As Aventuras do Senhor Lourenço (§8 Complexo de Édipo)

(cont.)

Lourenço pensa ter superado bem o Complexo de Édipo. Quando chegou à idade das grandes revelações, isto é, aos 30 anos, leu o Das Ich und das Es de Sigmund Freud e não reconheceu nenhum traço patológico na sua infância, nem sequer um Über-Ich extraordinariamente dominador. Se alguma vez quis matar o pai, foi ao de leve, sem o aborrecer muito, que lá em casa o patriarca é intocável. Lourenço tem uma mãe que sempre esteve ao seu lado, que o amou, e ama, profundamente, que vê nele um prolongamento de si própria. Mas há duas irmãs, gémeas, as meninas dos olhos do pai. Mais novas 4 anos, casadas com dois suburbanos novos-ricos, cada uma já com 3 filhos. Portanto, Lourenço tem 6 sobrinhos, todos rapazes, para orgulho dos pais, que mal sabe distinguir. Às vezes acredita que uma conspiração biológica os fez nascer todos ao mesmo tempo.

Lourenço especializou-se em sofrer por antecipação. Sofrimento sem verdadeiro objecto, como nas neuroses freudianas. E ultimamente atribui isso às projecções catastróficas que o pai fazia para si: “Não vais ser nada na vida, meu meliante”, ou: “Nem para comer vais ganhar”. E Lourenço via-se a passar fome, indigente numa Lisboa cheia de indigentes. Ele o mais indigente de todos, demasiado gentil e fraco para essa vida. Por isso, pensou ter uma conversa com o pai, de filho crescido para pai velho. Já não arriscava nada fisicamente, o pai mal conseguia andar.

Entretanto, a cerimónia religiosa foi rigorosa (acrescente-se a ausência da libido, com 70 anos estamos quase só preocupados com os instintos de morte), quase austera. O padre não gostava muito destes eventos, uma perda de tempo, o importante era fazer proselitismo junto dos infiéis, evangelizar, converter e reverter (do consumismo para a sacristia). Os sobrinhos, em bando, levaram as novas alianças, que avô e avó puseram no dedo um do outro. E fizeram-no com sinceridade, não se conhece qualquer desvio a estes cordeiros de Deus. A igreja estava cheia, entre os convidados e os fiéis da missa. Todos gostaram, pelo menos foi o que disseram. No final, Lourenço sentiu-se aliviado (“primeira etapa concluída com sucesso”) e os pais cheios de inspiração divina para continuarem a praticar o bem entre eles.

A festa prosseguiu num restaurante na zona de Cascais. Lourenço apanhou boleia com um primo, emigrado em Angola, e a conversa foi de completa chacha. No almoço, comportaram-se civilizadamente. Só o António, cunhado mais novo, já bem bebido, ousou chamar àquele dia “uma perda de tempo”. Mas não passou daí. Entradas, primeiro prato, segundo, sobremesas, café. Uma factura honesta. E “vamos para casa que se faz tarde”.

– Janta connosco, filho. – Pediu a mãe a Lourenço.

– Talvez não, tenho uns testes para corrigir. – Respondeu sem convicção Lourenço.

[quem quiser viver a vida arranjando desculpas para isto e para aquilo vá para professor, as pessoas acreditam numa resma infinita de testes para corrigir, creio que o fazem não por especial credulidade, mas por secreta vingança: gostariam que, como castigo pelas maldades que um ou outro professor lhes fez, estivessem quase sempre a ler e a corrigir coisas que os infantilizam e frustram]

– Vá lá, meu filho, meu querido filho.

– Depois não tenho transporte.

– Dormes lá em casa, o teu quarto está sempre preparado.

– Mãe, mãe...

– Está combinado, vou já dizer ao pai!

Lourenço nunca experimentou a embriaguez da liberdade. Um terror biológico impede-o sempre de arriscar escolher contra semi-determinações, como esta da mãe. Talvez seja porque nele a retina tinha o poder verdadeiramente total, Lourenço é quase surdo e não faz qualquer confiança ao tacto. O pai costuma dizer-lhe “pareces surdo, ou mouco, como dizem nas aldeias, és surdo e tens pouco cérebro”. De tanto lho dizer, talvez tenha inibido esse sentido. Por submissão, Lourenço adaptou-se à crítica do pai, ficou quase surdo.

– Então, continuas nas aulas? – Perguntou o o pai no início do jantar.

