A uma mulher na Praça de Londres

Já a cidade boceja quando o meu olhar oblíquo tropeça em ti. Não o fiz com ternura, antes com a ridícula curiosidade de examinar os teus contornos, como o comprador que analisa a mercadoria. Observo-te a perfurar a calçada com saltos agulha, num espernear desengonçado de cansaço e derrota; formosa, mas pouco segura. Terás sido bonita antes de te venderes ao desbarato. Casaco leopardino, saia de napa, meias de rede de malha larga são o teu fiel uniforme. Infiel a ti mesma, varres a rua com olhos de lince. Esbarras no meu interesse por ti. Encurtas os passos na esperança de rentabilizar a longifria madrugada da tua puída condição de vida. Vida? Existência. Tenho-te a dez passos, a seis, a três. Passo ao teu lado e olho-te. O pálido verde dos teus olhos, humedecidos de frialdade, choca com o meu espanto. Ainda há poucos anos eras uma criança. Mulher amadurecida em cascos de miséria e violência, as marcas na cara são as tuas divisas, o teu sexo é o sabre com que fazes harakiri quotidianamente. Sopras-me um convite como se ao ouvido e eu, consciente de que só te conquistaria com o aceno de valiosos rectângulos de papel colorido, finjo que não ouço e sigo o meu caminho, com passada segura, junto da igreja caiada pelo primeiro sol. Se parasse, seria para emoldurar o teu rosto com as minhas mãos e, com um olhar de Charlot, gesticular um cravo que depositaria no teu cabelo. 

As coisas em letra garrafal

Daquela vez, a noite tinha descido com golpes de calor e eu logo lhe estranhei a desordem. É suposto as noites serem frias e desertas, um pouco duras e quase sempre dirigidas a Norte. Lembrei-me então desse tempo meio embaraçado, sem idade, as coisas de letra garrafal que a vida dá e a vida tira.

Nunca lhe vi o futuro, ele era constantemente urgente e intraduzível, aos arranques, mas eu pensava que o futuro se fazia assim, uma camada sobre outra camada, por vezes à revelia da ordem, por vezes a direito. Tinha organizado o mundo em conceitos: havia os conceitos e havia os não-conceitos, havia o céu e havia o chão, o longe e o perto, e por adiante. Debatia-me desde sempre com os a-conceitos, o berro da proximidade - tinha jeito para esses, essa biografia de ponto e sem nome, às vezes sem propriedade sequer. Que dizer? Era o hábito, essas regras de cabelo farto. Aprendi depois que há muitas outras regras – há o futuro, o presente e até ausências de futuro que podem viver continuamente em tempo presente.

Nunca lhe perguntei o que pensava sobre isso. Remexia no café, parava e via-lhe os olhos curtos e cansados, talvez pelo cheiro das coisas esquecidas, e, no entanto reconhecia-lhe a razão em dar significado a essas regras que não conhecia.

Aprendi-lhe o gosto de ir sem certeza de nada, já a Clarice dizia que certeza certeza só mesmo a dos amigos do peito. Às quartas comentávamos todos juntos e entre o travo da cerveja que há pressa nas vozes dos outros, matemática, até tecnologia em tudo o que devia vir da boca (E se for para ser irónica que o seja, que é pois o mundo?) O professor cedia ao silêncio logo após uns minutos e via-se que ficava a tricota-lo, como se a cidade que tinha escolhido para amar os estudantes lhe doesse um bocado. (Penso que era mais isto de estarmos em expansão, temos este aspecto meio inesperado e ansioso apesar da fotografia só captar algumas partes; entretanto há coisas que faltam, elas também em letras garrafais, sem que artista nenhum tenha conseguido esboçar bem. Da forma da falta, será quadrada, cilíndrica, em perpendicular?) Depois regressava da sonolência e re-embrenhava no ritmo.

Parecia que tinha saído de uma rua e voltava noutra mas no fundo sabia que nunca se sai das mesmas ruas, dão-se umas voltas e depois regressa-se ao mesmo, só que se está mais preparado para as aceitar. 

 

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Da importância da história

Ao longo dos tempos o homem pensou que era só um. Depois veio a Revolução Francesa e ficou tudo na mesma. Alguns até sabem a data de cor, que eu não sei, mas mesmo assim são capazes de assegurar que a partir daquele momento nada mais como aquilo se passou. Na verdade, na verdade vos digo: nunca se passou nada disso. O homem nunca foi à lua. Ou melhor: o homem foi à lua antes de ficar tudo na mesma. Que é o mesmo que dizer: o homem nunca foi à lua.

