As Aventuras do Senhor Lourenço §3 (da cobardia essencial)

A indefinição identitária que relatei no último apontamento da história do Senhor Lourenço é uma marca que os leitores devem reter (não se esqueçam também que para Montaigne o que importa num livro é ser apropriado pela vida). Um ser sem uma ideia clara de si pode ficar apavorado com o que é; patético e perigoso, ao mesmo tempo.

De qualquer forma, nunca apanhei Lourenço em clara negação de complexidade (apesar de ser um síndroma bem português), no domínio dos comportamentos trágicos chega a considerar-se moderadamente corajoso. Dá o exemplo de certa vez ter salvo uma rapariga de “morte quase certa”. Às 4 da madrugada de um dia de semana, gritou-se no beco mais escuro do Bairro Alto, e um impulso arcaico empurrou-o para lá, advertindo, numa voz acagaçada, que iria ligar à polícia. Passou por ele (atravessou-o?) um vulto a correr (talvez o putativo agressor), e pouco depois emergiu do meio da neblina malcheirosa uma rapariga, provavelmente adolescente, com a camisa aberta e sem soutien (Lourenço conta isto sem qualquer ponta de lascívia, “possuir um corpo é ser banal”, costuma dizer. Embora sinta por vezes nas prostitutas uma sensualidade fluida e doce ao abraçar-lhes os corpos treinados para resgatar homens da solidão e da amargura). Alguns arranhões na cara e no pescoço, o ar de ter passado por um susto desconhecido, as mãos emparelhadas à frente da barriga tremiam e da sua boca saiam lamentos que oscilavam em sintonia com a respiração ofegante. Mal conseguiu dizer o nome, “Anabela, Anabela Mateus”, que o Lourenço indicou ao 112. Declarou mais tarde à polícia o cumprimento do seu dever sem reconhecer qualquer traço na fisionomia do pretenso malfeitor.

Este episódio parece simples, mas Lourenço não o conta sempre da mesma maneira (confrontado com isso, escuda-se na liberdade hermenêutica e, rindo, até na “morte do autor”), por vezes a “adolescente” transforma-se quase numa “femme fatal”, noutras tem de se defender de alguém armado de uma faca. Estas variações, fazendo lembrar um Borges pouco subtil, lançam dúvidas sobre a realidade do acontecimento. Mas Lourenço permanece inabalável, chega a acrescentar, em tom de desafio, que é mais fácil ser coerente na ilusão do que na verdade.

– Vejam se detectam dúvidas nos fundamentalistas religiosos? Argumenta.

[a talho de foice, convivi vários anos com um mitómano que por desconhecer a fronteira entre a verdade e a mentira era um super lógico]

Este apontamento de bravura contribuiu pouco para esbater a sua imagem de cobardolas. Lembrem-se do Poema em Linha Recta de Álvaro de Campos (“[…] Eu, que quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado / Para fora da possibilidade do soco; […]”), Lourenço é um ser real que foge sempre à possibilidade do soco. Não que isso aconteça realmente muitas vezes, nem ele frequenta locais alimentados pela brutalidade física, mas sabemos de antemão, intuitivamente, que em tal circunstância o veríamos acocorado debaixo de uma mesa ou de uma cadeira.

[às vezes pergunto-me se podemos viver em alegre cobardia e vibrar no nosso íntimo com um herói trágico acabado de sacrificar. Parece-me que sim, há mecanismos de empatia para isso, mas há também uma distância que não permite qualquer emulação. O cobarde pode sentir o trágico, mas não aprende nada com ele]

Enfim, relativizemos: “qualquer um, nas circunstâncias certas, é capaz de qualquer fraqueza”. Todos nos agachamos. Se é verdade que devemos completar a nossa educação confrontando a morte, devemos igualmente fazê-lo envolvendo-nos na cobardia. “Somos mais ricos do que pensamos, cada um de nós.” Mas continuamos a escavar às escuras.

(cont.)

