As Aventuras do Senhor Lourenço §3 (da cobardia essencial)

A indefinição identitária que relatei no último apontamento da história do Senhor Lourenço é uma marca que os leitores devem reter (não se esqueçam também que para Montaigne o que importa num livro é ser apropriado pela vida). Um ser sem uma ideia clara de si pode ficar apavorado com o que é; patético e perigoso, ao mesmo tempo.

De qualquer forma, nunca apanhei Lourenço em clara negação de complexidade (apesar de ser um síndroma bem português), no domínio dos comportamentos trágicos chega a considerar-se moderadamente corajoso. Dá o exemplo de certa vez ter salvo uma rapariga de “morte quase certa”. Às 4 da madrugada de um dia de semana, gritou-se no beco mais escuro do Bairro Alto, e um impulso arcaico empurrou-o para lá, advertindo, numa voz acagaçada, que iria ligar à polícia. Passou por ele (atravessou-o?) um vulto a correr (talvez o putativo agressor), e pouco depois emergiu do meio da neblina malcheirosa uma rapariga, provavelmente adolescente, com a camisa aberta e sem soutien (Lourenço conta isto sem qualquer ponta de lascívia, “possuir um corpo é ser banal”, costuma dizer. Embora sinta por vezes nas prostitutas uma sensualidade fluida e doce ao abraçar-lhes os corpos treinados para resgatar homens da solidão e da amargura). Alguns arranhões na cara e no pescoço, o ar de ter passado por um susto desconhecido, as mãos emparelhadas à frente da barriga tremiam e da sua boca saiam lamentos que oscilavam em sintonia com a respiração ofegante. Mal conseguiu dizer o nome, “Anabela, Anabela Mateus”, que o Lourenço indicou ao 112. Declarou mais tarde à polícia o cumprimento do seu dever sem reconhecer qualquer traço na fisionomia do pretenso malfeitor.

Este episódio parece simples, mas Lourenço não o conta sempre da mesma maneira (confrontado com isso, escuda-se na liberdade hermenêutica e, rindo, até na “morte do autor”), por vezes a “adolescente” transforma-se quase numa “femme fatal”, noutras tem de se defender de alguém armado de uma faca. Estas variações, fazendo lembrar um Borges pouco subtil, lançam dúvidas sobre a realidade do acontecimento. Mas Lourenço permanece inabalável, chega a acrescentar, em tom de desafio, que é mais fácil ser coerente na ilusão do que na verdade.

– Vejam se detectam dúvidas nos fundamentalistas religiosos? Argumenta.

[a talho de foice, convivi vários anos com um mitómano que por desconhecer a fronteira entre a verdade e a mentira era um super lógico]

Este apontamento de bravura contribuiu pouco para esbater a sua imagem de cobardolas. Lembrem-se do Poema em Linha Recta de Álvaro de Campos (“[…] Eu, que quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado / Para fora da possibilidade do soco; […]”), Lourenço é um ser real que foge sempre à possibilidade do soco. Não que isso aconteça realmente muitas vezes, nem ele frequenta locais alimentados pela brutalidade física, mas sabemos de antemão, intuitivamente, que em tal circunstância o veríamos acocorado debaixo de uma mesa ou de uma cadeira.

[às vezes pergunto-me se podemos viver em alegre cobardia e vibrar no nosso íntimo com um herói trágico acabado de sacrificar. Parece-me que sim, há mecanismos de empatia para isso, mas há também uma distância que não permite qualquer emulação. O cobarde pode sentir o trágico, mas não aprende nada com ele]

Enfim, relativizemos: “qualquer um, nas circunstâncias certas, é capaz de qualquer fraqueza”. Todos nos agachamos. Se é verdade que devemos completar a nossa educação confrontando a morte, devemos igualmente fazê-lo envolvendo-nos na cobardia. “Somos mais ricos do que pensamos, cada um de nós.” Mas continuamos a escavar às escuras.

(cont.)