As Aventuras do Senhor Lourenço III Acto (§21 banalidade do trágico)

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[às vezes escrevo sem pensar, deixo que a escrita entre em mim e desenhe a história à sua maneira. Outras vezes quero, qual criança mal mimada, dominar todo o processo discursivo, desviando-me para isso das frases feitas, já que só um inventor pode ser legislador]

Lourenço separou-se da Manuela, perdendo as comodidades de menino rico (os ricos são “meninos” até muito tarde), sobretudo a de viver num 5 assoalhadas na rua Garrett ao Chiado, vista para o Tejo e para resmas de turistas que agora nos visitam à procura de sol e, em vão, do pitoresco (o tuga quase desapareceu de Lisboa). Foi viver num quarto minúsculo e rançoso na rua do Salitre, alugado “por especial favor”. Na mesma casa moravam a senhoria (80 anos e queixumes sobre os tempos modernos e a “juventude que já não respeita ninguém, nem Deus”) e mais três estudantes de Belas Artes, cheios de namoradas e sonhos de grandeza artística, sobretudo depois de fumarem canabinóides (os partidos políticos do optimismo deviam distribuir este neo-soma a toda a população), talvez não fosse necessário, sabemos bem que os artistas não sublimam. Na mudança despachou a maior parte dos livros para a casa dos pais em Odemira, contente por ter agora apenas cerca de vinte “obras essenciais” que podia ler e reler, colocando-se em modo penepoliano.

[quando se envelhece troca-se a horizontalidade pela verticalidade, a amplitude pela concentração, escava-se um buraco em vez de se lavrar uma terra. Prefere-se a imersão a prumo aos deslocamentos conquistadores, é-se menos territorial e mais espiritual]

 Estranhamente, este regresso a uma vidinha quase miserável preparou Lourenço para a tragédia. Não sobre-intensa, repleta de hybris, com deuses a espumar vingança em cada frase. Uma pequena tragédia, com alguma tensão dialéctica, mas sem os antagonismos delirantes entre o humano e o divino; a secularização manteve apenas alguns equívocos do quotidiano e os gritos furiosos e incontroláveis das guerras. Se as guerras são totalmente colonizadas pelo absurdo, então perdem o sentido do trágico. Restam os acasos desgraçados para o trágico, o mini-trágico. Não se suprimindo, porém, o sofrimento sem porquê, isento de redenção para os actores, agora representado nos Zés da Esquina a quem bloquearam o carro porque não respeitaram o estacionamento pago; ou nos Antónios de Lisboa que nunca arranjaram um emprego decente, apesar dos doutoramentos em velhas e veneradas humanidades, porque, meios autistas e com famílias modestas, ninguém os recomendou e o funcionalismo público privilegiou, por estratégia política, as gerações antes das suas. Noutros termos, já não há nem Édipos nem Antígonas capazes de desafiar parcelas fundamentais da Ordem. Ou, depois da enésima morte de Deus, já não há sequer Ordem para desafiar.

Se Hannah Arendt cunhou o termo “banalidade do mal”, os tempos hiper-modernos encarregaram-se de inscrever na história das palavras e ideias o de “banalidade do trágico”. Talvez, mas fico-me pela suspeita, porque vivamos a fazer zapping entre os problemas vitais que envolvem, num abraço de urso, o mundo. E fazemo-lo porque as soluções obrigariam a substituir-se o estilo de vida Ocidental pelo regresso a uma austeridade medieval, e nós preferimos o conforto tecnológico e dietético. Nova versão do “prato de lentilhas”.

Será este trágico, “o melhor dos trágicos possíveis”, como costuma dizer um amigo meu, que Lourenço voltará a educar-se para um mundo que, como queria Schopenhauer, só pode ser de sofrimento (aqui e ali redimido pela contemplação estética, sobretudo musical). 

As Aventuras do Senhor Lourenço (§20 os restos do dia, bacanal III)

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Pensa-se que o delírio afirmativo é mais intenso do que o negativo, mas creio que é justamente o oposto.

