As Aventuras do Senhor Lourenço (§19 música álcool e Dioniso, Bacanal parte II)

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À meia noite, a discoteca começou a encher. Lourenço estava perto do balcão, virado para a pista com a Manuela ao seu lado. Os colegas cumprimentavam-no depois de entrarem, todos o fizeram com sinceridade. O Dj tinha uma playlist entre The Neighbourhood e Artic Monkeys, talvez recomendada por Lourenço, mas não estou seguro disso. Manuela irradiava felicidade, ondulando levemente o corpo com um copo de whisky na mão. Tinha um decote magnífico e a maquilhagem de €100 elevou-a à perfeição. Lourenço amava-a, mas não acreditava que ela ficasse com ele para sempre. Aliás, o sintagma “para sempre” cheirava tanto a vulgaridade que era melhor isso não acontecer. E Lourenço fez bastante para que Manuela o abandonasse.

À uma da manhã a pista abriu com Celebration. As colegas mais gaiteiras, quase todas meio embriagadas com baileys, saltaram para o meio e, suportadas pelos laços de cumplicidade feminina, dançaram com entusiasmo. Depois veio Everybody Wants To Rule The World dos Tears For Fears e a pista encheu. Foi a noite do Pop 80s, até Lourenço que não gostava de dançar, digamo-lo assim, entrou na confusão ao som de Funkytown, e nem o Uspide Down de Diana Ross o pôs novamente no lugar. O Dj animava a multidão nomeando o “herói Lourenço”, a quem “devemos a nossa liberdade” e que “mais algumas das nossas lágrimas não tenham ido salgar ainda mais o mar”. Um Dj culto? Competente, mas já meio surdo. Que importa?! Com Come On Eileen entrou-se em delírio, todo o Plateau, agora com muito mais clientes, pegou fogo.

Dioniso compunha e tocava música, só esta arte podia conviver com a sua desmesura, excesso vital, e mortífero, que nascia em cada um dos seus gestos. E Dioniso ressuscita constantemente, já não no aparato estético das Grandes Dionisíacas, mas em cada noite mais vibrante de todas as discotecas, de todos os festivais de música, de todos os bailes de aldeia... Dioniso preside aos histrionismo erótico que invade os corpos anti-cartesianos das noitadas de música, dança e alguns psicotrópicos.

Quando passou o incontornável Addicted To Love, Lourenço já ia no quinto whisky e Joaquim tinha-se juntado à festa (com ar carrancudo e sem um botão da camisa, umbigo à mostra), descobrindo, para seu espanto, uma nova simpatia por seios fartos. Mas em vez de se atirar à mamalhuda que dançava insidiosamente à sua frente, deixou que o empregado, cheio de gestos efeminados, se roçasse cada mais nele. A página tantas, perguntou-lhe, meio a sério meio a brincar:

– Queres chupar-me?

– Não, respondeu. Para logo a seguir, no que pareceu ser uma desculpa, acrescentar que o podia sujar.

“A vontade de perfeição leva à inacção”, pensou, um pouco a despropósito, Joaquim.

Foi a partir desta altura que tudo se precipitou, um feixe de loucura emergiu quando entraram The Rolling Stones e o seu Sympathy For The Devil. Os corpos emanciparam-se e assumiram uma esperança inverosímil em amanhãs radiosos, a discoteca tinha uma comunidade espasmódica com formas tensas e contorcidas, oscilando entre o esticado e o dobrado, pareciam seguir o tirso imaginário de Dioniso. Chegara a vez de se falar a língua dos relâmpagos, lançados, porém, ao acaso e sem a potência fulminante da mitologia. Como dizia Nietzsche, em quem esta língua era autêntica e importante, mas por razões mais nobres, “O corpo entusiasma-se, deixemos a alma fora de jogo.” No meio disto, Joaquim auto-dissecava-se à procura do pecado pagão que impulsionara irremediavelmente a sua decadência social, um apátrida sem génio. Lembrou-se de Álvaro de Campos: “Não posso estar em parte alguma. A minha / Pátria é onde não estou.” Mas num assomo de dignidade varreu tudo para debaixo do tapete e declarou-se fiel absoluto do pessimismo da força nietzschiano. Não por ser o mais duro, mas por ser o mais complexo, que a força em Nietzsche nunca teve que ver com domínio, tratou-se sempre de abrangência, da máxima abrangência possível.

Uma colega de português, adorável até ao ponto em que não era adorada (aí, em perplexidade furiosa, atirava-se à vítima como se fosse a única responsável pelo Pecado Original. Dizia, sem o dizer, “como te atreves a não me achar adorável, mas quem és tu para deslizares da unanimidade em relação à minha santidade?) meteu-se com ele.

– E se te apalpasse?

Lourenço, surpreendido, mas não muito, respondeu:

– Faça o favor, colega.

E a colega pôs-lhe a mão no sexo e apertou. Ao mesmo tempo tentou beijá-lo, mas Lourenço recusou, argumentando, mais mimeticamente do que foneticamente, que estavam pessoas a ver. E estavam, talvez mesmo a Manuela.

A colega prosseguiu na conquista.

– O mais histericamente histérico de mim, como vivia Álvaro de Campos em Pessoa, está aqui hoje para cometer uma loucura, Lourenço, vem, vem foder-me!

Lourenço ouviu vagamente o nome de Campos, histriónico e melancólico, e por isso aceitou, sem saber o que aceitava. Entraram na casa de banho feminina sem que ninguém se espantasse, parecia ser habitual naquele lugar a mistura de géneros. Tiveram que esperar que alguém saísse de uma cabine. Chegada a vez deles, Lourenço com a cabeça à roda, mais interessado num analgésico ou em vomitar do que em foder a colega. Alguns riram quando os viram entrar, justificando-se a velha tese de que com gracejos gratuitos se ordenou grande parte do mundo. Por outro lado, não havia nada de novo nesta escapadela, vazava-se num odre velho vinho novo.

Ninguém sabe o que se passou lá dentro, Lourenço jura que só vomitou e dormitou no colo da colega. Ela nega inclusive que alguma vez tivesse ido para a casa de banho com alguém, ela que nunca faltou ao respeito ou deixou de se dar ao respeito. Manuela estava, porém, furiosa. Gritava muito, mesmo junto ao ouvido de Lourenço:

– És um merdas, sabias, um merdas total.

Lourenço sabia que se saísse para a rua poderia olhar as estrelas sem medo de nada, mas tinha-se enrolado numa teia que talvez o prendesse para sempre no Plateau.   

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