– Sim.

– E com tanto mulherio ainda não arranjaste ninguém para casar, continuas parvo e solteiro.

– Só solteiro.

– Isso querias tu... – A mãe interrompeu a discussão questionando-os sobre o que achavam da comida. Fez muitas vezes isto, cortar a linha de fúria do pai sobre o filho. Proteger aquele rebento que demorou mais de 9 meses a nascer e que nunca mais chorou depois de o pai o avisar que o atirava pela janela, tinha ele 2 meses.

Silêncio durante o resto do jantar. Um tímido “boa noite, vou deitar-me, estou cansado”, do Lourenço pôs fim ao embaraço da reunião. Não se lembra de ter sonhado durante a noite, mas o seu inconsciente encenou várias vezes a morte do pai.

As Aventuras do Senhor Lourenço (§7 cortar o galho onde se está sentado)

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Na escola, Lourenço estava irreconhecível: cheio de si, assertivo, capaz de dizer bom dia, com um sorriso à mistura, a toda a gente. Apesar de Manuela não lhe passar muito cartão. Nunca na sua vida tinha tido tanta confiança e sabia que podia agradar à mulher mais bonita da escola porque a “cratera” o aproximava dela.

Mas como noutras ocasiões (embora por caminhos diferentes), Lourenço começou a cortar o galho onde estava sentado. Talvez devido à tentação de si mesmo, a esse medíocre narcisismo que incha os idiotas. Talvez devido ao contrário disso, à incapacidade de se avaliar sem usar critérios suicidas. Por exemplo, achava que escrevia mal porque estava a uma distância incomensurável de Lobo Antunes. – Quem não está? – Disse-lhe uma vez. Respondeu-me que sim, que ele era genial, mas mesmo assim, ambos tinha cérebro e patati, patata. Se era um perfeccionista? Talvez, mas creio que não era bem isto, a mania da perfeição activa a vontade, e Lourenço era predominantemente passivo, na maior parte da sua vida fingiu que estava morto.

Quanto ao desenlace frustrado com a Manuela, no terceiro encontro, já com a parceira pouco entusiasmada, Lourenço, ainda menos lúcido do que era habitual, propôs uma inversão à lógica de dominâncias: ficaria ele por cima e pediu silêncio. Tinha suor nas mãos quando disse as palavras, como lhe sucedia nas poucas vezes em que fazia perguntas, banais diga-se, aos oradores dos colóquios de filosofia. Manuela olhou-o com perplexidade e raiva. Mas assentiu. Na sua alma incorporada (tudo nela tinha, pelo menos parcialmente, matéria, costumava dizer que Deus olhava primeiro para o corpo), porém, apagou de uma só vez o Lourenço.

Este tinha dado um passo em frente, com coragem, e o sexo foi bom, para ele. Manuela facilitou, mas se ele tivesse olhado com olhos de ver para a sua cara, saberia que era uma vez sem exemplo. Abriu as pernas, como se costuma dizer e fazer. Mas fechou todas as outras portas e começou a sentir nojo de Lourenço. Ele fazia flexões em cima dela, penetrando-a como se fosse uma boneca insuflável. Manuela, por sua vez, pensava no tipo de asco que ia sentir por ele. Ao vir-se, Lourenço gritou pela mãe, mãezinha, melhor dizendo, e deixou-se cair em cima da Manuela.

– Sai! Estou com pressa. – Disse ela.

E ele saiu, primeiro movimento de uma ruptura definitiva. Lourenço tinha acabado de cortar o ramo, já frágil, onde estava sentado.

Lourenço não possuía, é evidente, qualquer talento para as relações humanas. Mas teria ele ao menos uma pequena noção do que era o amor? Corroído por uma auto-imagem desoladora, talvez não fosse capaz de sentir uma atracção irremediável por outra pessoa. Essa atracção fatal que um paciente desenvolvimento filogenético inscreveu em nós, vejo, com Schopenhauer, o amor como astúcia da espécie para acasalarmos, por mais requintados que sejamos, o objectivo é chegar ao coito. Foi a filogénese que criou e desenvolveu o êxtase sexual, não a literatura ou o cinema.

