Do ruído

André Kertész, Veneza 1963

André Kertész, Veneza 1963

No livro Bruits (ruídos), Jacques Attali defende que se o ruído é sempre violência, a música é sempre profética. Ora, a humanidade parece estar cada vez mais ruidosa (num planeta sobrepovoado), como se o barulho, e quase só ele, marcasse as zonas de influência vitais de cada indivíduo. Para quem trabalha numa escola isto é insofismável, quase visceral, mas descubro cada vez mais algo parecido nos múltiplos campos da vida social, o ruido tomou conta do mundo.

Pierre Bourdieu, sociólogo activista, via com bondade o falar alto das classes trabalhadoras, habituadas, por necessidade, a comunicações estridentes nos locais de trabalho. Mas talvez seja uma excepção, e mais teórica do que prática (Bourdieu não frequentava os ajuntamentos populares nem imergia incógnito, como Simone Weil, nas fábricas). Nietzsche, por sua vez, tantas vezes histriónico, dizia que as grandes coisas surgem de maneira sussurrante. George Steiner imaginava o Borges conservador no silêncio do seu gabinete inventando o mundo que realmente existe (a conservação requer este tipo de invenção). Muitos outros, com toda a razão, perceberam a dissonância entre a leitura e o ruído (mesmo os romances ruidosos de Martin Amis exigem silêncio). Por isso, perdendo-se a leitura perder-se-á também uma parcela importante de silêncio, com certeza um dos seus últimos redutos. Pode até acontecer que estrangeiros cósmicos baptizem a Terra como o planeta do ruído supérfluo

Isto não é um epifenómeno, pela leitura fazemo-nos maiores, é esse o milagre, que agora se troca pelo ruído, por vocalizações elementares, por formas de comunicação multiformes que privilegiam as imagens, intrinsecamente barulhentas, impedindo ou dificultando a solidão, a reflexão, a contemplação. Estamos na era do homo festivus, o divertimento tornou-se um fim em si mesmo (potenciando a gigantesca indústria do entretenimento). A maioria dos humanos está alienada num hedonismo epidérmico, composto por fluxos imprevisíveis de prazer e um sentido agudo da irrisão em relação à complexidade, ao pensamento profundo.

Creio que os grandes leitores são conservadores, como Borges. Mesmo quando lêem futuristas (James Joyce, Virginia Woolf, George Orwell, Fernando Pessoa, Albert Camus, Garcia Márquez, Thomas More, J. R. R. Tolkien...), parece até que toda a literatura tem o objectivo de abrir portas, inventar mundos e vidas possíveis. Mas não pode fazê-lo sem recuperar alguns códigos já preenchidos com significados extraordinários, uma vasta genialidade de longo tempo compõe a inteligibilidade literária, houve experimentações tão ousadas que continuam a chocar, análises tão finas e precisas que se tornaram indestrutíveis, invenções tão perfeitas que parecem divinas, o passado é por vezes inultrapassável. Claro que há um lado burlesco neste apego, talvez involuntário, ao antigamente. É um pouco isso que diz Steiner sobre Borges: “No fundo, Borges é um conservador, um guarda do tesouro de banalidades caducas, um classificador de antigas verdades e suposições que transbordam dos sótãos da história. Toda esta arquierudição tem os seus aspectos cómicos e discretamente histriónicos.”[1] Mas se não conservarmos nada e se o ruído preencher os novos marcadores de sentido, se uma vaga descontrolada exigir a inovação frenética, o novo pelo novo, servido com estridência, como poderemos perceber a viagem humana, sobretudo aquela que está por fazer? Reconheçamos que existimos na partilha das ideias, as de ontem são tão vitais como as de hoje. Mas também, que só há ligações, temporais e pessoais, inteligentes e gentis se ninguém falar mais alto do que os outros, ninguém ocupar a zona de silêncio, íntima, de ninguém.

[1] Rober Boyers (org.), George Steiner em The New Yorker, Lisboa: Gradiva, 2010, p. 218.

Em louvor de W1A

Talvez deva começar por falar da linguagem. E este breve texto é um exercício de encontrar o louvor mais adequado. De como a linguagem é compartimentada, reduzida ao mínimo funcional, consolidada e ágil. A paródia da cultura corporativa começa na adopção da linguagem corporativa. O macaquear solene: “No, yes, of course”, “Brilliant!”, “Bollocks!”.

É brilhante a maneira como representa a ritualização da vida. De novo, linguagem é central: as mesmas palavras são ditas até deixarem de ter significado. Eis o civilizado homem ocidental, trabalha num escritório que é uma maravilha arquitectónica situada numa das localidades mais caras do mundo (W1A é um código postal), chega numa bicicleta de titânio desmontável, veste bem, é inteligente e bom, e passa os seus dias a repetir gestos inúteis. E a série seria boa se fosse só isto, mas é elevada pelo esforço trágico de salvar o sentido da repetição. O homem ocidental tem consciência da estupidez das palavras que repete. Hesita, questiona-se, procura redenção. E fracassa, claro, repetidamente, para nosso divertimento. Se a redenção é possível, ou que forma tomará, não é claro. Esperemos pela quarta temporada.

