Lisboa, hoje
Pedro, meu amigo,
Tu e Inês foram uma fraude. Tu, porque tinhas o meu nome. A outra, porque já estava morta quando a fizeste rainha, e isso nunca pode ser uma coisa boa, a não ser que gostes de carne morta, o que numa monarca não é bom em termos de política interna. Porque, se atentarmos bem no assunto, não podemos dirigir súbditos se estivermos verificadamente mortos, a não ser que estejamos perante o final dos tempos, altura em que também não é assaz conveniente ser rainha, porque os últimos serão os primeiros, e não há diadema que resista. A não ser que o buraco da agulha se tenha alargado de tal forma que pelo meio passe um camião que se assemelhe de forma extraordinária a um petroleiro.
Bom, já te tinha escrito, dizendo-te que isto de estar vivo e amar um esqueleto não é coisa fácil. Ficaste admirado, dizendo-me que tudo será metafórico.
Respondi-te, bom, se precisas de uma empresa de mudanças, na Grécia ainda há muitas.
Como? - disseste-me.
A ligação estava terrível. Fosse como fosse, tentei explicar-te que ser-me-ia impossível dialogar contigo, uma vez que tu também já estavas morto e eu estava vivo, e que a ficção tem o limite da realidade. Olhaste-me nos olhos e disseste-me: o amor não tem barreiras. Foi talvez a frase mais desadequada que ouvi, visto que seria impossível este diálogo.
Mais à frente encontrei Inês. Não consegui entender muito bem, pois falava num sotaque muito, muito esquisito. Já tu eras a mesma coisa, não sei bem que língua te ensinaram, mas português não era com certeza. Ainda assim, insistiu em falar, o que é bastante estranho, dado o facto de nunca nenhum de nós se ter conhecido: isto é, não nos conhecemos um ao outro. Não que nos conheçamos a nós próprios, na nossa intimidade.
Por falar em intimidade, ainda bem que já existiam métodos contraceptivos nessa altura em que vives. Um cadáver pode ser adiado eternamente.
Bom, adiante, já que estou neste registo coloquial, confesso-te, rei Pedro, que sempre te admirei bastante, não por ti, mas por nos teres deixado uma certa mitologia. Sabes, gosto muito de cultura clássica e sempre achei que não tínhamos suficiente cá em casa. Mas tu vieste e provaste que os mortos são sempre melhores que os deuses, porque pelo menos temos a certeza de que existem. Bem entendido: tenho dúvidas que tenhas existido, pelo menos a tua mão direita. Serias destro? Esta palavra dever-se-ia escrever com “x”. Nunca um rei como tu se poderia ter tocado de uma forma que não fosse sugerida por alguma companhia que o fizesse. Os reis não são como Onan, o Selvagem, não, têm gente que o faz por ele.
Esta carta já vai curta, tenho pena, sei que não me estás a ler, mas ao menos poderias estar a ouvir, já que estás tão presente no imaginário de uns quantos que imaginam que “Portugal” é isto. Como estão enganados. Amanhã ninguém saberá quem é Pedro e Inês, e até confundirão o “in hoc signo vinces” com palavras alusivas a uma certa lusitanidade, quando no fundo todos sabem que imperadores e imperatrizes foram feitos para morrer como a tua Inês, e aquela criada que nunca cumprimentaste chamava-se Maria dos Anjos, coitada, vivia num cubículo sem janelas e todas as noites tossia tão forte que os anjos acordavam entre si: que grande tosse tem aquela mulher.
Ainda assim resististe, fizeste bem, à tragédia daquela mulher. Refiro-me à Maria dos Anjos, a Inês já lá vai, ih!, aonde foi ela, já toda gente sabe aonde ela foi. A Maria dos Anjos continua morta, porque nunca sentiste que ela viveu. Tinha quatro filhos, do mesmo homem. Era um bruto. Cheirava sempre a vinho e tinha uma particular motivação pela porrada, com particular incidência na esposa. Uma vez ela abeirou-se de ti, acercou-se de ti e nem te viu. Pensava: “tenho de ir para casa fazer pão, senão o cabrão arreia-me forte e feio”. Foi quando pensaste: “Ah, estavas tu linda Inês ... de teus anos colhendo doce fruito.” Nunca percebeste porque puseras três pontos entre tamanhas frases, mas o tempo provaria que tinhas razão em fazê-lo. Adiante. A Maria dos Anjos.
A Maria dos Anjos era muito feia. Nunca foi rainha, morreu, e levava muita porrada. Continua viva, porque nunca ninguém se lembrou da sua morte. Os seus ossos - se repousassem - morariam numa qualquer vala anónima, num cemitério sobre o qual construíram postumamente três andares de um prédio sem valor, onde todos os dias um tal de José Antunes entra para o seu palácio de um quarto. Ele sim, é o teu herdeiro. Tem o rei na barriga, no sentido em que se acha ao direito de transpor para a vida real tudo o que foi da realeza: designadamente, o dever de estar “à coca”. Estar “à coca” não envolve uma vigilância consumada de tudo o que se passa à sua volta: não, isso seria demasiado político. Estar “à coca” envolve somente adivinhar no que não vê aquilo que gostava de ver. Dou-te, Pedro, um exemplo translúcido: passa uma adolescente grávida. Cá está. “Uma porca”, dirá José Antunes.
