(cont.)
Um dia, Lourenço olhou para o Sol e decidiu fazer uma revolução copernicana ao contrário (de Kant): tudo passaria a girar em torno de uma pedra angular situada imprecisamente numa qualquer constelação de alteridades, preenchida por coisas, pessoas e outros organismos. Ele seria o não-centro central, um ponto de ausência que ainda assim definiria, através de uma extremada discrepância ontológica, o núcleo de atracção fora de si. Talvez os buracos negros funcionem desta forma. Em qualquer dos casos, era isto que lhe apetecia imaginar ser.
[caros leitores, relato este episódio sem o perceber muito bem, mas a intensidade compensa a obscuridade. Por outro lado, como dizia Sartre, enquanto houver liberdade, o pior dos crápulas pode tornar-se digno e a pessoa mais corajosa ficar ignóbil]
Durante algum tempo, Lourenço foi a pessoa mais amável que alguma vez conheci. Todo ele era cortesia, ajudava como podia uma associação animalista, limpava praias, dava prioridade aos outros automóveis (normalmente atribuo sentimentos a estes objectos animados), enfim, era um buraco negro virado do avesso, expelindo simpatia e generosidade sem contar. Esta metamorfose teve consequências. Muitos passaram a gostar do Lourenço, rendidos à sua nova bondade e, talvez a maioria, sossegados pela mansidão que o tinha capturado.
Mas não foram só as relações sociais que se alteraram. Fisicamente, Lourenço ficou com o corpo mais roliço, ganhou um brilho nos olhos e, coisa estranha e nunca explicada, a face harmonizou-se de tal forma que alguns suspeitaram de bisturi estético.
– Lourenço, Lourenço, espera!
Era a Manuela, amiga do João e divorciada há pouco tempo de um marido meio toureiro meio gestor, capaz de esvaziar uma grade de cervejas sem qualquer remorso ou desequilíbrio. Um verdadeiro campeão. Mas esgotado na vida familiar, não brincava com as filhas nem comia a mulher. A porta de casa era uma figura de Janus de valor antagónico: o lado da entrada deprimia-o, o da saída exaltava-o.
– Olá, Manuela, vens para baixo? – A escola ficava num pequeno alto, como se tivesse sido pensada à maneira da Academia platónica (Portugal tem a mania das grandezas académicas).
– Vou, posso acompanhar-te... Olha, sabes que o 10.º C [turma de alunos] anda a portar-se mal?
– Como?
– Então não é que a Júlia estava aos beijos ao Ricardo em plena aula [Física e Química]!
– Coisas da idade. – Respondeu Lourenço, usando a ideia estafada, mas agradável, do cio associal adolescente.
– Sim, continuou Manuela num tom ligeiramente esganiçado, mas isso não se faz, pu-los na rua e dei um sermão à turma.
– Sermão para quê?
– Para quê?! Eles têm de saber que numa sala de aulas não pode haver determinados comportamentos. Que não estamos sozinhos, que têm de respeitar o professor...
Lourenço conhecia bem esta ladainha, ouvira-a centenas de vezes. Noutros tempos ainda atendia às pequeníssimas variações que faziam com que cada relato ganhasse alguma individualidade. Agora não, punha uma face de interlocutor interessado e fingia escutar.
Talvez o leitor se pergunte se isto não prova que Lourenço nunca ultrapassou o estrato do cinismo, dissimulando o desdém por detrás de uma bondade encenada. Não saberei responder, eu próprio, o seu amigo mais consistente, guardo dúvidas sobre a autenticidade deste período. Ao mesmo tempo, acredito que Lourenço se achava totalmente honesto no estilo de vida angélico que adoptou. A existir fingimento, é como se houvesse algo que mentisse nele apesar dele. Um terceiro elemento acima, e ao lado, de si e dos outros, um vector cósmico com preocupações sociais que tivesse escolhido este rumo para salvar Lourenço de si mesmo.
Naquela tarde lanchou com a Manuela e depois fodeu-a, ou melhor, fez amor com ela, mas estava tão preocupado com os seus orgasmos que não chegou a vir-se.
Tudo começou na pastelaria. Havia dois pretos manganões na mesa do lado, falavam uma língua estranha e o empregado nunca mais se despachava com a conta. Lourenço começou a sentir a velha indisposição de misantropo suburbano (pode-se viver em Lisboa e ser suburbano, até aldeão), que raio de africanos incultos, com corpos inchados por músculos exibicionistas e lábios demasiado carnudos que apetece espremer, não sabiam estar num espaço público sem esmagarem a linguagem com os seus vozeirões. E os empregados sem fibra para emigrarem à procura de vidas a sério arrastavam-se, fingindo trabalhar, prontos a lançar o ressentimento de medíocres licenciados em cima do primeiro cliente atípico. Foi isto, mais do que a beleza ou a libido, que o levou a perguntar a Manuela se não era melhor irem até casa dele acabar a conversa do 10.º C. Manuela ficou embaraçada, mas acabou pode dizer “pode ser”. Mal saíram da pastelaria, Lourenço sentiu um alívio profundo, como quando se volta a respirar depois de alguém nos apertar o pescoço durante um bom minuto. Sabia que a proposta era estúpida, a casa ficava num prédio degradado, estava imunda e nada tinha valor para além de uma estante carregada de livros de filosofia, que pouco deviam interessar a Manuela (e ao Menino Jesus, que pelo vistos não sabia ler). Tudo era velho e barato, até a televisão seguia o formato cubo. Antecipou o olhar de desagrado, preparou desculpas e pôs o ar de intelectual indiferente às coisas terrenas. Quando abriu a porta ouviu: “que giro, mesmo giro, parece confortável”.
