coxa. Ele aproximou-se. Eu tremi. O meu coração bateu e saltou e os meus dedos dirigiram-se à braguilha. Avaliei o tamanho e a força apertando a mão. Juntei os dedos e rodei-os na cabeça do pénis. Acariciei-a de cima a baixo. Pus-me de joelhos. Baixei a cabeça. Abri a boca. Alinhámos as nossas bocas. Entrelaçámo-nos. Todo o acto era aperto. Todo o facto contacto, o ataque e a ligação das línguas, dos encantos dos braços. Eu tremi com o toque da carne fresca. Estremeci com a investida do pénis dele. As suas sensações ansiavam pela consumação. Ele descontraiu as pernas e deitou-se ofegante, quente como um adolescente. Nu, dilatado, cheio, à espera de ser chupado, agarrando o lençol, todos os seus poros abertos à alegria. Fiz pressão no ponto em que a virilha se une ao pénis. Pus um dedo no ânus dele e massagei. Ondas de prazer imensuráveis subiram ao seu membro rapidamente. Espasmos. E eu continuava na dobra da virilha a inalar o seu suor.
É um poema e não é meu. A versão original, com o título “The Platonic Blow, by Miss Oral”, ou “A Day for a Lay”, ou “The Gobble Poem”, ou “The Blowjob Poem”, tem mais versos e foi escrita por W. H. Auden, o poeta anglo-americano, pensa-se que em 1948. A tradução é minha. O autor não o quis publicar, mas também não o destruiu, e o resto da história, a do caro-editor-por-favor-destrua-todos-os-meus-manuscritos-quando-eu-morrer, e o editor do outro lado a esfregar as mãos como quem diz espera-lá-que-vais-ter-sorte, já se sabe: alguém o encontrou e decidiu publicar, neste caso Ed Sanders, poeta, editor e activista, na revista Fuck You: A Magazine of the Arts, no número de Fevereiro de 1965. Na folha de rosto, em subtítulo, lê-se “Mad Motherfucker Issue”.
A revista fazia três anos e, não tenhamos dúvidas – era verdadeiramente um mad motherfucker issue, dedicado aos “deprimidos e aos arruinados” e aos que foram apanhados pelos fascistas, freaks da guerra, draft boards (grupos de civis que escolhiam os homens para o serviço militar),“académicos idiotas” e pelos fanáticos do “Cancro Totalitário”. Senão vejamos: capa de Andy Warhol, com imagem de uma cena de sexo filmada na Factory e usada no seu filme Couch, um anúncio aos The Fugs, banda de Ed Sanders e Tuli Kupferberg, que também escrevia na revista, poemas de Lawrence Ferlinghetti, LeRoi Jones, Gerard Malanga, Ted Berrigan, Gregory Corso e Norman Mailer. Allen Ginsberg também contribuiu, com um poema sem título e data de 19 de Dezembro de 1962 publicado anteriormente nos seus Jornais, e um texto com o título “Dreams”, sobre um sonho que teve com Peter (provavelmente Peter Orlovsky, poeta e seu companheiro). É também Peter Orlovsky que assina uma série de desenhos publicados neste número; há um de Charles Chaplin num ecrã numa sala de cinema em Damasco (Síria).
“I’ll print anything”, escrevia Ed Sanders, que na altura era também proprietário de uma livraria em Nova Iorque, a lendária Peace Eye Bookstore. Enviem-me o que quiserem, poemas, manuscritos banidos, os vossos planos para o “holocausto pacifista”, que eu publico tudo. A ideia era mais ou menos esta. A Fuck You foi durante três anos (1962-1965) editada numa “localização secreta”, em Lower East Side (Nova Iorque). As cerca de 500 cópias eram imprimidas nos mimeógrafos da altura. É também por isso que a revista é considerada uma das mais importantes da chamada “mimeo revolution”, nos anos 60 e 70, em que se assistiu a uma espécie de boom de pequenas publicações independentes graças à utilização desta ferramenta, o mimeógrafo, que permitia imprimir a baixo custo. De repente, qualquer um podia publicar o que lhe desse na gana. A revista The Floating Bear, editada por LeRoi Jones e Diane Di Prima, figura central da geração Beat, é exemplo disso.
