Autômato 

em memória de alguém que não conheci

 

Oi liguei pra avisar que ninguém está prestando atenção Cuidado, a pátria é a da gentileza desatenta
oi você sumiu, Victor Heringer

 

A dor do peso do luto. A dor da mão refreada. A dor & o conforto da cegueira de se navegar em mares afins. Desencontrados. A árvore frutífera e o açude. A mãe tem nome - mãe. O nome tem peso. As metáforas da vida. A objetificação do toque. As possibilidades selecionadas. Tudo a pronta entrega. Teu amor. Tua flor. Teu deserto. 

Como é possível que o infinito caiba numa imagem? Mesmo que essa imagem seja do meu avô no auge dos seus 70 anos. Mesmo que seja um símbolo antigo. Um desenho rascunhado. Uma imersão fantástica. 

Nossa imagem geracional perdida numa grandiosidade intragável. Não como a fumaça do Fusca. Mas como a impossibilidade de sentir o segundo sol na ponta da língua. Espelho a limitar nossos movimentos. A poda, a seleção, a deriva. O teu beijo na tarde de sol em que o poeta morreu. Ou na noite em que o país afundou. E vem esse prazer à boca: fruta & textura, pele & sublimação. 

Euforia & desolação. É tanta luz no hemisfério. Tantas cabeças incandescentes. & usinas que sobram. É tanto braço sendo mecânico. A vida automática. O império analógico. 

Nosso gosto pela captura dos pássaros que nos impede de voar. Quero desgastar algum nome. É necessário autonomia para criar o hábito de outra existência & o exercício de outra estética. 

Uma vida que transpassa. A poesia entendida como força vital que eleva plantas. De repente, o horizonte existe e está próximo. 

De repente, um dia em que corro, e teus braços vêm. 

Nota de leitura (10)

Apollo

Contemplo teu rosto
como um astronauta

que pisou a lua
e por uma noite

de Agosto, sentado
no umbral da casa

(trinta anos depois
dos únicos, poucos,

verdadeiros dias
da vida que teve)

levanta a cabeça
para olhar o céu

e pensa consigo:
Oh, eu estive lá.

José António Almeida
A Mãe de Todas as Histórias
Lisboa: Averno, 2008, p. 49

A universalidade que aqui tenho vindo a discutir e defender em relação à forma poética (porque uma coisa é a forma poética e outra a Poesia), sei que é frágil e facilmente rebatida. No entanto, volto a ela com o poema acima reproduzido. Para mim é um dos mais belos poemas de amor escritos nos últimos vinte anos. Mas também é certo que não li todos os poemas de amor que se escreveram nos últimos vinte anos.
E será um poema de amor aqui e em qualquer parte deste nosso mundo. O homoerotismo presente só o é devido ao título que o poeta escolheu para o poema. Se retirarmos o título ao poema, temos, sem qualquer sombra de dúvida, um poema de amor. E quando aqui falamos de amor, falamos de Amor. Porque só a falta de Amor é contra-natura. Tudo o resto, que alguns possam vir alegar, é retórica populista e demagógica.

Nota de leitura (9)

Máxima

 

Hoje é dia de dar lugar aos dias
o seu lugar. Está tudo muito difícil,
não há roupa nova mas pareces
seguro e fresco no teu ar concentrado,
a passear na rua que tu queres:
como nas festas antigas, tudo muito fácil,
a luz é justamente a que quiseres
para ler um livro da Fátima Maldonado.
O cão mordeu-me no focinho,
vou a correr para o hospital, ai
Jesus, está sempre a acontecer
uma coisa qualquer, darei aos dias
lugar nenhum: não me quero, sequer,
lembrar, do dia em que nasci
quanto mais comprar petróleo
para ler, à luz da lamparina, seja
lá que livro for. Quero é velocidade,
pressão, vontade, frequência,
interferência, invenção, atenção,
expressão, potência, inconveniência,
informação, alteração, inteligência,
razão, impertinência, emoção,
internacionalização.

Où mort.

Manuel Fernando Gonçalves
A Matiz e o Canto Oposto
Companhia das Ilhas, 1ª edição, 2013, p. 41
 

George Louis Buffon disse um dia: «Nada há de mais antagónico ao belo natural do que o esforço que se emprega para exprimir coisas ordinárias ou comuns de um modo singular ou pomposo; nada degrada mais o escritor.». Esta extraordinária verdade aplica-se a alguma da poesia portuguesa dos últimos vinte anos. É uma poesia de janelas fechadas e demasiado centrada em si. O diálogo que tenta estabelecer com o mundo que a rodeia é um diálogo falacioso, suportado por uma pomposidade que nada acrescenta àquilo que é dito.

Considero que o poema apresentado é o oposto, isto é, é um poema que procura o “belo natural” através das “coisas ordinárias ou comuns”, mas sem o esforço que “degrada” o escritor através duma singularidade e pomposidade abjecta. Manuel Fernando Gonçalves consegue dizer tudo aquilo que tem de ser dito, sem o recurso a um certo folclore sintáctico e morfológico.

Notas de leitura (8)

É só para dizer

Que comi
as ameixas
que estavam
no frigorífico

e que tu
provavelmente
guardavas
para o pequeno-almoço

Perdoa-me
estavam deliciosas
tão doces
e tão frescas

William Carlos Williams
Selected Poems
New Directions, 1985.
(versão minha)

 

Talvez seja um dos mais conhecidos poemas de William Carlos Williams. "Nele não há nada de poético", dirão as almas mais ofuscadas pela luz do sublime. No entanto, tudo nele é poesia: desde a situação à musicalidade (que poderá estar perdida, admito, nesta versão apresentada). E há, ainda, a concisão das palavras.

Carlos Williams percorreu um caminho longe dos labirintos metafóricos. Procura antes a economia das palavras, mas também o seu rigor, utilizando as palavras exactas e não as mais próximas daquilo que se quer dizer (a utilização da palavra-bibelot está fora de questão), a leveza e a proximidade ao dia-a-dia. Uma poesia imagista, acima de tudo. E na sua verdadeira essência.

Nota de leitura (7)

Retratos de Família

 

3.

 Às vezes, eu ia recolher com a boca
as gotas de chuva do beiral
e nelas sentia o gosto do mundo.
Nuvens, vento, céu pardo.
Eu chorava essas horas de prisioneiro na sala da varanda
entre flores que minha mãe adorava
e a miragem de um dia de sol, lá fora,
com a bola de futebol no largo da escola.

Fernando Namora

As Frias Madrugadas

Publicações Europa-América, 1971, p. 114.

 

Novamente, o poeta encontra no quotidiano motivos poéticos suficientes para dizer aquilo que muitas vezes fica por dizer. Fernando Namora (que foi mais romancista do que poeta) consegue, em poucos versos, recriar todo um imaginário: que poderia ser o de qualquer um. Quem é que nunca recolheu gotas de chuva? Só os pobres de espírito, de certeza.

Penso que este poema cumpre a questão da universalidade que já aqui mencionei. É tudo menos umbiguista. Não existe nele qualquer tipo de palavreado oco. É honesto e não procura, quanto a mim, fazer bonito. Não recorre à intertextualidade ou à sabedoria académica bacoca. Nele não é necessário citar Deleuze para dizer o que tem de ser dito. Tudo está. Nada falta.