Por acaso, esse indivíduo partilhou certa vez o leito (não falemos em tálamo) com uma prostituta de seu nome Inês. Por mais que vos custe entender, sempre há-de haver lupas com nome fino. Fez um filho, que se tornou vice-secretário regional de uma autarquia financiada pelo governo. Subiu tanto na vida que se esqueceu das suas origens. Foi pena, porque poderia ter investigado a sério, e descoberto que era descendente de Inês de Castro, por vias altamente transversas, a tal ponto que nem formam a realidade. Adiante.
Diz-se que por volta de meados de Abril, tu, Pedro, descobriste que o teu grande amor tinha de ser ressuscitado, e por achares que “amor” era do sexo masculino, achaste nisso grande pecado. No teu transe autocrático - típico dos monarcas do teu tempo - decidiste impor a arbitrariedade do género, de forma a que “amor” pudesse fazer referência a uma rainha morta, ou melhor, a uma mulher que já depois de morta fosse rainha.
Como deves imaginar, isso não caiu bem entre a classe bem pensante ibérica, e também entre uns tais de Alanos que entretanto tinham descoberto a filosofia grega. A reencarnação - ou metempsicose, como alegavam confundindo com uma vulgar psicose - não era objecto de tamanha encarnação. A rapariga, para reencarnar, era forçoso que estivesse ainda viva. Não se verificando a situação, não havia volta a dar: o assunto terminava ali. Tu, Pedro não poderias fundar o teu mito inter-geracional, e portanto tudo ficava sem efeito.
Alguns filósofos daqui apontaram até este acontecimento como o grande sinal de que nunca haveríamos de ser um país. É claro que Maria dos Anjos discordava com todo o coração (quem perceber o pleonasmo, que o deixe passar, fica para depois), pois havia tempo que coleccionava moedas de um tal de Afonso, que todos insistiam em tratar por “Quarto”, embora ele fosse bem mais espaçoso do que aquele tugúrio naquele prédio sem valor plantado em cima dos seus ossos sepultados sem sepultura, onde mais tarde José Antunes viria a “consumar a sua virgindade” (não é assim que se diz, mas fica muito melhor) com uma vulgar prostituta. Dessa, ninguém lembra o nome. Inês?
E é sobre ela que versa esta epístola. Desculpa não a escrever em verso, nem parece meu.
Quando era nova, achou-se no meio de nada. Aquilo que achava ser a sua mãe, sumiu-se como sempre se sumia o sol atrás da noite. Ficou-lhe uma tristeza em forma de infância. Quem a criou? Provavelmente ninguém. Conhecia a linguagem mas poucas palavras. O sexo encontrou-o antes da puberdade, sem prazer algum, apenas com a imagem de um rosto transfigurado em masculino. Aí percebeu em toda a transcendência o que era ser mulher nos teus tempos.
Na Igreja olhava Cristo e sentia que ele a amava. Em silêncio orava para que pudesse conhecer mais palavras. O resto do dia era fornicada, em todos os buracos e também em todas as noites.
E nunca teve nome, Pedro, nunca teve um nome como tu. Nem como a tua Inês.
Raios partam as tuas Ineses, que nem têm plural. Muitas mais rainhas foram mulheres depois de mortas, depois de estupradas, depois de vivas. Viveram na iminência de algo a que pudessem chamar vida. E nunca constou que tivessem nome. Ou melhor, tiveram, mas não eram descendentes de um mordomo-mor (mas que raio quer isto dizer? a sério?).
Embora me apetecesse imensamente culpar-te pelo facto de não conheceres outra forma de ser que não a tua, vou-te culpar à mesma: porra, deixa lá de ser rei, por favor, sê anacrónico, assim, à grande, sem desculpas. Diz assim: “amigos, decidi fazer deste país um farol para o resto do mundo: os muito, muito ricos darão o que sobra daquilo que enfardam e dormem, que não é pouco, aos muito pobres, e os outros manter-se-ão como estão até que sejam mais, até tudo se manter em equilíbrio, e até alguém chegar e dizer: mas porque é que precisamos disto tudo? Se recusardes, homens de pouca fé, sereis exterminados, porque na minha ira de rei nada será poupado: o trigo e o joio serão extremamente distintos. Preto e branco.”
Mas espera lá: não estarei eu a descrever o caos por tua boca, Pedro? Como é isto de impor coisas? Julgava que sabia melhor. Peço desculpa.
Tu é que sabes. Deixar ir. És rei, morrerás rei, amanhã acordará um presidente da República, depois quem sabe, talvez venha o final dos tempos, já que os cientistas acordam em que esse momento é inevitável. Previsão para o tempo de amanhã: nada.
Pedro, meu amigo, vou-me deitar agora. Escreve-me sem demora, El-Rei, gosto muito de arcaísmos como os teus.
Com velocidades,
Pedro Braga Falcão.