Mas Lourenço parecia nascido do nada, um novo homem que num processo anti-darwinista acelerava a decadência da humanidade. O que ele dizia ser o amor que tinha por Manuela, não passava de um vulgar exibicionismo, por detrás do silêncio embaraçado dos colegas imaginava um “O Lourenço é um sedutor!” Na verdade, não era nada disso que a coscuvilhice pensava, quase todos viram nele um oportunista, aproveitando-se da fragilidade pós-divórcio da Manuela.

Enfim, repôs-se a ordem, Manuela deixou bem claro que não “queria mais nada com ele”, Lourenço cismou novamente que era a “pior pessoa do mundo”. Ainda por cima, tinha a boda de diamante dos pais na semana seguinte.

As Aventuras do Senhor Lourenço (§6 da imperfeição que redime)

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Lourenço ficou embaraçado, enredado no sem-sentido que costuma atacar quem se põe ao lado da via estritamente instintiva da sexualidade. Lourenço não fez sexo, mas para-sexo e, nalguns momentos, meta-sexo. Também sentia frio, esse que invade lentamente até às entranhas, como nos Descobrimentos. Preparou uma frase, depois outra, e ainda outra. Umas já feitas, outras quase inventadas no momento. Nenhuma servia, sabia-o mesmo antes de as formular ou encontrar. Talvez um grito!? Assustava Manuela e ela dava um pinote, achando-o louco, e nunca mais se falava no assunto. Antigamente, quando se fumava na cama (cliché fundamental no cinemavanguardista), na cama e em todo o lado, até, e por vezes sobretudo, nos hospitais, para desanuviar o medo de poder chocar de frente com a morte, mesmo com a própria morte, punha-se uma pose a la Pierrot le Fou, e toca a andar. Fumava-se um cigarro e, pelo menos em imaginação, corria-se heroicamente para os braços da morte ou da vida plena. Nada disto aconteceria neste caso, Lourenço estava despojado de qualquer esperança, prometido, sabia-o bem, à irrelevância e ao ridículo.

– Giro. Não foi? – Perguntou assertivamente Manuela.

– Sim, fantástico. – Sussurrou Lourenço.

– Sabes, eu gosto de sexo, gosto mesmo. Aliás, acho que todas as mulheres gostam, até as santinhas do sofá azul. – Tratava-se de 4 ou 5 colegas que, sempre sentadas no mesmo sítio (Lourenço julgava até que elas não punham os pés numa sala de aula há décadas), invocavam frequentemente a presença do espírito santo para censurar as conversas mais picantes dos pobres professores, cuja libido residia agora sobretudo na memória.

– Pois, a espécie precisa de sobreviver. – Que raio, a espécie humana já não precisa do coito, Lourenço. Se queres arruinar a possibilidade de voltar sequer a beijar a Manuela, então vai por aí!

Manuela levantou-se, e deu-se uma revelação. Por cima da sua nádega esquerda (mais bela do que as do Renascimento) havia uma reentrância do tamanho de um punho, coberta por uma pele estranha, mistura de zona queimada e suturada, Lourenço nunca tinha vista nada igual. “Era um defeito!” Manuela tinha clara e inequivocamente um defeito, bastante grande, por sinal. Não desequilibrava a sua anatomia e até podia passar despercebido, mas Lourenço concentrou-se nesta tábua de salvação, “Manuela é defeituosa, eu também, mas não como ela”.

– Estás a olhar para a cratera? – Perguntou Manuela.

 – Cratera?

– Sim, aí ao fundo das costas?

– Ah, nem tinha reparado, quase não se dá por ele.

– Não digas disparates, claro que se dá por ele e claro que estavas a analisá-lo. Foi um tiro de caçadeira, tinha 10 anos e o meu pai disparou a arma, o seu grande e único amor, sem querer.

– Que chatice.

– Nada disso, é a única marca que tenho quase desde sempre e para sempre, o resto vai e vem, aparece e desaparece, isto fica. É uma tatuagem mais funda e mais definitiva. Por outro lado, assusta os cocós que nos querem parecidas com bonecas insufláveis sem percalços.

Certo, Manuela até podia escrever o poema mais bonito em torno da “cratera”, mas Lourenço permaneceu atento aos “defeitos da boneca insuflável”, e isso redimia-o, num grau tão elevado que é difícil imaginá-lo. O mal dos outros é o nosso bem, daí a tendência para o fracasso atrair o fracasso. Lourenço só podia, pois, aliar-se a personagens menores, e agora, pelo menos para ele, Manuela entrava nessa menoridade. Bem diferente é o que se passa a nível atómico, tudo é exacto. Podemos ver o mesmo princípio do “mais é mais” na natureza, sem a intervenção humana, o mundo natural vive exclusivamente na perfeição,

[talvez por isso David Henri Thoreau tenha dito que um livro deve ser tão natural e inexplicavelmente belo e perfeito como uma flor silvestre. Mas como fazer agora isso se a maioria dos leitores não sabe o que é uma “flor silvestre”?]