Outro mad motherfucker issue talvez tenha sido o n.º 5 de Setembro de 1964. A capa é de Robert LaVigne, que desenhou um bebé alienígena com pequenas roldanas nos olhos, letras no corpo e os órgãos à vista. Há poemas de Robert Creeley, o poeta americano normalmente associado ao Black Mountain College, “Two Times” e “Something” (“Eu aproximo-me com um tremor tão cauteloso / sinto sempre no fim a idiota / questão do que é / então, suposto ser sentido / e por quem”), Robert Duncan, William Burroughs, Norman Mailer, Gregory Corso e Gary Snyder – “Hymn to the Goddess San Francisco in Paradise”, do seu Mountains and Rivers Without End, poema épico dividido em quatro partes e publicado pela primeira vez em 1996 – Carl Solomon e uma tradução de um poema de Artaud, sem título e aparentemente inédito.
A Fuck You começou mais ou menos assim: Ed Sanders estava num bar com alguns amigos do Catholic Worker. Tinham acabado de ver o Guns of the Trees de Jonas Mekas (1961), e Sanders anunciou que ia publicar uma revista chamada Fuck You: A Magazine of the Arts. Os amigos ficaram desconfiados mas no dia seguinte ele começou a fazer stencils e ao fim de uma semana estava o primeiro número aviado. Comprou um pequeno mimeógrafo e instalou-o no apartamento. Distribuía gratuitamente as cópias, mas chegou também a enviar algumas. A Allen Ginsberg (que estava na Índia), Nikita Khrushchev, Fidel Castro, Picasso e Beckett. O nome da revista era catchy, Sanders ganhou notoriedade e rapidamente começou a receber manuscritos dos seus heróis, como referiu numa entrevista publicada no site Literary Kicks.
Em A Secret Location on the Lower East Side, de Steven Clay e Rodney Philips (1998), Sanders explica que o objectivo dele, com a revista, era levar às “melhores mentes” da sua geração uma mensagem de pacifismo Gandiano, partilha, mudança social, liberdade individual e as ideias revolucionárias de libertação sexual. Diz-se por isso que a Fuck You permitiu a aproximação de duas gerações distintas, a dos Beats nos anos 50 e a da contracultura no final da década de 60.
Saíram treze números, grande parte deles com textos escritos por uma equipa mais ou menos fixa de colaboradores que incluía Nelson Barr, Al Fowler, Ed Sanders, Taylor Mead, John C. Harriman, C.V.J Anderson (o editor da Crawdaddy!, considerada a primeira revista americana sobre música rock), Charles Olson e John Wieners. Menos assíduos, Harry Fainlight (cujas publicações na revista incluem um poema chamado “Mescaline Notes”, dividido em quatro partes, a fazer lembrar as experiências com mescalina de Henri Michaux), Diane di Prima, Frank O’Hara, Jean Morton, e outros. O último número foi publicado em 1965, sem que o seu fim tivesse sido anunciado. Da noite para o dia, por assim dizer, a Fuck You deixou de ser publicada.
Este texto foi originalmente publicado no site The Airship, da editora Black Balloon Publishing. A versão original pode ser lida aqui.
“A pessoa deprimida estava numa dor emocional terrível e incessante”, assim começa a história. “E a impossibilidade de partilhar ou articular esta dor era ela própria uma componente da dor e um factor que contribuía para o seu terror essencial.” O conto é sobre uma rapariga com depressão e a forma como ela lida com a doença. Foi publicado na revista Harper’s em Janeiro de 1998. Karen Green, artista visual, leu-o e quis reescrevê-lo, alterando o final. Achava que não havia nada feliz ali, nada que pudesse ser transformado numa coisa bonita. Escreveu ao autor, e ele deu-lhe permissão para o fazer. Na sua versão do conto, a rapariga fica curada. Quando o autor leu ficou contente, e disse-lhe que ela tinha conseguido escrever uma história que as pessoas iriam querer ler. Foi assim que se conheceram, em 2002. Casaram-se dois anos depois em Urbana (Illinois, EUA), cidade natal dele. Assistiram à cerimónia os seus pais e assistiu o filho de Karen Green, de um casamento anterior.
Em 2008, ele, David Foster Wallace, suicidou-se. Green tinha saído para a abertura de uma exposição na galeria onde trabalhava, a cerca de 10 minutos de casa. Era uma sexta-feira, dia 12 de Setembro. Foster Wallace dirigiu-se à garagem e ligou as luzes. Escreveu uma carta em duas páginas. Deixou a garagem, atravessou a casa e saiu para o pátio. Subiu a uma cadeira e enforcou-se. Green encontrou-o horas mais tarde.
Algum tempo antes, tinham feito um pacto. Foster Wallace não faria com que ela tivesse de adivinhar como é que ele estava. Se ele se matasse, dissera-lhe Green, ela transformar-se-ia na Yoko Ono do mundo literário.