A lua não é um satélite, sabeis? Fica bem falar assim (sabeis), porque me distraio sempre do fundamental: ao longo da história tudo se repete, ainda que ninguém esteja disposto a admitir que algo se repetiu. Ora bem, vejamos, sim, os refugiados, coitados. Mas quais refugiados? Refugias-te em ti, refugias-te em mim, e depois dizes que nunca refugiste de ti. Ouve bem: “refugiste”. Soa-te estranho no cérebro? Ainda bem, é sinal que ainda tens algum senso de novidade. Voltaste a fugir, mas agora sabes que nunca pudeste fugir de ti, nem seria bom que o fizesses. Alguém disse - sei perfeitamente quem, só não estou para o dizer - que nunca ninguém fugiu de si, por mais exilado que fosse. Belo, é isso mesmo. Mas esqueçamos a individualidade: ninguém pode ser indivíduo, nunca, não, a indivisibilidade está só ao alcance dos superbusões ou de um qualquer elemento que nunca será visível. Eu divido-me. Agora, por exemplo, divido-me em história.

E quem é ela? Quem é?

Bom, genocídios.

Venham os genocídios. E contemos um a um.

Os Nazis?

Chamem os Romanos. Chamem todos. Todos eles genocidaram. E depois ficaram parados, porque morreram. Coitados dos refugiados - bem entendido - nós. Não sou de sublinhar palavras: mas aqui fica. NÓS.

Mas há sempre este grave problema. Nós não somos eles. A menos que a história existisse, e que soubéssemos que tudo o que vivemos já foi vivido de outra forma e noutra altura.

Mas isso, meu bom amigo, é impossível. Se vinte e cinco de Abril ou quarenta e quatro de Maio ou o trezentos e cinco de Março existiram foi para serem isso mesmo: uma data.

CALEM-SE DATAS.

Sabes que “data” (agora não me apetece investigar, estou a escrever um manuscrito isolado no monte Parnasso) é algo plural que foi dado. Mas sabes que nós, os que somos amiúde e frequentemente (passo o pleonasmo) presenteados esquecemos a dádiva. Daí que tudo seja dado pelo esquecimento.

Mas, desculpem, o tema de hoje (reparem na ambiguidade entre o tu e o vocês) é. História. A História não existe, a não ser que seja para nomear Júlio César como o grande general romano, e não como o filho da puta que destruiu o que restava do futuro da República. Sim, não se esqueçam, hoje podíamo-nos estar a esquecer de como Roma foi cada vez mais uma República até que se tornou numa república, com Cristo e tudo, até ao ponto em que foi sodomizada pelos Bárbaros (que só sabiam dizer bar-bar-bar), que vieram de algures, para depois serem por sua vez remasterizados pelos próprios pagãos-cristãos vindos de alhures que afinal era o mesmo sítio. E depois voltávamos a agora, num ponto talvez mais à frente, num ponto em que cristão-muçulmano-indígena-hindu fosse uma onomatopeia: “oh”, ou como dizem bem os ingleses: AWE (não, tu aí, não confundas com יהוה, olha que te podes tornar ecuménico).

Bom, tudo somado: não à história. Não há história.

A seguir ‘tás-me a dizer que o verbo estar não tem as vogais e consoantes que o iniciam, e isso sim, seria perder todo o universo, toda a gente sabe que a fonética sempre se sobrepôs à ética (basta ler o final do último parágrafo). Fonologia não, é outra coisa, é o estudo da mente, mesmo quando ela passa pelo som. Bom, de qualquer das formas escreve-te o grande poeta grandiloquente, Braga Falcão, que ninguém conhece, mas que quando conhecerem dirão: aquele é o Braga Falcão, para depois - estando eu já felizmente morto - o esquecerem. Melhor das hipóteses: uma placa de rua. Sabem (ou sabeis?), ah, awe, יהוה, θεέ, ॐ, como estou prostrado perante o crescendo da música e das palavras (usei “e” e não um genitivo) que denunciam que somos uma rua. Vivi numa rua chamada Rodrigues Sampaio, noutra chamado Engenheiro Miguel Pais, noutra chamada General Torres. Sabem o que gosto mais? Daquelas felizes e tão infelizes décadas em que vivia numa terra de nome sem nome numa rua tão estranha como “Estrada do Parque” (?, sim é mesmo assim), e em que é de supor havia uma vivenda que nunca teve uma placa a dizer que era uma vivenda. Chamava-se “O Pinhal”. Chama-se.

Mas deixem lá isso. Uma história é uma infância vivida a sós. Por isso nunca nos lembramos dela, por isso é tão difícil recordar. Se tivessem discernimento saberiam, como eu nunca fui capaz, amar o verbo recordar.

Tem um coração lá dentro. E isso é verdadeiramente lamechas, e tu sabes como é bom ser lamechas. É o mais próximo que tens de ser mãe ou pai.

Meteram-me neste tempo que tem a história que sempre o tempo teve. Ou esteve. As vogais e consoantes intrometem-se sempre, nímio. Gosto desta palavra que tu não conheces: nímio. Se a conheces, algo de errado se passa contigo, e devias-me escrever. Estarei cá para te escrever, nem que arranje (gosto deste coloquialismo, afasta-me do pai latim) um secretário (já me lixei, cá está ele em segredo).