Manuela começou a vestir-se, primeiro as cuecas, um pé ligeiramente no ar para enfiar uma parte, depois o outro, no final puxou de uma só vez o conjunto e deu um ligeiro salto, e tudo ficou admiravelmente no sítio, as cuecas azuis terminaram na posição exacta, dando uma beleza sufocante ao seu rabo. Aquele salto, feito de forma tão natural, tinha uma tal profundidade estética que revoltou Lourenço por estar garantido à morte. E depois, a “cratera”, logo acima, a denunciar a outra realidade da Manuela, a imperfeição que a tornava humana e viabilizava um próximo encontro.

Manuela despediu-se, quase como o fazia na escola. Lourenço ficou só, com o mundo inteiro a vigiá-lo, sobretudo as televisões tablóides, esperando que saltasse da janela. Mal sabia o mundo, e os jornalistas televisivos de meia tijela, que Lourenço tinha encontrado a salvação na “cratera”. 

As Aventuras do Senhor Lourenço (§5 entre revoluções copernicanas e sexo)

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Um dia, Lourenço olhou para o Sol e decidiu fazer uma revolução copernicana ao contrário (de Kant): tudo passaria a girar em torno de uma pedra angular situada imprecisamente numa qualquer constelação de alteridades, preenchida por coisas, pessoas e outros organismos. Ele seria o não-centro central, um ponto de ausência que ainda assim definiria, através de uma extremada discrepância ontológica, o núcleo de atracção fora de si. Talvez os buracos negros funcionem desta forma. Em qualquer dos casos, era isto que lhe apetecia imaginar ser.

[caros leitores, relato este episódio sem o perceber muito bem, mas a intensidade compensa a obscuridade. Por outro lado, como dizia Sartre, enquanto houver liberdade, o pior dos crápulas pode tornar-se digno e a pessoa mais corajosa ficar ignóbil]

Durante algum tempo, Lourenço foi a pessoa mais amável que alguma vez conheci. Todo ele era cortesia, ajudava como podia uma associação animalista, limpava praias, dava prioridade aos outros automóveis (normalmente atribuo sentimentos a estes objectos animados), enfim, era um buraco negro virado do avesso, expelindo simpatia e generosidade sem contar. Esta metamorfose teve consequências. Muitos passaram a gostar do Lourenço, rendidos à sua nova bondade e, talvez a maioria, sossegados pela mansidão que o tinha capturado.

Mas não foram só as relações sociais que se alteraram. Fisicamente, Lourenço ficou com o corpo mais roliço, ganhou um brilho nos olhos e, coisa estranha e nunca explicada, a face harmonizou-se de tal forma que alguns suspeitaram de bisturi estético.

– Lourenço, Lourenço, espera!

Era a Manuela, amiga do João e divorciada há pouco tempo de um marido meio toureiro meio gestor, capaz de esvaziar uma grade de cervejas sem qualquer remorso ou desequilíbrio. Um verdadeiro campeão. Mas esgotado na vida familiar, não brincava com as filhas nem comia a mulher. A porta de casa era uma figura de Janus de valor antagónico: o lado da entrada deprimia-o, o da saída exaltava-o.

– Olá, Manuela, vens para baixo?  – A escola ficava num pequeno alto, como se tivesse sido pensada à maneira da Academia platónica (Portugal tem a mania das grandezas académicas).

– Vou, posso acompanhar-te... Olha, sabes que o 10.º C [turma de alunos] anda a portar-se mal?

– Como?

– Então não é que a Júlia estava aos beijos ao Ricardo em plena aula [Física e Química]!

– Coisas da idade. – Respondeu Lourenço, usando a ideia estafada, mas agradável, do cio associal adolescente.

– Sim, continuou Manuela num tom ligeiramente esganiçado, mas isso não se faz, pu-los na rua e dei um sermão à turma.

– Sermão para quê?

– Para quê?! Eles têm de saber que numa sala de aulas não pode haver determinados comportamentos. Que não estamos sozinhos, que têm de respeitar o professor...