Em 2013, Green publicou um livro sobre o suicídio do marido (Siglio Press). Numa das primeiras páginas escreve: “Antes de eu ir para o trabalho nós estávamos debaixo da oliveira e tu estavas a fazer aquilo a que chamavas fumar como um paciente psiquiátrico e disseste – Eu não quero ser Satanás, mas queres juntar-te a mim – e despimos as nossas camisas para roçar as barrigas e a tua muito mais lisa mas de qualquer forma cheia de pão, de qualquer forma despimos as nossas camisas, plexo solar com plexo solar, e este era um ritual reconfortante que fazíamos todos os dias e eu disse – Vamos fazer isto para o resto das nossas vidas. E tu disseste – És tão bonita”. “É difícil recordar coisas ternas com ternura.”
O livro chama-se Bough Down, "tronco caído", e reúne uma série de poemas em prosa e colagens de Green a partir de páginas de livros e selos antigos. George Saunders, o escritor americano, descreve o livro como sendo uma das mais bonitas expressões de amor e perda que alguma vez vamos ler. “Bough Down faz-me lembrar, de alguma forma, o fado português: um lamento oferecido com tanta precisão que se torna luminoso e afirmativo”, lê-se na capa, onde há também quem a compare a Anne Sexton, Sylvia Plath e Emily Dickinson.
Os títulos dos poemas são referências ao espaço (Noutro lugar), tempo (Novembro, Dezembro, Primavera, Junho), frases retiradas do texto, muitas vezes interrogações (É assim que isto começa? Porque não quis ele voltar para lá?) ou versos de canções de Billie Holiday: It’s too hot for words. Let’s call a heart a heart, I sit in my chair, filled with despair. You could be the apple of my eye, but you upset the apple cart. You’re my joy and pain.
No poema com o título “The moon above is yours and mine”, também verso de canção, Green escreveu: “Olhos como pequenos peixes brancos. Uma ilusão óptica. Agora cada ponto de vista é periférico. Eu não consigo ver ou vejo demasiado. Preciso de falar contigo. Os teus braços sentem uma cor irracional. Braços não, caules. Língua não, anémona. Isto não, tu. A meia-lua lá em cima e o seu cenário são só meus. Os segundos podem ser importantes e eu corro neles, eu suporto o teu peso neles. As tesouras são demasido frouxas. O polícia pergunta – Porque é que eu te soltei? A pergunta permanece no presente. Porque eu pensei e ainda penso – talvez.”
Foster Wallace tomava Nardil (um antidepressivo) desde que abandonara o curso de Filosofia, em Harvard. Na Primavera de 2007 decidiu deixar o medicamento, porque achava que estava a afectar a sua saúde e a sua escrita. Os efeitos secundários dos antidepressivos aborreciam-no há algum tempo. Há uma personagem do seu conto “The Planet Trillaphon”, que escreveu quando estudava no colégio de Amherst (Massachusetts), que a dada altura diz: “Ando a tomar antidepressivos há, quê, faz agora um ano, e suponho estar bem qualificado para contar como é. São bons, a sério, mas são bons da mesma maneira que seria bom viver, digamos, num outro planeta que fosse quente e confortável, com comida e água fresca: seria bom, mas não seria a mesma coisa que viver na nossa velha Terra”.
Em entrevista ao New York Times, em 2009, Green conta que na altura percebeu que deixar os antidepressivos seria uma decisão difícil para ele: “A pessoa que estava prestes a deixar de tomar o medicamento, que possivelmente era o que o mantinha vivo, não era a pessoa de que ele gostava”. “Ele não queria preocupar-se tanto com a escrita como se preocupava.” Ao fim de alguns meses Foster Wallace voltou a ficar deprimido e experimentou outro antidepressivo que, no entanto, não resultou.
Foster Wallace era amigo de Jonathan Franzen, o escritor americano. Trocavam emails regularmente. Foster Wallace escreveu-lhe um dia: “Karen anda a matar-se com a remodelação da casa. Eu sento-me na garagem com o ar condicionado no máximo e trabalho muito pouco e cheio de hesitação e com (em alguns dias) grande relutância e ambivalência e dor. Parece que estou cansado de mim próprio: cansado dos meus pensamentos, associações, sintaxe, vários hábitos verbais que foram da descoberta à técnica e da técnica a tiques. É um tempo negro para o trabalho, e ainda assim um tempo muito leve e bonito em todos os outros aspectos. No geral sinto que estou no bom caminho e estou muito feliz”.
Livros, filmes, ideias.