– Senta-te, queres alguma coisa para beber ou comer?
– Não, estou bem, muito bem.
– Então fala lá do 10.º C.
– Tens razão, disse Manuela, são coisas da idade, talvez não valha a pena perdermos tempo com isso.
– Como queiras, e a vida como vai?
– Soubeste do meu divórcio?
– Sim, lamento.
– Porquê? Ele era uma besta, um bêbado, estúpido de merda, vou ficar com tudo, tudinho, nem a mota lhe deixo levar.
Silêncio. Lourenço olhava para a lombada da Crítica da Razão Pura, livro infinito que nos vem dizer que o conhecimento é finito, que não podemos conhecer tudo, que ignoraremos para sempre por que razão a alma é imortal, porque somos livres, o que é o mundo... Recordava que o tinha lido na íntegra aos 30 anos de idade, sem perceber muita coisa, mas era um feito assinalável, quantas pessoas se podiam gabar de tal vertigem?
– Desculpa Lourenço, vim perturbar a tua calma, se calhar até tens coisas para fazer, trazemos sempre trabalho para casa...
– Não, não, estava aqui a pensar... – a pensar no quê, não lhe podia falar da Crítica, nem no embaraço que sentia por tê-la ali, bem vestida e bonita, na sua espelunca –, estava a pensar que talvez... não sei, gostava muito...
– Sim, de quê?
– ... de te beijar...
Silêncio, agora de outro tipo, aquele que parece precipitar uma explosão. Lourenço preparava-se para a fúria ou, pior, a ironia: “quem és tu para me pedires um beijo, já olhaste bem para o espelho, és ridículo...” Preparava-se e nada acontecia. Cada segundo adensava mais o seu pavor, quis que os lábios da Manuela se colassem para sempre, que mais nenhuma palavra pudesse sair da sua boca. Quis até que um raio rasgasse o apartamento ao meio, ele para um lado ela para outro, esturricados até à medula. Mas não.
– Então anda cá. – Disse Manuela enquanto fazia um ligeiríssimo gesto condizente com o dedo, parcela de filme lamechas.
E Lourenço foi, e depois de ser apalpado, apalpou por sua vez. Tudo lhe parecia de óptima qualidade debaixo da roupa. Ela pôs-lhe a mão entre as pernas e Lourenço sentiu pela primeira vez que o céu existe, mas não o anódino que nos ensinam na Igreja, um outro cheio de almas prontas a estourar. Depois, despiram-se, um pouco à pressa, ela a deixar ver um corpo belo e espasmódico, ele encolhido, com a sua barriguinha irrecuperável e uma pelugem que não podia esconder o branco enfermaria da pele. Já no quarto, abriram a cama, cada um do seu lado. Lourenço espreitou os seios nus e pendentes da Manuela dobrada, uma mão a puxar a colcha e o lençol para trás, outra ligeiramente afastada do corpo com a responsabilidade de o equilibrar. Creio que nenhum pintor alguma vez se inspirou nestes momentos sem som, nunca ninguém viu o poder imagético, axiológico e fisiológico desta antecâmara sexual. Só Lourenço, só ele podia parar o tempo e desenhar mentalmente clichés eternos e mudos que depois de somados estabeleceriam o campo completo de categorias da vida.
Deitaram-se, a cama estava fria. Encostaram-se, de frente não dá muito jeito. Beijaram-se, e o Lourenço que por vezes cheirava um pouco mal da boca. Manuela não, tinha a boca mais fresca da escola, apetecia ir lá buscar comida. A mão esquerda do Lourenço no seio direito da Manuela. Manuela a puxá-lo, com força, um pouco de unhas (de gel). Lourenço atado pelo medo de se vir já ali, ainda nos preliminares dos preliminares. Manuela com a vagina a humidificar-se. Lourenço com o pénis a rebentar por todos os lados.
– Gostas de sexo oral. – Perguntou Lourenço.
– Claro, anda cá.
E Lourenço foi. Também a vagina sabia e cheirava bem, Manuela era pura. Esta parte demorou, tanto que depois foi só deixar que a Manuela fosse para cima, pusesse o pénis dentro dela, subisse e descesse algumas vezes, e aí estava ela a contorcer-se de prazer, gritando que “era isso”, “era isso”, “era isso!”
Tempo verbal estranho, pensou Lourenço. E ela a sair, a tirar o instrumento (ao arrepio do “trata sempre um pénis com um fim e nunca como um meio”), a deixar-se cair para o lado direito da cama. Lourenço puxou o lençol e ficou mais quieto e silencioso do que uma pedra. “E agora?”, pensou, pensou novamente, repensou, deixando-se colonizar totalmente pelo futuro próximo.
[moral provisória da história, que costumo repetir a mim mesmo: a bondade compensa mais do que ver pornografia ou fazer tatuagens; menos do que um BMW potente, é verdade, mas mais do que o velho marialvismo de pacotilha]
(cont.)