As Aventuras do Senhor Lourenço (preâmbulo II)

O senhor Lourenço sentia no corpo toda a pressão indefinida e prolífica da vida, às vezes julgava-se inadequado ao mundo, devia ter continuado na incubadora do velho hospital onde nasceu (Maternidade Alfredo da Costa) em Novembro de 1975. Talvez por isso nunca tenha desenvolvido “qualquer coisa de amargamente destruidor”, como “o homem sem qualidades”. Não havia nele esses impulsos demoníacos que protegem alguns excluídos de cair na irrisão de si mesmos.

            [visto de costas, serei eu “um príncipe do espírito ou um grande-escritor”? Vamos ao que importa, este é o 2.º e último preâmbulo sobre o Lourenço, depois de Proust, que pode prolongar magistralmente por 100 páginas a descrição das personagens, devemos ser modestos]

Lourenço aperfeiçoou uma metodologia que lhe permitia catalogar rapidamente alguém como amistoso ou perigoso, estimável ou detestável. Um método flexível, saíram e entraram critérios (por exemplo: o “parabéns” passou de pindérico a aceitável; ao inverso do “tal e qual”), fez e desfez ângulos de abordagem. Desta forma, apagava-se o mais possível com um gesto justo, mas evanescente, ao mesmo tempo que sorria ou punha uma face esfíngica. Sonhava, sem sucesso, ser um puro, desses, como Hölderlin, difíceis de discernir e que depois de morrerem alguém recupera para o estrato dos olímpicos.

Um dia perguntei-lhe:

– Não achas que há aí um pouco de batota?

– Como?

– Fazes desse método uma lei universal, mas ele é teu, não?

– Simplificas! Retorquiu, com a superioridade de quem domina o diálogo (coisa raríssima nele).

É verdade que reduzi esta questão quase à caricatura, deixem-me, pois, explicar melhor. Tinha como critério positivo o aperto-de-mão-viril, o que contradizia o seu cumprimento “picha-mole”, e ele estava longe de ser um génio onde a contradição é muitas vezes virtuosa. Sentia-se, aliás, bastante perplexo. Talvez por isso, quando percebeu que violava as sacrossantas leis da lógica tenha ido à net encomendar uma puta. Demorou uma hora a escolher, indeciso entre uma ucraniana de 30 anos em promoção e uma “estudante universitária portuguesa quente e meiga” de 24, poliglota e frequentadora assídua dos quadros de honra cognitivos. Acabou por ficar com a ucraniana por €100 (um bónus de €20 em cartão). Serviço ao domicílio meia hora depois (vantagem de viver em Lisboa).

Toque de campainha.

– Sim?

– Linha do prazer, é aqui?

– Sim, vou abrir.

Entrou no apartamento alguém com pelo menos mais 10 anos do que o anunciado, em sobrepeso e uma pele cheia de crateras mal disfarçadas com carradas de base.

– Senhor João?

– Sim, claro, sou eu. E você...

– Eu chamo o que o senhor quiser.

– Pode ser... Tina?

– Certo. Como vai querer?

– Oral e anal.

– Ai, eu não querer cu.

– Como não queres?

– Não ser bom.

– Mas não sou eu que decido?

– Por favor, eu não querer.

– Está bem, oral e manual (regressava ao fetichismo do aperto de mão).

– Booooom.

E lá fizeram aquilo, ora boca, ora mão, direita.

[esta cena não traz nada de novo à erótica ocidental. Mas ao lado do quadro prosaico há uma peça de sentido que reforça o traço agónico de Lourenço, encarnação de “o último homem”]

– Bem, Tina... aqui estão os €100, espero voltar a ver-te...

– O senhor gostar?

– Sim, sim, foi bastante bom.

Nenhum remorso, há muito que Lourenço usava de vez em quando prostitutas, e muito antes disso já tinha declarado que para si a prostituição era uma profissão pelo menos tão digna como a de medicina. Aliás, as senhoras e os senhores de bata branca faziam coisas bem mais imundas do que meter um pénis cheio de vitalidade num buraco do corpo ou apertá-lo na mão. Em boa verdade, Lourenço achava a prostituição bonita, não bela ou útil, não imoral ou insalubre, mas bonita.