[para os que me ignoram, eu não sou um especialista em tragédia, mas hoje teria feito um curso embebido de classicismo grego, em vez de me banhar na opacidade dos velhos conceitos, emoldurados por categorias racionais bastante duvidosas. Vejam que na história da humanidade só os gregos, querendo a perfeição, aceitaram a imperfeição. O cristão, por exemplo, no final só consente uma felicidade metafísica, ligada à realidade sem erros e acasos]

Quando a festa acabou, Lourenço iniciou o percurso em espiral até ao buraco mais negro de que há memória, uma obscuridade sem qualquer redenção, um grito surdo que desloca as costelas. Joaquim, sabia-o bem, nada podia fazer. Mas continuava ali, adivinhando a tragédia. O fiel e amedrontado Tirésias que conhecia tudo, sem os detalhes supérfluos, panfletários, dos adivinhos actuais, quase todos na política. Sabia que um fluxo de angústia iria rasgar as entranhas de Lourenço. Manuela dissera alto e bom som que “nunca mais o queria ver. Nem pintado.”

[a estupidez lógica desta expressão deve ser pesada junto com o desespero emocional que a provoca, sempre]

É verdade que Lourenço também se sentia incapaz de continuar com a Manuela, sofria sem remédio, antecipando o mais que provável abandono. Como um cão especial que no dia da adopção pressentisse que dali a um ano, ou menos, regressaria ao canil. Antes continuar lá, nunca sair de lá, que o biológico só sofre quando há termos de comparação. Mas isto não evitou que Lourenço caísse num abismo, sem que o Joaquim, ou eu (embora na altura tivesse uma valente depressão, atestada pelo médico para poder faltar à escola. Nem à festa do Plateau fui), pudesse fazer alguma coisa. A beleza e o heroísmo tinham posto Lourenço em contacto com o Universo, mas quando se é professor e se vive em Portugal é muito difícil justificar a vida. A dúvida não cai de uma só vez, desenvolve-se através de insinuações, de viés, com argumentos de treta. Do tipo: “só há adeptos para um Quinto Império numa comunidade moralmente falida”; ou, “só se espera que um rei idiota nos venha salvar numa manhã de nevoeiro quando o delírio derrotou o bom senso”. Depois, há ainda os peregrinos de Fátima a morrer no caminho, em pleno exercício de pagamento de promessas. Só um Deus muito desiludido com o seu povo permite esta ironia cruel (e não me venham com “escrever direito por linhas tortas”). Sem Deus, sem mitos explosivos, sem festa, sem esperança... E todos os dias com as colegas, sempre iguais, com os alunos, mais interessados na libido do que em Sócrates. Todos os dias a provar um pouco de sem-sentido e a cheirar o hálito nauseabundo do Joaquim. Todos os dias a imaginar a Manuela com um novo namorado, desses que conduzem Mercedes e vestem camisa azul e blazer. O pior, Lourenço não tinha ninguém com quem partilhar esta tristeza, a psicanálise está pelas horas da morte e os padres já não sabem confessar. Só professores, cada vez mais histriónicos, concentrados na aposentação e em técnicas, por vezes sofisticadas, que evitem a chatice de preparar aulas e avaliar.

[a quantidade de professores que se esganiça tem vindo a crescer exponencialmente. Os educadores, tantas vezes pais substitutos, estão doentes. Têm um cansaço auto-induzido que nada parece debelar]

Quando chegou à rua, Lourenço não olhou para as estrelas (erro de principiante ou gesto suicidário?). Cabisbaixo, desceu as escadas e, lado a lado com Joaquim, foi apanhar um táxi (a Uber ainda não tinha desbaratado a cangalhada desta seita retrógrada). Despediu-se de Joaquim – a quem Manuela tinha dito: “tu, nem para o inferno vais, vais para a sucata!” – como se estivesse a despedir-se da vida. Deu a morada ao taxista e adormeceu. Tudo correu bem até casa, um hiato de felicidade. O problema estava estacionado no dia seguinte. 

As Aventuras do Senhor Lourenço (§19 música álcool e Dioniso, Bacanal parte II)

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À meia noite, a discoteca começou a encher. Lourenço estava perto do balcão, virado para a pista com a Manuela ao seu lado. Os colegas cumprimentavam-no depois de entrarem, todos o fizeram com sinceridade. O Dj tinha uma playlist entre The Neighbourhood e Artic Monkeys, talvez recomendada por Lourenço, mas não estou seguro disso. Manuela irradiava felicidade, ondulando levemente o corpo com um copo de whisky na mão. Tinha um decote magnífico e a maquilhagem de €100 elevou-a à perfeição. Lourenço amava-a, mas não acreditava que ela ficasse com ele para sempre. Aliás, o sintagma “para sempre” cheirava tanto a vulgaridade que era melhor isso não acontecer. E Lourenço fez bastante para que Manuela o abandonasse.