Lourenço conhecia bem esta ladainha, ouvira-a centenas de vezes. Noutros tempos ainda atendia às pequeníssimas variações que faziam com que cada relato ganhasse alguma individualidade. Agora não, punha uma face de interlocutor interessado e fingia escutar.

Talvez o leitor se pergunte se isto não prova que Lourenço nunca ultrapassou o estrato do cinismo, dissimulando o desdém por detrás de uma bondade encenada. Não saberei responder, eu próprio, o seu amigo mais consistente, guardo dúvidas sobre a autenticidade deste período. Ao mesmo tempo, acredito que Lourenço se achava totalmente honesto no estilo de vida angélico que adoptou. A existir fingimento, é como se houvesse algo que mentisse nele apesar dele. Um terceiro elemento acima, e ao lado, de si e dos outros, um vector cósmico com preocupações sociais que tivesse escolhido este rumo para salvar Lourenço de si mesmo.

Naquela tarde lanchou com a Manuela e depois fodeu-a, ou melhor, fez amor com ela, mas estava tão preocupado com os seus orgasmos que não chegou a vir-se.

Tudo começou na pastelaria. Havia dois pretos manganões na mesa do lado, falavam uma língua estranha e o empregado nunca mais se despachava com a conta. Lourenço começou a sentir a velha indisposição de misantropo suburbano (pode-se viver em Lisboa e ser suburbano, até aldeão), que raio de africanos incultos, com corpos inchados por músculos exibicionistas e lábios demasiado carnudos que apetece espremer, não sabiam estar num espaço público sem esmagarem a linguagem com os seus vozeirões. E os empregados sem fibra para emigrarem à procura de vidas a sério arrastavam-se, fingindo trabalhar, prontos a lançar o ressentimento de medíocres licenciados em cima do primeiro cliente atípico. Foi isto, mais do que a beleza ou a libido, que o levou a perguntar a Manuela se não era melhor irem até casa dele acabar a conversa do 10.º C. Manuela ficou embaraçada, mas acabou pode dizer “pode ser”. Mal saíram da pastelaria, Lourenço sentiu um alívio profundo, como quando se volta a respirar depois de alguém nos apertar o pescoço durante um bom minuto. Sabia que a proposta era estúpida, a casa ficava num prédio degradado, estava imunda e nada tinha valor para além de uma estante carregada de livros de filosofia, que pouco deviam interessar a Manuela (e ao Menino Jesus, que pelo vistos não sabia ler). Tudo era velho e barato, até a televisão seguia o formato cubo. Antecipou o olhar de desagrado, preparou desculpas e pôs o ar de intelectual indiferente às coisas terrenas. Quando abriu a porta ouviu: “que giro, mesmo giro, parece confortável”.

– Senta-te, queres alguma coisa para beber ou comer?

– Não, estou bem, muito bem.

– Então fala lá do 10.º C.

– Tens razão, disse Manuela, são coisas da idade, talvez não valha a pena perdermos tempo com isso.

– Como queiras, e a vida como vai?

– Soubeste do meu divórcio?

– Sim, lamento.

– Porquê? Ele era uma besta, um bêbado, estúpido de merda, vou ficar com tudo, tudinho, nem a mota lhe deixo levar.

Silêncio. Lourenço olhava para a lombada da Crítica da Razão Pura, livro infinito que nos vem dizer que o conhecimento é finito, que não podemos conhecer tudo, que ignoraremos para sempre por que razão a alma é imortal, porque somos livres, o que é o mundo... Recordava que o tinha lido na íntegra aos 30 anos de idade, sem perceber muita coisa, mas era um feito assinalável, quantas pessoas se podiam gabar de tal vertigem?

– Desculpa Lourenço, vim perturbar a tua calma, se calhar até tens coisas para fazer, trazemos sempre trabalho para casa...

– Não, não, estava aqui a pensar... – a pensar no quê, não lhe podia falar da Crítica, nem no embaraço que sentia por tê-la ali, bem vestida e bonita, na sua espelunca –, estava a pensar que talvez... não sei, gostava muito...

– Sim, de quê?

– ... de te beijar...

