As Aventuras do Senhor Lourenço (§8 Complexo de Édipo)

(cont.)

Lourenço pensa ter superado bem o Complexo de Édipo. Quando chegou à idade das grandes revelações, isto é, aos 30 anos, leu o Das Ich und das Es de Sigmund Freud e não reconheceu nenhum traço patológico na sua infância, nem sequer um Über-Ich extraordinariamente dominador. Se alguma vez quis matar o pai, foi ao de leve, sem o aborrecer muito, que lá em casa o patriarca é intocável. Lourenço tem uma mãe que sempre esteve ao seu lado, que o amou, e ama, profundamente, que vê nele um prolongamento de si própria. Mas há duas irmãs, gémeas, as meninas dos olhos do pai. Mais novas 4 anos, casadas com dois suburbanos novos-ricos, cada uma já com 3 filhos. Portanto, Lourenço tem 6 sobrinhos, todos rapazes, para orgulho dos pais, que mal sabe distinguir. Às vezes acredita que uma conspiração biológica os fez nascer todos ao mesmo tempo.

Lourenço especializou-se em sofrer por antecipação. Sofrimento sem verdadeiro objecto, como nas neuroses freudianas. E ultimamente atribui isso às projecções catastróficas que o pai fazia para si: “Não vais ser nada na vida, meu meliante”, ou: “Nem para comer vais ganhar”. E Lourenço via-se a passar fome, indigente numa Lisboa cheia de indigentes. Ele o mais indigente de todos, demasiado gentil e fraco para essa vida. Por isso, pensou ter uma conversa com o pai, de filho crescido para pai velho. Já não arriscava nada fisicamente, o pai mal conseguia andar.

Entretanto, a cerimónia religiosa foi rigorosa (acrescente-se a ausência da libido, com 70 anos estamos quase só preocupados com os instintos de morte), quase austera. O padre não gostava muito destes eventos, uma perda de tempo, o importante era fazer proselitismo junto dos infiéis, evangelizar, converter e reverter (do consumismo para a sacristia). Os sobrinhos, em bando, levaram as novas alianças, que avô e avó puseram no dedo um do outro. E fizeram-no com sinceridade, não se conhece qualquer desvio a estes cordeiros de Deus. A igreja estava cheia, entre os convidados e os fiéis da missa. Todos gostaram, pelo menos foi o que disseram. No final, Lourenço sentiu-se aliviado (“primeira etapa concluída com sucesso”) e os pais cheios de inspiração divina para continuarem a praticar o bem entre eles.

A festa prosseguiu num restaurante na zona de Cascais. Lourenço apanhou boleia com um primo, emigrado em Angola, e a conversa foi de completa chacha. No almoço, comportaram-se civilizadamente. Só o António, cunhado mais novo, já bem bebido, ousou chamar àquele dia “uma perda de tempo”. Mas não passou daí. Entradas, primeiro prato, segundo, sobremesas, café. Uma factura honesta. E “vamos para casa que se faz tarde”.

– Janta connosco, filho. – Pediu a mãe a Lourenço.

– Talvez não, tenho uns testes para corrigir. – Respondeu sem convicção Lourenço.

[quem quiser viver a vida arranjando desculpas para isto e para aquilo vá para professor, as pessoas acreditam numa resma infinita de testes para corrigir, creio que o fazem não por especial credulidade, mas por secreta vingança: gostariam que, como castigo pelas maldades que um ou outro professor lhes fez, estivessem quase sempre a ler e a corrigir coisas que os infantilizam e frustram]

– Vá lá, meu filho, meu querido filho.

– Depois não tenho transporte.

– Dormes lá em casa, o teu quarto está sempre preparado.

– Mãe, mãe...

– Está combinado, vou já dizer ao pai!

Lourenço nunca experimentou a embriaguez da liberdade. Um terror biológico impede-o sempre de arriscar escolher contra semi-determinações, como esta da mãe. Talvez seja porque nele a retina tinha o poder verdadeiramente total, Lourenço é quase surdo e não faz qualquer confiança ao tacto. O pai costuma dizer-lhe “pareces surdo, ou mouco, como dizem nas aldeias, és surdo e tens pouco cérebro”. De tanto lho dizer, talvez tenha inibido esse sentido. Por submissão, Lourenço adaptou-se à crítica do pai, ficou quase surdo.

– Então, continuas nas aulas? – Perguntou o o pai no início do jantar.

– Sim.

– E com tanto mulherio ainda não arranjaste ninguém para casar, continuas parvo e solteiro.

– Só solteiro.

– Isso querias tu... – A mãe interrompeu a discussão questionando-os sobre o que achavam da comida. Fez muitas vezes isto, cortar a linha de fúria do pai sobre o filho. Proteger aquele rebento que demorou mais de 9 meses a nascer e que nunca mais chorou depois de o pai o avisar que o atirava pela janela, tinha ele 2 meses.

Silêncio durante o resto do jantar. Um tímido “boa noite, vou deitar-me, estou cansado”, do Lourenço pôs fim ao embaraço da reunião. Não se lembra de ter sonhado durante a noite, mas o seu inconsciente encenou várias vezes a morte do pai.