À uma da manhã a pista abriu com Celebration. As colegas mais gaiteiras, quase todas meio embriagadas com baileys, saltaram para o meio e, suportadas pelos laços de cumplicidade feminina, dançaram com entusiasmo. Depois veio Everybody Wants To Rule The World dos Tears For Fears e a pista encheu. Foi a noite do Pop 80s, até Lourenço que não gostava de dançar, digamo-lo assim, entrou na confusão ao som de Funkytown, e nem o Uspide Down de Diana Ross o pôs novamente no lugar. O Dj animava a multidão nomeando o “herói Lourenço”, a quem “devemos a nossa liberdade” e que “mais algumas das nossas lágrimas não tenham ido salgar ainda mais o mar”. Um Dj culto? Competente, mas já meio surdo. Que importa?! Com Come On Eileen entrou-se em delírio, todo o Plateau, agora com muito mais clientes, pegou fogo.

Dioniso compunha e tocava música, só esta arte podia conviver com a sua desmesura, excesso vital, e mortífero, que nascia em cada um dos seus gestos. E Dioniso ressuscita constantemente, já não no aparato estético das Grandes Dionisíacas, mas em cada noite mais vibrante de todas as discotecas, de todos os festivais de música, de todos os bailes de aldeia... Dioniso preside aos histrionismo erótico que invade os corpos anti-cartesianos das noitadas de música, dança e alguns psicotrópicos.

Quando passou o incontornável Addicted To Love, Lourenço já ia no quinto whisky e Joaquim tinha-se juntado à festa (com ar carrancudo e sem um botão da camisa, umbigo à mostra), descobrindo, para seu espanto, uma nova simpatia por seios fartos. Mas em vez de se atirar à mamalhuda que dançava insidiosamente à sua frente, deixou que o empregado, cheio de gestos efeminados, se roçasse cada mais nele. A página tantas, perguntou-lhe, meio a sério meio a brincar:

– Queres chupar-me?

– Não, respondeu. Para logo a seguir, no que pareceu ser uma desculpa, acrescentar que o podia sujar.

“A vontade de perfeição leva à inacção”, pensou, um pouco a despropósito, Joaquim.

Foi a partir desta altura que tudo se precipitou, um feixe de loucura emergiu quando entraram The Rolling Stones e o seu Sympathy For The Devil. Os corpos emanciparam-se e assumiram uma esperança inverosímil em amanhãs radiosos, a discoteca tinha uma comunidade espasmódica com formas tensas e contorcidas, oscilando entre o esticado e o dobrado, pareciam seguir o tirso imaginário de Dioniso. Chegara a vez de se falar a língua dos relâmpagos, lançados, porém, ao acaso e sem a potência fulminante da mitologia. Como dizia Nietzsche, em quem esta língua era autêntica e importante, mas por razões mais nobres, “O corpo entusiasma-se, deixemos a alma fora de jogo.” No meio disto, Joaquim auto-dissecava-se à procura do pecado pagão que impulsionara irremediavelmente a sua decadência social, um apátrida sem génio. Lembrou-se de Álvaro de Campos: “Não posso estar em parte alguma. A minha / Pátria é onde não estou.” Mas num assomo de dignidade varreu tudo para debaixo do tapete e declarou-se fiel absoluto do pessimismo da força nietzschiano. Não por ser o mais duro, mas por ser o mais complexo, que a força em Nietzsche nunca teve que ver com domínio, tratou-se sempre de abrangência, da máxima abrangência possível.

Uma colega de português, adorável até ao ponto em que não era adorada (aí, em perplexidade furiosa, atirava-se à vítima como se fosse a única responsável pelo Pecado Original. Dizia, sem o dizer, “como te atreves a não me achar adorável, mas quem és tu para deslizares da unanimidade em relação à minha santidade?) meteu-se com ele.

– E se te apalpasse?

Lourenço, surpreendido, mas não muito, respondeu:

– Faça o favor, colega.

E a colega pôs-lhe a mão no sexo e apertou. Ao mesmo tempo tentou beijá-lo, mas Lourenço recusou, argumentando, mais mimeticamente do que foneticamente, que estavam pessoas a ver. E estavam, talvez mesmo a Manuela.