Sem remorsos mas sem certezas também sobre a sua orientação sexual. Tina, ou lá como ela se chamava, não tinha dissipado, como mais algumas antes dela, as dúvidas que o contraste aperto-de-mão-mole / aperto-de-mão-rijo tinha inscrito no seu íntimo. Terá isto marcado uma ruptura profunda no Lourenço, fissurando o dique que continha a certeza da sua identidade? Não sei dizê-lo, foi nesta altura que se re-apaixonou pelo Livro do Desassossego, baralhando as razões que pareciam tê-lo tornado menos clarividente. A opacidade que ganhou por volta dos 40, pode, pois, dever-se tanto à confusão entre estilos de aperto-de-mão quanto a um reforço deslocado de Fernando Pessoa, que para não fazer mal, diz-se, deve ser lido na íntegra até aos 30 anos (a não ser que se viva de bolsas FCT). 

As aventuras do Senhor Lourenço

Drama, em três actos

por António Lisboa

 

(preâmbulo I)

Lourenço é um homem com qualidades e nunca fugiu a ser ele. Mas perde-se, como muitos outros, na amálgama de seres anódinos (por força das circunstâncias) que todos os dias sobrevivem. Uma vez disse-me que poderia perfeitamente existir para sempre sentado num banco da Avenida da Liberdade, mesmo sabendo que teria a qualquer momento de se levantar. Uma espécie de “esplendor do nada”.

[se por acaso lesse o que acabo de escrever, chamava-me “parvo” e “traidor”, aconselhando-me a “olhar-me ao espelho” (gosta particularmente deste último sintagma, pilar das suas contra-argumentações)]

Há muito que perdeu o entusiasmo por percorrer Lisboa à procura de pérolas interiores que só se manifestam, em puro acaso, no meio da uma rua ruidosa ou nos cantos dos cafés obscurecidos pela moda neo-romântica, acessíveis a qualquer passageiro optimista de Tuc-Tuc. Em tempos tudo foi diferente – gosta ele de pensar –, “quase não havia quem me parasse”. Ainda assim, embora falar-se disto o aborreça, parece que só por uma meia dúzia de vezes se sentiu reconhecido.

Adora – creio que é uma adição – rememorar e reverberar. Não com aquela nostalgia pavloviana de velho a declamar “no meu tempo é que era”, para ele é mais um gesto do que chama “misticismo silogístico”. Um dia contou-me que essa mistura de lógica e espiritualidade tinha muito simplesmente, mas eficazmente, substituído o álcool que consumia diariamente. É verdade que podia ter começado a fazer desporto – lembro-me agora que em 2000 ou 2001 andou metido com a malta do futebol lá da escola – ou contraído matrimónio, preferiu antes, talvez por comodismo, trabalhar o seu já inato anti-cartesianismo, juntando corpo e mente, lógica e epifanias – ilusões, como sabemos.

Para quem o conhece pela primeira vez, Lourenço é irremediavelmente desinteressante, mesmo fisicamente (40 anos, já meio calvo, arqueado, barriguinha, um branco doentio que dura até ao solstício de Verão, olhos, que aliás raramente vemos, de um castanho banal, mãos sapudas e, sobretudo, uma voz incompreensivelmente inofensiva). Nada do que diz transmite vitalidade, hesita permanentemente em entrar ou sair das conversas, fica hirto, embora curvado (semi-círculo rígido), à espera de um silêncio mais prolongado do interlocutor, insere então um assunto que tanto pode seguir, por sentido de vassalagem, o fio condutor da conversa como deslizar para campos totalmente inoportunos. Expliquei-lhe como isso era perturbante, respondeu-me que raramente ouvia o que lhe diziam, mas não o fazia por mal. No fim dos encontros despede-se com um aperto de mão tão mole ou com dois beijos tão imperceptíveis que muitos o esquecem nos dez segundos seguintes. Em resumo: “é ténue e rasteirinho”.