Silêncio, agora de outro tipo, aquele que parece precipitar uma explosão. Lourenço preparava-se para a fúria ou, pior, a ironia: “quem és tu para me pedires um beijo, já olhaste bem para o espelho, és ridículo...” Preparava-se e nada acontecia. Cada segundo adensava mais o seu pavor, quis que os lábios da Manuela se colassem para sempre, que mais nenhuma palavra pudesse sair da sua boca. Quis até que um raio rasgasse o apartamento ao meio, ele para um lado ela para outro, esturricados até à medula. Mas não.

– Então anda cá. – Disse Manuela enquanto fazia um ligeiríssimo gesto condizente com o dedo, parcela de filme lamechas.

E Lourenço foi, e depois de ser apalpado, apalpou por sua vez. Tudo lhe parecia de óptima qualidade debaixo da roupa. Ela pôs-lhe a mão entre as pernas e Lourenço sentiu pela primeira vez que o céu existe, mas não o anódino que nos ensinam na Igreja, um outro cheio de almas prontas a estourar. Depois, despiram-se, um pouco à pressa, ela a deixar ver um corpo belo e espasmódico, ele encolhido, com a sua barriguinha irrecuperável e uma pelugem que não podia esconder o branco enfermaria da pele. Já no quarto, abriram a cama, cada um do seu lado. Lourenço espreitou os seios nus e pendentes da Manuela dobrada, uma mão a puxar a colcha e o lençol para trás, outra ligeiramente afastada do corpo com a responsabilidade de o equilibrar. Creio que nenhum pintor alguma vez se inspirou nestes momentos sem som, nunca ninguém viu o poder imagético, axiológico e fisiológico desta antecâmara sexual. Só Lourenço, só ele podia parar o tempo e desenhar mentalmente clichés eternos e mudos que depois de somados estabeleceriam o campo completo de categorias da vida.

Deitaram-se, a cama estava fria. Encostaram-se, de frente não dá muito jeito. Beijaram-se, e o Lourenço que por vezes cheirava um pouco mal da boca. Manuela não, tinha a boca mais fresca da escola, apetecia ir lá buscar comida. A mão esquerda do Lourenço no seio direito da Manuela. Manuela a puxá-lo, com força, um pouco de unhas (de gel). Lourenço atado pelo medo de se vir já ali, ainda nos preliminares dos preliminares. Manuela com a vagina a humidificar-se. Lourenço com o pénis a rebentar por todos os lados.

– Gostas de sexo oral. – Perguntou Lourenço.

– Claro, anda cá.

E Lourenço foi. Também a vagina sabia e cheirava bem, Manuela era pura. Esta parte demorou, tanto que depois foi só deixar que a Manuela fosse para cima, pusesse o pénis dentro dela, subisse e descesse algumas vezes, e aí estava ela a contorcer-se de prazer, gritando que “era isso”, “era isso”, “era isso!”

Tempo verbal estranho, pensou Lourenço. E ela a sair, a tirar o instrumento (ao arrepio do “trata sempre um pénis com um fim e nunca como um meio”), a deixar-se cair para o lado direito da cama. Lourenço puxou o lençol e ficou mais quieto e silencioso do que uma pedra. “E agora?”, pensou, pensou novamente, repensou, deixando-se colonizar totalmente pelo futuro próximo.

[moral provisória da história, que costumo repetir a mim mesmo: a bondade compensa mais do que ver pornografia ou fazer tatuagens; menos do que um BMW potente, é verdade, mas mais do que o velho marialvismo de pacotilha]

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As Aventuras do Senhor Lourenço §4 (da maledicência)

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O Senhor Lourenço é professor de filosofia (o destino não seguiu os seus sonhos), ensina no secundário adolescentes entre os 15 e os 18 anos. Gosta e não gosta do que faz, à semelhança da sociedade, tem uma relação ambivalente com os mestres-escola, insignificantes e fundamentais, cultos e estúpidos, decentes e impróprios, dedicados e baldas.

As escolas não são lugares de amor incondicional à aprendizagem, talvez isso seja, aliás, irrelevante. Os alunos preocupam-se mais ou com a popularidade ou com as classificações (que estão longe de representar conhecimentos e competências significativas). Os professores, desbaratados por um estatuto social que não cessa de cair, minados afectivamente pelo envelhecimento geral da profissão (a alegria parece ser inversamente proporcional à idade), vivem entre lamentos sobre a ciática e outras maleitas de lar-de-terceira-idade e micronarrativas do quotidiano. Mas continuam a resistir às ordens puramente burocráticas que obrigariam a despender tempo e pensamento para cumprir procedimentos totalmente inúteis, aliás, é próprio da boa burocracia exigir o inútil, o irrisório, forma de domesticar os trabalhadores, em primeiro lugar, e a sociedade, em segundo (expandindo-se como a peste). Felizmente, um misto de lucidez e de preguiça vai resistindo ao “absurdo suave”.