Seja como for, amanhã haverá outra história. A de hoje: pessoas infelizes fogem, e as pessoas que se julgam a caminho de uma qualquer felicidade dizem que a infelicidade dessas outras pessoas está numa direcção oposta e contrária, digamos assim, em sentido contrário, e portanto mais vale que as lições de matemática estejam certas e que menos com menos, como é lógico, dê menos.

De resto, odeio hoje. Hoje é uma coisa nojenta. Ou vivemos na história, e assim ela nunca há-de morrer, ou vivemos hoje.

E hoje uma merda qualquer com um nome qualquer marcou uma merda de golo qualquer contra um genocídio qualquer, que gritou “coitadinhos”.

Coitadinhos. Deixa-me só aqui desligar o monitor (ah, é bonito não é, aquele que avisa, não estou outra vez para verificar esta raiz, estou certo que sim), e vou encetar esta próxima hipocrisia: a história existe.

A história tem importância. Pelo menos enquanto disciplina. Vá lá, é importante que saibamos algo acerca do antigamente.

E não ser que não.

Pelos olhos da mariposa

são três da manhã, você não consegue dormir. Seus olhos já vagaram pelo quarto todo, as paredes brancas são brancas apenas no espectro que resta na sua mente porque o escuro mastigou tudo, mas seus olhos estão abertos, a tela do celular projeta imagens e mais imagens que são como um paliativo para os sonhos que você não está tendo. Você nem lembra quanto tempo faz desde a última vez que acordou com as imagens refletidas no fundo do olhos ou quando alguma criança chorando a tarde, no apartamento ao lado, te lembrou de repente a estátua da Pietá translúcida que percorreu tua noite anterior. O som dos teus cílios roçando o travesseiro quando você pisca é a única coisa que interrompe o silêncio imediato. Ao longe ressoam carros, mas a sensação é de que o mundo termina logo atrás das paredes, o resto são irrealidades inúteis. Seu corpo dói, como se estivesse atado ao colchão ou como se você tivesse praticado esportes durante a tarde, o que jamais seria um fato porque as vezes você sente que seu corpo é feito de vidro, ou do mesmo material que as asas de uma mariposa. Hoje você viu uma mariposa negra no banheiro e ao pensar na sua fragilidade a imagem se levanta, te cobre os olhos. Que seria de você se fosse realmente tão frágil como as asas? Os teus dias cansativos seriam algozes, Caronte te levando na barca, você percebe que Caronte é a figura mais intensa do Tempo. São três e quinze da manhã, você vai levantar cedo, provavelmente o despertador começará às sete, quando os olhos se abrirão para perceber que mais uma vez não há memória de um sonho qualquer, nenhuma imagem, nenhuma cor. Talvez então você pense em mentir, porque te é tão estranho não ter uma fantasia se manifestando quando é isso que a psicanálise diz que acontece, e você não quer duvidar,  sãopoucas as tuas chances e se eliminar cada uma delas só vai restar acordar todos os dias para perceber tuas qualidades de mariposa, de coisa tola, ignorada, você vai se encarar como o sendo comum encara a mariposa, uma cópia mal feita de uma borboleta. Mas é que a mariposa tem sua qualidade naquilo que falta à borboleta, sutileza, silêncio, não o berro da cor da borboleta. Mas o bater de asas da mariposa é o frenético debater-se do afogado, a mariposa e você se afogam na realidade da noite, e você não tem nem o alívio do votar, o alívio do sonho para que sua realidade se torne menos intragável. Amanhã acordará apenas para receber a vida em ondas opressivas se movimentando através dos vazios da rotina opaca, desnutrida de fantasias, que tem levado pelos últimos meses e que é como se você esfregasse o pó das asas da mariposa nos olhos, cada vez mais cego, incapaz de ver a luz no fim do túnel.

 

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queima de arquivo

minha avó tinha uma ilha/ nada para se vangloriar/ dava-se uma volta nela numa hora/ ainda assim era um paraíso/ um verão fizemos uma visita e descobrimos que o lugar estava infestado por ratos/ chegaram num barco de pesca e passaram a se alimentar de coco/ minha avó me ensinou como se livrar dos ratos de uma ilha/ enterramos um barril e o deixamos aberto/ depois colocamos um coco como isca/ os ratos foram em busca do coco e caíram no barril/ depois de um mês prendemos todos os ratos/ mas não jogamos o barril no oceano nem o queimamos/ deixamo-lo ali/ os ratos começaram a sentir fome/ e um a um passaram a se devorar/ até que só restaram dois/ os dois sobreviventes/ pegamos e os soltamos nas árvores/ mas agora eles não comem mais coco/ agora eles só comem ratos

 

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