A colega prosseguiu na conquista.

– O mais histericamente histérico de mim, como vivia Álvaro de Campos em Pessoa, está aqui hoje para cometer uma loucura, Lourenço, vem, vem foder-me!

Lourenço ouviu vagamente o nome de Campos, histriónico e melancólico, e por isso aceitou, sem saber o que aceitava. Entraram na casa de banho feminina sem que ninguém se espantasse, parecia ser habitual naquele lugar a mistura de géneros. Tiveram que esperar que alguém saísse de uma cabine. Chegada a vez deles, Lourenço com a cabeça à roda, mais interessado num analgésico ou em vomitar do que em foder a colega. Alguns riram quando os viram entrar, justificando-se a velha tese de que com gracejos gratuitos se ordenou grande parte do mundo. Por outro lado, não havia nada de novo nesta escapadela, vazava-se num odre velho vinho novo.

Ninguém sabe o que se passou lá dentro, Lourenço jura que só vomitou e dormitou no colo da colega. Ela nega inclusive que alguma vez tivesse ido para a casa de banho com alguém, ela que nunca faltou ao respeito ou deixou de se dar ao respeito. Manuela estava, porém, furiosa. Gritava muito, mesmo junto ao ouvido de Lourenço:

– És um merdas, sabias, um merdas total.

Lourenço sabia que se saísse para a rua poderia olhar as estrelas sem medo de nada, mas tinha-se enrolado numa teia que talvez o prendesse para sempre no Plateau.   

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As Aventuras do Senhor Lourenço (§18 o resto dos dias, Bacanal parte I)

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[a melhor forma de continuar, para mim a única, mas eu não sou um escritor profissional, quando surge “the dark country of no ideas” é ir aos originários, aqueles que apanharam a primeira linha de desenvolvimento da mente humana sapiens, gregos pré-clássicos e clássicos. Foram eles que fisgaram os nossos impulsos mais primordiais e os traduziram em discursos inteligíveis, é impossível superá-los, a não ser em insignificantes parcelas de vida. Por isso, Nietzsche ou Freud, Heidegger ou Foucault, Badiou ou Hegel... os mantêm como principal fonte de inspiração. Não julguem que me desvio um milímetro sequer do plano descritivo, introduzo apenas, a lá Eurípides, o episódio de uma noite delirante, introduzo e uso, forma de mostrar também aos leitores superiormente eruditos que tenho grelhas hermenêuticas chiques, o velho truque dramatúrgico do mais racional dos tragediógrafos gregos]

Lourenço tinha entrado em órbita, à volta de uma constelação mais do que de uma estrela: escola, Manuela e vida social de herói evanescente. O Joaquim, qual cometa, aparecia a espaços, fulgurante e mal cheiroso (fazendo odes à vacuidade triunfal da época), para testar o equilíbrio das revoluções (astronómicas). Normalmente apanhava os restos do dia e fazia um patchwork discursivo com o máximo de sentido possível. Começava sempre por uma tese, que ia escorando como podia em argumentos colhidos nos lamentos de Lourenço ou naquilo que observava, e Joaquim era um finíssimo observador, este talento não tinha sido afectado pelos muitos anos de drogado, devido, talvez, à atenção que os solitários desenvolvem. Em vez de terapia, gosto de lhe chamar “encontro entre o agir e o pensar”, no fundo Lourenço reflectia-se através do Joaquim. Ele era a Ave de Minerva que vinha iluminar os impulsos vitais que haviam preenchido a existência de Lourenço, às vezes de um só dia, outras de vários.

Certa vez, Lourenço perguntou ao Joaquim se devia alinhar com a festa do Plateau.

– Qual festa?

– Não falaram contigo?

– Não sei de nada.

– É uma festa com o pessoal da escola para comemorar um ano do meu “acto heróico”, assim lhe chamam.

– Mas porquê no Plateau, a mais prostituta de todas as discotecas.

– Prostituta?

– Sim, passa a mesma música há 30 anos, submetendo-se a clientes que definiram o gosto musical na adolescência, memorizando, às vezes mal, 3 ou 4 letras, e nunca mais saíram dessa caixinha estética. E lá vão eles ano após ano, carregados de rugas mas armados em malandrecos, múmias dançantes, as mulheres mais interessadas nos jovens libidinosos à procura de uma queca fácil, os homens nas pouquíssimas adolescentes e na cerveja ou whisky.