[como posso então chamar a isto “As Aventuras do Lourenço”, mesmo que seja “do” e não “de”, mesmo que o termo “aventura” remeta hoje mais para um parque de diversões do que para uma volta ao mundo ainda cheio de mitos? Além disso, sei que nenhum herói se pode chamar “Lourenço”, como consta da acta lavrada em reunião da Associação Nacional dos Ateliers de Escrita Criativa. Enfim, a ficção deve ter uma boa dose de ironia, só assim reforça a ambiguidade, abrindo para peripécias inverosímeis]

Porém, Lourenço é professor de filosofia.

[porquê “porém”?, conheço tantos que nunca foram além de uma compreensão imperfeita da linha menos complexa da história da filosofia]

Por detrás da impressão frustrante que frequentemente provoca nas pessoas emerge um minúsculo arco-íris capaz de entontecer alguns ingénuos. Transporta na algibeira citações engraçadas, vibra ligeiramente com o anedotário filosófico clássico e transmite alguma credibilidade. Pensamos: “figura banal, mas tem um certo charme, parece desprendido do histrionismo inconsequente que baralha a vida das pessoas normais, talvez haja ouro no interior desta carapaça sem jeito”. Se é puro engano? Não, há de facto pequenas pepitas de metal precioso na consciência e corpo do Lourenço, uma ou outra análise mais arriscada, quase inteligente, certa modéstia crística, frugais apontamentos estóicos, quatro ou cinco caracóis que rebelam o pouco cabelo que lhe resta, a possibilidade de ter uma família que o admira secretamente, o seu passado de tesoureiro de uma Associação qualquer (alguns pensam, erradamente, ser a dos alunos da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa).

[esta complexidade encoberta foi a razão por que o escolhi para personagem principal, tudo girará à sua volta, verão que se transformará num aventureiro destemido e admirado]

Ele entrou no quarto a pedido dela. Apontou os olhos aos quadros, poucos, que revestiam as paredes. Uma velha fotografia reteve-lhe mais o olhar concentrado e metódico. Ela arrumava a mesa-de-cabeceira como sempre fazia antes de se deitar. Tal como a sua cabeça, não tardaria a encher-se de tralhas dispersas. Ele percebeu que ela passava as mãos pelo lençol, arrumando a cama sempre desalinhada. A cama e a mesa-de-cabeceira resumem o seu quotidiano; restos de horas passadas: telemóveis, copos de iogurte, revistas especializadas nas pobres vidas de famosos ricos, alguns medicamentos que esses patetas-alegres também tomariam para não deixarem de o ser.

Ele sentou-se na cama. Ouvia-se o mar disse ela. Ele não conseguia ouvir; apenas o rumor agudigrave que tinha armazenado na cabeça. Uma luz ténue de candeeiro criou sombras familiares. Viu-a reflectida no espelho alto no canto do quarto. Preparava-se para se despir. Ela disse qualquer coisa que ele não percebeu. A cegarrega que tinha na cabeça ensimesmava-o ainda mais. Depositou interesse num livro em formato de calhamaço. Pesou-o com a mão e lembrou-se de Adília a fazer o mesmo na TV. Oitocentos gramas de lixo para consumo de leitores que nunca o seriam. As palavras não deviam acumular-se em lixo. Quem o faz é um criminoso com lixo na cabeça. Palavras.