Seria criminoso terminar esta nota sem mencionar os actores. São geniais. Nunca o niilismo corporativo foi ao mesmo tempo tão assustador e engraçado como na personagem de Jessica Hynes. A narração de David Tennant subverte brilhantemente o registo proper da BBC. Uma hora a assistir a Hugh Bonneville a realizar tarefas domésticas seria uma hora bem passada.

O melhor louvor que me ocorre é que poucas séries me fizeram rir tanto como W1A. Desde The thick of it que não via algo tão engraçado.

Jogar ténis com Caravaggio

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Quem passear pelas salas do Museu Capodimonte em Nápoles não tem muito por onde escapar a uma cacofonia de arte sacra nas galerias principais. Alguma dela, há que reconhecê-lo, talvez não merecesse ter sobrevivido ao teste do tempo, quanto mais adornar as paredes de um museu. Antes de se entusiasmar demasiado com a possibilidade de um encontro com tesouros injustamente esquecidos, admita abertamente a possibilidade de que certas coisas foram e são esquecidas por boas razões. Este argumento continua a ser válido mesmo se acolhermos sem polémica um outro: de que há um valor histórico na arte, que alguns quadros desinteressantes testemunham pelo menos esse valor: a passagem do tempo que deu lugar a formas mais interessantes, a expressões mais desafiantes dos mesmos temas.

Tomados nos seus contextos, a presença destes quadros nestas salas é relevante para esclarecer o que em determinada época terá escapado às suas convenções, para nos deixar apreciar melhor a arte que excede o seu tempo. Acresce a isto que há pequenas jóias a serem descobertas no trabalho de poetas muito menores. Por exemplo, a beleza dos anjos que se abraçam nas Sete obras de Misericórdia de Caravaggio, o quadro monumental alojado desde sempre na igreja do Pio Monte della Misericordia, no quarteirão velho de Nápoles, a beleza desses anjos é muito mais evidente depois de oitenta pintores de sacristia martelarem em nós a culpa que o fiel deve sentir pelo sacrifício do Cristo em sucessivamente desinspiradas representações da crucificação, ou da descida da cruz, ou da positivamente anacrónica representação de respeitáveis cardeais metidos a martelo na cena da crucificação. As sete obras... é um dos três quartos da parte final da vida de Caravaggio, produzidos nesta venerável cidade depois de ele ter fugido de Roma por ter assassinado um homem (depois de uma altercação durante um jogo de ténis)[1].

O melhor que alguns quadros mais banais fazem por nós é darem-nos a noção de que todo o sentimento de apocalipse eminente de sucessivas gerações expostas a uma crise económica e política que se prolongou durante séculos acaba por trazer à superfície algo de bem mais valioso, algo que tem a sua expressão mais acabada em obras como este quadro de Caravaggio. 

Há um sentido do teatral que não se confunde em Caravaggio com um sentido do espectáculo, ou com o sublinhar repetitivo - sem possibilidade de equívocos - de uma mensagem monótona de implicações morais e rituais óbvias. Os fundos invariavelmente negros dos quadros de Caravaggio, o chiaroscuro que coloca as figuras humanas em relevo enfatiza expressões, movimentos, isola a beleza, a fealdade, o terror, ou a ternura de certos momentos. O modo como uma perna ou um braço é flectido devolve certeza, angústia, desconforto, dor, sensualidade, divertimento. Nas Sete Obras de Misericórdia dois anjos entrelaçam-se ao alto para sustentar a Virgem e o Menino, mas nós vemos apenas a sua queda eminente, a sua forma de precipitação que instaura o desequilíbrio, sublinha o caos em que actos de misericórdia afinal se desenrolam. Quase que não parece haver uma reconciliação possível entre tudo o que este quadro tenta representar. Uma unidade. O que é expressividade? O olhar sobre determinada coisa que pudesse corrigir uma falha? Emendar, ao comunicar-se, o golpe fundo e angustiante de uma queda a toda a velocidade em direcção ao nada? Nós hoje não chamaríamos a isso misericórdia, mas sabemos que a luz recairia ainda sobre as costas nuas da figura no canto inferior esquerdo, sobre a qual é lançado um manto. Não o que é a expressividade, então. Mas antes a expressividade das figuras neste quadro de Caravaggio encontra a falha no olhar do observador, o eco de qualquer coisa que fazia falta. Se a arte contém algo que salva é algo de temporário e intrinsecamente utilitário, é o que este quadro parece sugerir. A bondade enquanto conceito abstracto, enquanto alegoria, são afinal alguns gestos praticados continuamente.