– Não me revejo nessa discrição.

– Pois não, há quanto tempo não vais lá?

– 5 ou 6 anos, e tu?

– Há mais de 10, mas eu não preciso de ver as coisas para saber como funcionam, sou quase um Tirésias, ou uma pítia pós-moderna.

– Deixa, Joaquim, deixa que a festa aconteça, quero é que venhas, é muito importante para mim que venhas.

– Está bem, às vezes bater no fundo permite colocar as questões certas. Sei bem do que falo, já bati em tantos fundos que só por sorte extrema não estou partido. Ou melhor, partido estou, mas não todo, ainda sou um corpo com órgãos, um cérebro que regula os fluxos caóticos da realidade, um aparelho digestivo que decompõe os nutrientes em moléculas assimiláveis. Ainda domino o universo da linguagem, embora deteste a porcaria do novo acordo, gesto arbitrário que junta o pior que há na academia e na política. Em mim ainda funciona bem a escatologia fisiológica. Tudo sem precisar de acreditar em Deus nem alternar, freneticamente, como alguns aqui na escola, entre medicina tradicional e alternativa, endireita e fisioterapeuta, chás e fármacos. Já viste, Lourenço, esta máquina ainda funciona, e tu sabes que eu sempre fui e serei um funcionalista, o que importa é que as coisas funcionem, melhor quando o fazem bem. Eu é que sou o Chaosmos do Joyce.

Pôs-se um cartaz na sala de professores (FESTA EM HONRA DO NOSSO HERÓI LOURENÇO, sábado, dia 23, na discoteca Plateau, Santos. Entrada €10, com direito a duas imperiais, sumos ou águas), e a lista de inscrições ganhou rapidamente volume: 88 assinaturas preencheram quase três páginas A4. Numa das margens alguém escreveu: “o coração não consegue viver dentro de limites!”.

Ouvia-se um ruído de fundo inebriante, estávamos em Maio e nesta altura nas escolas tudo converge ou para a loucura ou para a depressão. Às vezes enlouquece-se para evitar a queda anímica. A forma mais fácil de o fazer é deixar que Eros se manifeste com mais à vontade. Havia, além do mais, a vaga ideia, falsa mais poderosa, de que um Dj do Plateau era descendente de uma linhagem dionisíaca bastante influente da Europa de Leste. É para rir, claro. Mas não chega aos calcanhares dos Segredos de Fátima. Outra explicação, menos plausível, é a de que o ser humano se entusiasma de forma altruísta (que sempre foi uma sublimação dos apetites sexuais) com a grandeza dos outros.

Preparava-se, então, um bacanal. Sem Penteu e Agave, mas com ménades e o esbatimento da polarização sexual, havia uma tonalidade andrógina nascente e muito desejo de sexo no ar.

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As Aventuras do Senhor Lourenço (§17 o perigo do amor)

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Lourenço leu na Literary Hub que “The risk of passionate love is this: it makes everything outside its immediate, glowing orbit look dull and distant by comparison. What we love dims the rest of the universe, whether we love a person, a drug, or an idea.” E lembrou-se que também o velho Freud dizia que nunca estamos tão mal protegidos contra o sofrimento como quando amamos, nunca tão irremediavelmente infelizes como depois de perdermos a pessoa amada e o seu amor.

Sabe-se que Freud leu e gostou de Schopenhauer, também conhecemos as diatribes deste filósofo solitário e mal-humorado contra o amor, que para ele não passava de uma astúcia biológica para manter a espécie viva, a paixão devendo conduzir à procriação. Mas entretanto inventaram-se métodos contraceptivos bastante eficientes, a milhas dos antigos preservativos de tripa de porco. E o sexo passou quase a ser um fim em si mesmo, com aquele valor intrínseco de que tanto gostam os filósofos metafísicos. Hoje fazemos amor pelo prazer fisiológico que isso provoca, excepto nas variações perversas ou no sexo aconselhado pelas estatísticas de medias cor-de-rosa.

Bem sei que a realidade é mais complexa, o social e as pulsões primitivas continuam a determinar uma fatia grande dos nossos comportamentos sexuais. Até a retórica consumista entrou ao barulho. Um dia destes, um amigo veio dizer-me, cheio de orgulho, que estava “acima da média na cama”. À primeira, não percebi, “na cama?”, perguntei. “Sim, respondeu-me, no número de vezes que como a Diana”. Bom, parece que isso é positivo, sinal de virilidade, de boa condição física, mas também prova de que é possível aguentar a monogamia entediante. E a Diana, será que tem a mesma ideia? Ou faz o frete de mulher disposta a satisfazer as necessidades do marido?