Ela não lera nem uma página. Perguntou-lhe se ele se importava que ela se despisse à frente dele. Ele acenou que não com a cabeça e disse qualquer coisa que indiciava a banalidade do gesto. Ele olhou para o livro, escusando-se a ver os seios pendurados pela força anti-gravítica dos braços esticados que, com dificuldade, faziam passar a cabeça pelo buraco da t-shirt. Ela não se importaria se ele olhasse. Ele lia um parágrafo ao calhar e concentrava-se no ruído que a sua cabeça sintonizava. Ruído e lixo. Ela perguntou-lhe se ele podia ler-lhe umas páginas. Gostava de o ouvir ler. Sentia-se levada pela voz grave, de tom ligeiramente sarcástico. A voz penetrava-a como uma droga. Ria como uma criança quando ele exagerava a entoação de um trecho mais humorístico. Entrou na cama. Ele adivinhava-lhe a camisa de dormir a subir pelas pernas acima e ela a compô-la com a destreza do costume. Ele sorriu-lhe. Ela também. Um sorriso de miúda feliz. Ele gostava mesmo daquele sorriso amplo e disponível. Ela fechou os olhos para ouvir melhor. Duas páginas depois e ela já tinha sido tomada pelo sono. Ele deu-lhe dois beijos na face quase repleta de fios compridos de cabelo. Terminou a leitura. Ficou um bocado a olhar para ela. As minúsculas crateras de acne exageradas pela sombra. O nariz amplo mas não desfigurante. O rosto esculpido. O sono ainda ia leve; ela estendeu-lhe a mão em busca de segurança. A âncora buscando o fundo. Ele deu-lhe mais alguns beijos na cara num gesto de incontrolável carinho. Os lábios dela moveram-se, como que retribuindo. Ele mexeu-se para se ir embora. Ela não deixou. A âncora tinha sido lançada; não queria voltar ao mar revolto. Puxou-lhe a mão e encostou-a a si; junto do seio carnudo e quente. Ele sentiu-o não indiferentemente. Beijou-a de novo. Sentia a rigidez provocada pelo corpo dela. Quase adormeceu. Quando viu que Morfeu já a tinha levado consigo nos braços, ergueu-se com cuidado para que ele não a deixasse cair. Sentiu uma humidade desconfortável. Aproximou os lábios do rosto dela. Beijou-a. Lembrou-se dos acordes de uma canção de embalar. Trauteou-a mentalmente. Moveu-se com passos moles de ladrão. Abriu a porta da rua, desceu as escadas e saiu do prédio. Parou para ouvir o mar e sentiu a humidade salgada nos lábios. Olhou para a janela do quarto de onde saíra, e penetrou na noite.

Carta a D. Pedro I

Lisboa, hoje

Pedro, meu amigo,

Tu e Inês foram uma fraude. Tu, porque tinhas o meu nome. A outra, porque já estava morta quando a fizeste rainha, e isso nunca pode ser uma coisa boa, a não ser que gostes de carne morta, o que numa monarca não é bom em termos de política interna. Porque, se atentarmos bem no assunto, não podemos dirigir súbditos se estivermos verificadamente mortos, a não ser que estejamos perante o final dos tempos, altura em que também não é assaz conveniente ser rainha, porque os últimos serão os primeiros, e não há diadema que resista. A não ser que o buraco da agulha se tenha alargado de tal forma que pelo meio passe um camião que se assemelhe de forma extraordinária a um petroleiro.

Bom, já te tinha escrito, dizendo-te que isto de estar vivo e amar um esqueleto não é coisa fácil. Ficaste admirado, dizendo-me que tudo será metafórico.

Respondi-te, bom, se precisas de uma empresa de mudanças, na Grécia ainda há muitas.

Como? - disseste-me.

A ligação estava terrível. Fosse como fosse, tentei explicar-te que ser-me-ia impossível dialogar contigo, uma vez que tu também já estavas morto e eu estava vivo, e que a ficção tem o limite da realidade. Olhaste-me nos olhos e disseste-me: o amor não tem barreiras. Foi talvez a frase mais desadequada que ouvi, visto que seria impossível este diálogo.

Mais à frente encontrei Inês. Não consegui entender muito bem, pois falava num sotaque muito, muito esquisito. Já tu eras a mesma coisa, não sei bem que língua te ensinaram, mas português não era com certeza. Ainda assim, insistiu em falar, o que é bastante estranho, dado o facto de nunca nenhum de nós se ter conhecido: isto é, não nos conhecemos um ao outro. Não que nos conheçamos a nós próprios, na nossa intimidade.

Por falar em intimidade, ainda bem que já existiam métodos contraceptivos nessa altura em que vives. Um cadáver pode ser adiado eternamente.