[se se seguir à letra toda a legislação escolar, sei-o por mim, desliza-se mais rapidamente para a paralisação do sistema do que através de uma desbragada anarquia. Portanto, revolucionários de todo o mundo, já sabem por onde ir]

Os professores, dizia, são uns rezingões à espera da reforma, de viverem finalmente sem fazerem nada, colados às telenovelas e jogos de futebol, um ou outro livrinho simples. Neste caso, as excepções são mesmo excepções, que ou assentam num ego amplificado ou numa persona non grata feliz pela expulsão do círculo paradisíaco das conversas de chacha.

[em casos semelhantes, costumo citar Bernardo Soares/Vicente Guedes: “A sublimidade de desperdiçar uma vida que podia ser útil.” Antes preferia: “apaixonar-nos genuinamente pelo bom, verdadeiro e belo”]

Lourenço vai pouco à sala de professores, arranjou lá alguns ódios de estimação (esta expressão é um centauro linguístico), combustível abundante, e no seu caso calhou-lhe a fava das rainhas da coscuvilhice, ainda por cima amigas de infância da Directora. São duas gajas que se suspeita terem pactuado com o Diabo para se manterem fúteis e maldosas (variação pífia do mito de Fausto). Ninguém sabe ao certo o que leccionam, parece que tratam da papelada dos cursos profissionais e acompanham os alunos em visitas de estudo (uma forma de entretenimento muito apreciada). Não falham um intervalo na sala de convívio, mas é sobretudo entre as 10 e as 14 horas que dominam incondicionalmente esse território. Percorrem-no traçando linhas oblíquas desencontradas mas que acabam por sobrepor-se, e muitas vezes, lidas semioticamente, desenham verdadeiras obras de arte de figuras contorcidas à la Francis Bacon. Enquanto deambulam, olham assertivamente para os dois lados e vão lançando invectivas contra o Governo, o Ministério da Educação e os colegas incautos que caíram nas suas más-graças.

– Já viste, o António agora tem a mania que é doutor, corrigir assim as colegas, deve querer alguma medalha!

– E o João – lança a segunda –, esse badameco que ainda no outro dia chegou aqui, armado em superior, nem ao jantar de Natal foi! (nada pode ser mais ofensivo do que faltar, sem uma desculpa bíblica, a este encontro meio teológico meio alcoólico).

Poucos as ouvem e entram na conversa. Não por despeito, mas porque estão noutro estrato desenvolvendo o seu próprio campo coscuvilheiro. Há-os distintos, começam sempre o ataque por “não é uma crítica, mas...”. Há-os parolos, acusam quem lhes faz frente de não deixarem o “país ir para a frente”. Há-os pindéricos, julgam-se guardiões da Idade de Ouro da Escola, do tempo em que só ia dar aulas quem era ungido por um alto representante de Deus e de Paulo Freire. Há-os patéticos, vencedores antecipados de todos os dissensos com alunos e pais. Há-os anódinos, sorriso semi-Colgate e distribuição generosa de bons-dias. Há-os pretensiosos, vêm em geral da Faculdade de Letras e trazem o bebé do Rei na barriga, mimetizam as velhas múmias catedráticas. Há-os super-pedagógicos, para quem tudo se fará com o jeitinho didáctico acertado, maluquinhos do “fora da caixa”, o que acaba sempre por criar outras caixas, bastante defeituosas, por sinal, devido às torções que sofrem para deslizarem do estabelecido e afirmarem alternativas psicadélicas.

E todos estão velhos, é isso que rasura qualquer esperança, estão velhos e rabugentos. Lourenço, apesar de tudo, é um meta-professor, e nesta relação incestuosa consigo mesmo mantém uma lucidez que o protege das caricaturas mais óbvias. Além disso, não se leva a sério (mesmo Proust terá dito a André Gide que era preciso rir desbragadamente da literatura, apesar da sua importância). À força de ler Nietzsche, arriscando até o original, desvaloriza tudo o que não seja póstumo. Mas às vezes está tão entediado que deseja que algo de excitante lhe aconteça ainda que seja terrível.

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