Lourenço queria muito discutir os perigos do amor com a Manuela, mas ela não tinha lido sequer Madame Bovary, poderia ele confiar no senso comum que desenvolvera enquanto dondoca profissional. Não cheguei a dizê-lo, mas Manuela era também rica, bela e rica, verdadeiramente rica (o mono do marido que a abandonou ganhou a medalha do gajo mais parvo da década). Uma pessoa assim não precisa de desenvolver ou articular seja o que for, pelo contrário, é melhor manter-se na suprema ignorância da lógica e da política, do comércio mundial e da mecânica quântica, das alterações climáticas e do TTIP, será muito mais feliz e ousada dessa maneira.

– Meu amor, meu amor, meu amorzinho, luz da minha vida. – Disse Manuela a Lourenço, logo às 7 da manhã, depois de desligar o despertador.

– Bom dia. – Respondeu Lourenço, como quem cumpre as regras básicas de civilidade.

– Meu amor, hoje vamos almoçar ao eleven, não te esqueças.

– Pois é, tem mesmo de ser?

– Sim, claro, vá lá não custa nada, os meus pais gostam de estar connosco.

– Manuela, por que razão dás aulas, podias ir para uma empresa do teu pai...

– Adoro a escola, adoro os alunos, adoro-te a ti!

– Não há nada que te desagrade, às vezes vejo-te triste, outras muito chateada com os alunos ou os colegas.

– Tem de ser, mas no geral sou feliz.

– Mesmo quando eles não querem aprender.

– Mas eles querem sempre aprender, às vezes só não é aquilo que queres ensinar.

– Que tenho de ensinar!

– Sim, mas também que queres ensinar!

– Dá-me um beijo, faz amor comigo, Manuela.

E Manuela fez, naquele dia sem se importar de não conseguir lubrificar bem logo de manhã, das suas zonas erógenas estarem tão adormecidas que nem um príncipe encantado as conseguiria despertar, de ver com olhos menos turvos o corpo desengraçado do Lourenço, de achar que os pêlos nas costas deviam ser arrancados um a um.

Apesar deste idílio amoroso, Lourenço começava a sentir-se deprimido. Ainda era um herói nacional, os meios de comunicação seguiam os seus passos, à espera que dissesse alguma coisa, claro, mas sobretudo de fotografarem a Manuela. A intensidade esvanecia-se. Isto devia agradar-lhe, ele detestava o circo mediático, mas o esvaziar o balão da fama alimenta sempre um sentimento de perda, até naqueles que não querem ser famosos. Na altura era, aliás, um pouco o país inteiro que decaía animicamente. Vivia-se uma crise financeira grave, sem solução para lá da queda num qualquer abismo proposto pelo programa do “não pagamos!”. Mas até esta opção, na sua irracionalidade intempestiva, parecia melhor do que a asfixia lenta da realpolitik. A isto somava-se a percepção quase nítida de que em Portugal se podia começar por ser um crápula e acabar como ministro, mas também o contrário, começar como ministro e acabar em crápula. Os optimistas achavam que tudo passaria quando os conceitos e a moral deixassem de ser incertos. Os pessimistas, pelo contrário, onde se incluía Lourenço, acreditavam que essa incerteza e a falta de motivação endémica para fazer as coisas bem feitas, nunca permitiriam que Portugal fosse um sítio decente para se viver. Acrescente-se a estas razões, mas sem tanto grau de convicção, que Lourenço continuava a ser, por baixo da capa do respeito e da admiração, alguém pouco desejado na escola. A sua mediania parecia evitar-lhe a embirração dos colegas, as escolas concentram geralmente a animosidade em quem, por uma ou outra razão, se destaca. Nisto, por exemplo, o Joaquim e a Manuela estavam muito mais a jeito, devido, respectivamente, à erudição (Joaquim não acreditava na inteligência, para ele tudo se jogava na quantidade de conhecimentos que se tinha, por isso costumava dizer que “a escassez de história era um pecado capital”) e à beleza fora de normas. Mas quem julgar que a racionalidade emotiva reina na sala de professores, está muito enganado.