É difícil recordar coisas ternas com ternura

“A pessoa deprimida estava numa dor emocional terrível e incessante”, assim começa a história. “E a impossibilidade de partilhar ou articular esta dor era ela própria uma componente da dor e um factor que contribuía para o seu terror essencial.” O conto é sobre uma rapariga com depressão e a forma como ela lida com a doença. Foi publicado na revista Harper’s em Janeiro de 1998. Karen Green, artista visual, leu-o e quis reescrevê-lo, alterando o final. Achava que não havia nada feliz ali, nada que pudesse ser transformado numa coisa bonita. Escreveu ao autor, e ele deu-lhe permissão para o fazer. Na sua versão do conto, a rapariga fica curada. Quando o autor leu ficou contente, e disse-lhe que ela tinha conseguido escrever uma história que as pessoas iriam querer ler. Foi assim que se conheceram, em 2002. Casaram-se dois anos depois em Urbana (Illinois, EUA), cidade natal dele. Assistiram à cerimónia os seus pais e assistiu o filho de Karen Green, de um casamento anterior.

Em 2008, ele, David Foster Wallace, suicidou-se. Green tinha saído para a abertura de uma exposição na galeria onde trabalhava, a cerca de 10 minutos de casa. Era uma sexta-feira, dia 12 de Setembro. Foster Wallace dirigiu-se à garagem e ligou as luzes. Escreveu uma carta em duas páginas. Deixou a garagem, atravessou a casa e saiu para o pátio. Subiu a uma cadeira e enforcou-se. Green encontrou-o horas mais tarde.

Algum tempo antes, tinham feito um pacto. Foster Wallace não faria com que ela tivesse de adivinhar como é que ele estava. Se ele se matasse, dissera-lhe Green, ela transformar-se-ia na Yoko Ono do mundo literário.

Em 2013, Green publicou um livro sobre o suicídio do marido (Siglio Press). Numa das primeiras páginas escreve: “Antes de eu ir para o trabalho nós estávamos debaixo da oliveira e tu estavas a fazer aquilo a que chamavas fumar como um paciente psiquiátrico e disseste – Eu não quero ser Satanás, mas queres juntar-te a mim – e despimos as nossas camisas para roçar as barrigas e a tua muito mais lisa mas de qualquer forma cheia de pão, de qualquer forma despimos as nossas camisas, plexo solar com plexo solar, e este era um ritual reconfortante que fazíamos todos os dias e eu disse – Vamos fazer isto para o resto das nossas vidas. E tu disseste – És tão bonita”. “É difícil recordar coisas ternas com ternura.”

O livro chama-se Bough Down, "tronco caído", e reúne uma série de poemas em prosa e colagens de Green a partir de páginas de livros e selos antigos. George Saunders, o escritor americano, descreve o livro como sendo uma das mais bonitas expressões de amor e perda que alguma vez vamos ler. “Bough Down faz-me lembrar, de alguma forma, o fado português: um lamento oferecido com tanta precisão que se torna luminoso e afirmativo”, lê-se na capa, onde há também quem a compare a Anne Sexton, Sylvia Plath e Emily Dickinson.

Os títulos dos poemas são referências ao espaço (Noutro lugar), tempo (Novembro, Dezembro, Primavera, Junho), frases retiradas do texto, muitas vezes interrogações (É assim que isto começa? Porque não quis ele voltar para lá?) ou versos de canções de Billie Holiday: It’s too hot for words. Let’s call a heart a heart, I sit in my chair, filled with despair. You could be the apple of my eye, but you upset the apple cart. You’re my joy and pain.

No poema com o título “The moon above is yours and mine”, também verso de canção, Green escreveu: “Olhos como pequenos peixes brancos. Uma ilusão óptica. Agora cada ponto de vista é periférico. Eu não consigo ver ou vejo demasiado. Preciso de falar contigo. Os teus braços sentem uma cor irracional. Braços não, caules. Língua não, anémona. Isto não, tu. A meia-lua lá em cima e o seu cenário são só meus. Os segundos podem ser importantes e eu corro neles, eu suporto o teu peso neles. As tesouras são demasido frouxas. O polícia pergunta – Porque é que eu te soltei? A pergunta permanece no presente. Porque eu pensei e ainda penso – talvez.”