Bom, adiante, já que estou neste registo coloquial, confesso-te, rei Pedro, que sempre te admirei bastante, não por ti, mas por nos teres deixado uma certa mitologia. Sabes, gosto muito de cultura clássica e sempre achei que não tínhamos suficiente cá em casa. Mas tu vieste e provaste que os mortos são sempre melhores que os deuses, porque pelo menos temos a certeza de que existem. Bem entendido: tenho dúvidas que tenhas existido, pelo menos a tua mão direita. Serias destro? Esta palavra dever-se-ia escrever com “x”. Nunca um rei como tu se poderia ter tocado de uma forma que não fosse sugerida por alguma companhia que o fizesse. Os reis não são como Onan, o Selvagem, não, têm gente que o faz por ele.

Esta carta já vai curta, tenho pena, sei que não me estás a ler, mas ao menos poderias estar a ouvir, já que estás tão presente no imaginário de uns quantos que imaginam que “Portugal” é isto. Como estão enganados. Amanhã ninguém saberá quem é Pedro e Inês, e até confundirão o “in hoc signo vinces” com palavras alusivas a uma certa lusitanidade, quando no fundo todos sabem que imperadores e imperatrizes foram feitos para morrer como a tua Inês, e aquela criada que nunca cumprimentaste chamava-se Maria dos Anjos, coitada, vivia num cubículo sem janelas e todas as noites tossia tão forte que os anjos acordavam entre si: que grande tosse tem aquela mulher.

Ainda assim resististe, fizeste bem, à tragédia daquela mulher. Refiro-me à Maria dos Anjos, a Inês já lá vai, ih!, aonde foi ela, já toda gente sabe aonde ela foi. A Maria dos Anjos continua morta, porque nunca sentiste que ela viveu. Tinha quatro filhos, do mesmo homem. Era um bruto. Cheirava sempre a vinho e tinha uma particular motivação pela porrada, com particular incidência na esposa. Uma vez ela abeirou-se de ti, acercou-se de ti e nem te viu. Pensava: “tenho de ir para casa fazer pão, senão o cabrão arreia-me forte e feio”. Foi quando pensaste: “Ah, estavas tu linda Inês ... de teus anos colhendo doce fruito.” Nunca percebeste porque puseras três pontos entre tamanhas frases, mas o tempo provaria que tinhas razão em fazê-lo. Adiante. A Maria dos Anjos.

A Maria dos Anjos era muito feia. Nunca foi rainha, morreu, e levava muita porrada. Continua viva, porque nunca ninguém se lembrou da sua morte. Os seus ossos - se repousassem - morariam numa qualquer vala anónima, num cemitério sobre o qual construíram postumamente três andares de um prédio sem valor, onde todos os dias um tal de José Antunes entra para o seu palácio de um quarto. Ele sim, é o teu herdeiro. Tem o rei na barriga, no sentido em que se acha ao direito de transpor para a vida real tudo o que foi da realeza: designadamente, o dever de estar “à coca”. Estar “à coca” não envolve uma vigilância consumada de tudo o que se passa à sua volta: não, isso seria demasiado político. Estar “à coca” envolve somente adivinhar no que não vê aquilo que gostava de ver. Dou-te, Pedro, um exemplo translúcido: passa uma adolescente grávida. Cá está. “Uma porca”, dirá José Antunes.

Por acaso, esse indivíduo partilhou certa vez o leito (não falemos em tálamo) com uma prostituta de seu nome Inês. Por mais que vos custe entender, sempre há-de haver lupas com nome fino. Fez um filho, que se tornou vice-secretário regional de uma autarquia financiada pelo governo. Subiu tanto na vida que se esqueceu das suas origens. Foi pena, porque poderia ter investigado a sério, e descoberto que era descendente de Inês de Castro, por vias altamente transversas, a tal ponto que nem formam a realidade. Adiante.

Diz-se que por volta de meados de Abril, tu, Pedro, descobriste que o teu grande amor tinha de ser ressuscitado, e por achares que “amor” era do sexo masculino, achaste nisso grande pecado. No teu transe autocrático - típico dos monarcas do teu tempo - decidiste impor a arbitrariedade do género, de forma a que “amor” pudesse fazer referência a uma rainha morta, ou melhor, a uma mulher que já depois de morta fosse rainha.