O caos de Caravaggio depende do nosso silêncio. O que acontece entre o momento de olhar e entender é algo no mesmo comprimento de onda de lançar um fósforo à escuridão. Antes de este se extinguir, a profundidade do que acontece ilumina um continente, mas não dura, o mundo continua lá fora. Não dura mas fica connosco, estas linhas rabiscadas à pressa tentam afinal dar conta da vertigem dessa viagem. O que é ao certo isso? Uma imagem ficar muito tempo connosco? Acender-se inesperadamente muitos anos depois, noutro contexto, o seu rasto luminoso unindo um ponto no passado a outro no presente, dando-nos a ilusão, sem neutralidade nenhuma afinal, de que há alguma coerência para esta coisa que sou eu. Enquanto levantamos a cabeça, antes de sairmos de Pio Monte della Misericordia, lembramo-nos de uns versos de Geoffrey Hill que podiam acompanhar este quadro: Consensual angel spinning this word’s thread/ he descends/ and light-sensitive darkness/ follows him down (de Psalms of Assize).


[1] “Only certain details of the circumstances surrounding the bloody quarrel can be reconstructed from criminal records. It involved four opponents on both sides and appears to have erupted during a pallacorda match, a ball game not unlike tennis. But this simply turned into an occasion to settle outstanding scores... Not insignificant was the fact that the artist and his adversary had both wooed the courtesan Fillide Melandroni.” Sebastian Schutze, Caravaggio. The Complete Works. (Taschen, 2015, 166).

Autocensura

James Joyce.jpg

Quando se deve dar um texto, ou um livro, por terminado? “Nunca!” disse-me o amigo B há uns tempos, creio que parafraseando Joyce: “um texto nunca está pronto, às vezes precisa de alterações profundas, outras apenas de mudar uma vírgula, que na revisão seguinte voltará ao lugar original, mas esta correcção falhada é essencial.” Depois, há esse trágico apelo dos contrários: audácia (ninguém sabia que necessitava disso até o ler) ou mercado (que pode ser o dos likes no facebook, a grande câmara de ecos da actualidade).

É preciso sobretudo afastar a mais ínfima possibilidade de publicarmos alguma coisa de que nos arrependamos o resto da vida. Certo, mas isso pode tonar-se um purgatório infinito, um verdadeiro autocensor nunca está satisfeito.

O que fazer então? Em primeiro lugar, não nos levemos muito a sério, um pouco de história e de cultura geral relativizam facilmente a auto-imagem (nos dois sentidos: “nem tão bons, nem tão maus”). Em segundo lugar, domesticar esta economia da censura, orientando-a para a mais-valia. Um pouco como se faz com os recalcamentos na psicanálise. A autocensura como condição de possibilidade da obra, poderíamos dizer.

Finalmente, depois de nos vencermos, ainda devemos preparar-nos para os silêncios do mundo, dos vários mundos que compõem a recepção: leitores, críticos e amigos (que sempre nos dirão algo, mas muitas vezes cifrado e outras tantas edulcorado). E, sim, assumirmos que somos desgraçados, mas sem querer ser outra coisa. Nem sequer, ao contrário dos obsessivos musicais, sonharmos com uma versão mais intensa de nós mesmos.

Eram 3 da madrugada

Entrou no carro, sentou-se e atirou as chaves para o assento do lado. Eram 3 da madrugada, bebera mais do que a conta, tinha os olhos esgazeados e o sono já se fazia sentir, mas nada disso o incomodava. Fixava um qualquer ponto que estivesse na sua cabeça, algures ali perdido nas ideias dele, e era assim que nenhuma das luzes da noite lhe penetravam retina adentro e o acordavam do transe. Pensava num amor, pensava na súmula de quase um ano sem trabalho à caça de biscates aqui e acolá, na maioria das vezes ilícitos, para poder sustentar a sua vida, e a enviar currículos por e-mail com cartas de motivação insossas anexadas e, com o seu envelope encarquilhado, a entregá-los de porta a porta em estabelecimentos que lhe pareciam ora decentes, ora decadentes. Por esta altura, pouco lhe importava. Estudara e trabalhara na área de estudos que agora parecia rejeitá-lo. Fora para o estrangeiro uma temporada, sacrificara a relação com a namorada, não logrando absolutamente nada. Intentara de retomar com a namorada, mas também em vão, não se sentia uma prioridade na vida dele, “nem secundária, nem terciária, nada”. Tinha a sensação de ter feito todas as escolhas erradas na vida. Estava bem quando se encontrava com os amigos, faziam-no sentir-se melhor, anestesiavam-lhe a dor entre chalreios e copos. O problema era o caminho para o carro, aquele moroso rebobinar da vida, de coração na boca e de mãos apertadas na garganta. Foi assim que chegou ao carro, alucinado, pronto para voltar para as quatro paredes de sua casa que pareciam amachucar-se e prestes a cair-lhe em cima a qualquer instante. Ultimamente pegara no volante neste estado, como se desafiasse a morte, e ciente disso. Era ele e o sono que lutavam por uma existência, efémera e prolongada ou eterna. Queria testar a sua sorte: nas estradas desertas, na ponte, nas bermas, nas localidades, tentar não esbarrar-se nos passeios, passando por cima das tampas soltas das sarjetas, ou uma poça de óleo na estrada que lhe desgovernasse o carro. Foi enquanto isto que voltou a si e reparou na aranha que pendia do retrovisor. Lembrou-se das palavras de um poeta: “tal como a aranha, sê paciente”. O caraças, é o que é, resmungou, que me sacudam com o chinelo. Ligou a ignição e seguiu caminho.