Foster Wallace tomava Nardil (um antidepressivo) desde que abandonara o curso de Filosofia, em Harvard. Na Primavera de 2007 decidiu deixar o medicamento, porque achava que estava a afectar a sua saúde e a sua escrita. Os efeitos secundários dos antidepressivos aborreciam-no há algum tempo. Há uma personagem do seu conto “The Planet Trillaphon”, que escreveu quando estudava no colégio de Amherst (Massachusetts), que a dada altura diz: “Ando a tomar antidepressivos há, quê, faz agora um ano, e suponho estar bem qualificado para contar como é. São bons, a sério, mas são bons da mesma maneira que seria bom viver, digamos, num outro planeta que fosse quente e confortável, com comida e água fresca: seria bom, mas não seria a mesma coisa que viver na nossa velha Terra”.

Em entrevista ao New York Times, em 2009, Green conta que na altura percebeu que deixar os antidepressivos seria uma decisão difícil para ele: “A pessoa que estava prestes a deixar de tomar o medicamento, que possivelmente era o que o mantinha vivo, não era a pessoa de que ele gostava”. “Ele não queria preocupar-se tanto com a escrita como se preocupava.” Ao fim de alguns meses Foster Wallace voltou a ficar deprimido e experimentou outro antidepressivo que, no entanto, não resultou.

Foster Wallace era amigo de Jonathan Franzen, o escritor americano. Trocavam emails regularmente. Foster Wallace escreveu-lhe um dia: “Karen anda a matar-se com a remodelação da casa. Eu sento-me na garagem com o ar condicionado no máximo e trabalho muito pouco e cheio de hesitação e com (em alguns dias) grande relutância e ambivalência e dor. Parece que estou cansado de mim próprio: cansado dos meus pensamentos, associações, sintaxe, vários hábitos verbais que foram da descoberta à técnica e da técnica a tiques. É um tempo negro para o trabalho, e ainda assim um tempo muito leve e bonito em todos os outros aspectos. No geral sinto que estou no bom caminho e estou muito feliz”.

 

Mestres e sinos partidos: sobre «The Master of Petersburg»

 

‘I am far from being a master,’ he says. ‘There is a crack running through me. What can one do with a cracked bell? A cracked bell cannot be mended.’ A frase, dita pela personagem de Dostoievsky em The Master of Petersburg, captura uma das características mais difíceis de definir com precisão sobre os romances de Dostoievsky, um peso metafísico que define as personagens e as suas acções. Isto é uma nota possível sobre como o romance de J. M. Coetzee transporta o universo dos livros de Dostoievsky para um romance sobre Dostoievsky.

O romance centra-se num episódio da biografia do autor, o suicídio do jovem Pavel Isaev, filho adoptivo de Dostoivesky, de quem ele se torna único guardião após a morte da primeira mulher, Maria Isaeva. Muita da reconstituição biográfica do romance depende provavelmente da monumental biografia de Joseph Frank, Dostoevsky: A Writer in His Time.

O centro da acção é o processo de luto. Dostoievsky viaja de Dresden para São Petersburgo depois de receber a notícia da morte e depois de Pavel já ter sido sepultado. Aparentemente, não há muito que Dostoievsky possa fazer além de visitar a sepultura, recolher os pertences do filho e regressar a Dresden. Dostoievsky isolado no seu luto, oculto em São Petersburgo para não despertar a atenção dos muitos credores deixados para trás, Dostoievsky a tentar reconstituir os passos de Pavel, a tentar conhecê-lo o mais verdadeiramente possível, fora da sua perspectiva de pai, recuando até tentar entrar na perspectiva de Pavel.

A narrativa do luto de Dostoievsky não é uma narrativa de perda. Não é sobre consolo, resignação, substituição. É sobre a luta contra a dor. A dor que não se pode converter no substituto de Pavel. E Dostoievsky tenta puxar todos os nervos de que ela é feita para que também ela comece a bombear vida. Quando os críticos da tragédia grega tentam descrever como ela não oferece consolo mas fortalece, é disto que falam. 

De onde vem o peso metafísico nos romances de Dostoievsky? Não é uma coisa exterior às personagens, embora elas o projectem para fora de si até ele se tornar tangível nas suas vidas. É uma parte do que elas são, que contagia inevitavelmente tudo o que elas fazem. Uma espécie de compulsão que não pode ser evitada.