Como deves imaginar, isso não caiu bem entre a classe bem pensante ibérica, e também entre uns tais de Alanos que entretanto tinham descoberto a filosofia grega. A reencarnação - ou metempsicose, como alegavam confundindo com uma vulgar psicose - não era objecto de tamanha encarnação. A rapariga, para reencarnar, era forçoso que estivesse ainda viva. Não se verificando a situação, não havia volta a dar: o assunto terminava ali. Tu, Pedro não poderias fundar o teu mito inter-geracional, e portanto tudo ficava sem efeito.

Alguns filósofos daqui apontaram até este acontecimento como o grande sinal de que nunca haveríamos de ser um país. É claro que Maria dos Anjos discordava com todo o coração (quem perceber o pleonasmo, que o deixe passar, fica para depois), pois havia tempo que coleccionava moedas de um tal de Afonso, que todos insistiam em tratar por “Quarto”, embora ele fosse bem mais espaçoso do que aquele tugúrio naquele prédio sem valor plantado em cima dos seus ossos sepultados sem sepultura, onde mais tarde José Antunes viria a “consumar a sua virgindade” (não é assim que se diz, mas fica muito melhor) com uma vulgar prostituta. Dessa, ninguém lembra o nome. Inês?

E é sobre ela que versa esta epístola. Desculpa não a escrever em verso, nem parece meu.

Quando era nova, achou-se no meio de nada. Aquilo que achava ser a sua mãe, sumiu-se como sempre se sumia o sol atrás da noite. Ficou-lhe uma tristeza em forma de infância. Quem a criou? Provavelmente ninguém. Conhecia a linguagem mas poucas palavras. O sexo encontrou-o antes da puberdade, sem prazer algum, apenas com a imagem de um rosto transfigurado em masculino. Aí percebeu em toda a transcendência o que era ser mulher nos teus tempos.

Na Igreja olhava Cristo e sentia que ele a amava. Em silêncio orava para que pudesse conhecer mais palavras. O resto do dia era fornicada, em todos os buracos e também em todas as noites.

E nunca teve nome, Pedro, nunca teve um nome como tu. Nem como a tua Inês.

Raios partam as tuas Ineses, que nem têm plural. Muitas mais rainhas foram mulheres depois de mortas, depois de estupradas, depois de vivas. Viveram na iminência de algo a que pudessem chamar vida. E nunca constou que tivessem nome. Ou melhor, tiveram, mas não eram descendentes de um mordomo-mor (mas que raio quer isto dizer? a sério?).

Embora me apetecesse imensamente culpar-te pelo facto de não conheceres outra forma de ser que não a tua, vou-te culpar à mesma: porra, deixa lá de ser rei, por favor, sê anacrónico, assim, à grande, sem desculpas. Diz assim: “amigos, decidi fazer deste país um farol para o resto do mundo: os muito, muito ricos darão o que sobra daquilo que enfardam e dormem, que não é pouco, aos muito pobres, e os outros manter-se-ão como estão até que sejam mais, até tudo se manter em equilíbrio, e até alguém chegar e dizer: mas porque é que precisamos disto tudo? Se recusardes, homens de pouca fé, sereis exterminados, porque na minha ira de rei nada será poupado: o trigo e o joio serão extremamente distintos. Preto e branco.”

Mas espera lá: não estarei eu a descrever o caos por tua boca, Pedro? Como é isto de impor coisas? Julgava que sabia melhor. Peço desculpa.

Tu é que sabes. Deixar ir. És rei, morrerás rei, amanhã acordará um presidente da República, depois quem sabe, talvez venha o final dos tempos, já que os cientistas acordam em que esse momento é inevitável. Previsão para o tempo de amanhã: nada.

Pedro, meu amigo, vou-me deitar agora. Escreve-me sem demora, El-Rei, gosto muito de arcaísmos como os teus.

 

Com velocidades,

 

Pedro Braga Falcão.