Todas as coisas que podiam redimir Dostoievsky falham, todas as coisas em que ele podia encontrar consolo: o amor de uma amante, descobrir o que aconteceu a Pavel, a evolução do seu pensamento político, sexo, o futuro na Rússia. Todas estas coisas se vão convertendo em outros tantos aspectos do seu combate com o luto. Como arrancar o corpo de Pavel sepultado numa ilha debaixo de neve e trazê-lo de volta à vida: estes são os termos em que Dostoievsky escolhe perseguir o seu luto.

No fim é o amor a Pavel que salva Dostoievsky. Não aquele que está com ele no princípio, quando ele regressa a Petersburgo, mas o que cresce a partir do fim, quando nenhum dever se pode contar como redenção. Nesse sentido, The Master of Petersburg é um romance sobre os limites do amor. O livro de Coetzee ensina-nos que eles não existem. 

Um excerto de «Impunidade»

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« Avançámos até ao fim da avenida e continuámos pela cidade velha. Demorei a encontrar a saída. À medida que avançava, o carro mergulhava num dédalo de ruas estreitas e sentidos únicos, onde cada opção parecia conduzir a um interior mais profundo, a uma rua ainda mais apertada, a um lugar mais distante de qualquer princípio de organização. O rapaz olhava alternadamente para mim e para as ruas que diante de nós se iam contraindo, com os muros cada vez mais colados às rodas do carro. Via-me prosseguir pelos empedrados, hesitar nos cruzamentos, continuar nos sentidos obrigatórios. Fixava o fim da rua, parecendo duvidar que o carro aí coubesse, voltava-se para mim. De um lado e do outro, paredes brancas, janelas com grades, portas fechadas. Levantava-se no banco e espreitava para trás, como se suspeitasse que a única saída viável fosse meter a marcha atrás e refazer, invertido, o percurso que ali nos conduzira. Metro a metro, centímetro a centímetro. Refazer o caminho, refazendo as dúvidas e as hesitações, e assumindo o erro de ter pretendido optar onde não havia opção. Tarde ou cedo acabaríamos numa rua barrada por um muro caiado. Continuámos ainda durante mais vinte minutos. Um percurso circular. Reconhecia as ruas, os edifícios, os empedrados. Por fim, ele sugeriu que deveríamos parar e perguntar a alguém. Respondi-lhe que não perguntava.
«Nunca.»
Acenou com a cabeça. Talvez compreendesse. Acelerei. Minutos depois acabámos por desembocar junto do rio, não muito longe da ponte romana. Nenhum de nós disse nada. Contornámos os bairros antigos e apanhámos as avenidas novas. Duas faixas em cada sentido.»


Impunidade  (Relógio d' Água, Lisboa, Junho de 2013), de onde foi extraído o excerto que aqui se apresenta, é o mais recente livro de H. G. Cancela

Mário Palma Jordão, Idos Tempos de uma Puta

Mário Palma Jordão
Idos Tempos de uma Puta
Novela
Enfermaria 6, Lisboa, abril de 2014, 88 pp.

9,5€

Primeiro capítulo disponível aqui.

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Na Fyodor Books
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enfermariaseis@gmail.com

Uma jarra com flores. Pensei em ti durante todo o dia. Um arranjo floral delicado e feminino. Ela não se costumava a aventurar pelo escritório. Aquele era o espaço dele. Limitava-se a arranjar as flores numa ou noutra jarra que mudava daqui para ali. Ele nunca sabia os nomes das flores. Não ligava a isso. Ou ficava bonito ou ficava piroso, pronto. Era com o seu irmão, quando se encontravam ao fim-de-semana, que ela se entretinha a falar de flores e desenhinhos e manicura. Também ela nada sabia, nada ligava às coisas de que ele mais gostava. Ele não sabia distinguir um lírio de uma hortênsia; ela, por seu turno, não sabia distinguir Mozart de Chopin. O fosso entre ambos era imenso e parecia estar em expansão acelerada. Dantes, no meio, estava o amor. E agora? era a pergunta que fazia a si próprio, olhando desfocadamente o futuro.