Livros dos editores (I)

Três dos editores da Enfermaria 6 trazem aqui alguns dos livros preferidos de 2017.

A lista continuará na próxima semana.

 

Victor Gonçalves

O melhor ensaio sobre Nietzsche publicado, pelo menos, nos últimos 10 anos. Depois dos grandes comentadores do século XX (Martin Heidegger, Karl Löwith, Gilles Deleuze, Giorgio Colli, Arthur Danto, Michel Haar, Cur Paul Janz, Peter Sloterdijk, Jean …

O melhor ensaio sobre Nietzsche publicado, pelo menos, nos últimos 10 anos. Depois dos grandes comentadores do século XX (Martin Heidegger, Karl Löwith, Gilles Deleuze, Giorgio Colli, Arthur Danto, Michel Haar, Cur Paul Janz, Peter Sloterdijk, Jean Wahl, Walter Kaufmann, Wolfgang Müller-Lauter), Dorian Astor mostra uma inteligência hermenêutica e um conhecimento da obra nietzschiana capazes de renovar o interesse, sem fetichismos, pelo solitário de Sils Maria. A sua escrita alia clareza e profundidade, o melhor de dois mundos, pois. 

O "nosso" Modos de Escrever, cheio de autores elegantes, capazes de olhar, como Janus, para o passado e o futuro, de se distanciarem dos seus próprios gestos de escrita e segredarem-nos receitas infalíveis ou reflectirem e suspeitarem desta velha te…

O "nosso" Modos de Escrever, cheio de autores elegantes, capazes de olhar, como Janus, para o passado e o futuro, de se distanciarem dos seus próprios gestos de escrita e segredarem-nos receitas infalíveis ou reflectirem e suspeitarem desta velha tecnologia de comunicação. Que tanto serve para tecer emoções como para geometrizar o mundo. Traduzir, expor o interior do corpo, refazer as relações sociais, programar o desaparecimento, repensar a escrita, anotar partituras, listar as tarefas diárias, versejar palavras banais... De tantos modos de escrever fala (ou escreve) esta obra. 

Uma magnífica descoberta, um encontro que mudou a maneira como pensava a ficção, uma extraordinária mistura de jornalismo e... Mas sobretudo um olhar desassombrado sobre o ser humano, as misérias das suas expectivas e a imensa corrupção das convicçõ…

Uma magnífica descoberta, um encontro que mudou a maneira como pensava a ficção, uma extraordinária mistura de jornalismo e... Mas sobretudo um olhar desassombrado sobre o ser humano, as misérias das suas expectivas e a imensa corrupção das convicções. Como se pode a partir de uma frase ou de uma imagem contaminar sem remissão a beleza e a grandeza da vida temerária. Um livro de história e um livro de antropologia, deixando que se encaixem nesses dois universais as pequenas histórias cheias de euforia e de disforia, uma a seguir à outra. Imprescindível. 

Não sei se é, como diz a publicidade, um "livro de combate pela liberdade e pela dignidade humanas", parece-me mais um livro sobre as imperfeições pérfidas do ser humano. A queda da grande utopia absolutista (é o absoluto que apodrece o utópico) com…

Não sei se é, como diz a publicidade, um "livro de combate pela liberdade e pela dignidade humanas", parece-me mais um livro sobre as imperfeições pérfidas do ser humano. A queda da grande utopia absolutista (é o absoluto que apodrece o utópico) comunista, um igualitarismo (pelo menos para a grande maioria) imposto à lei da bala e da prisão. Despir homens e mulheres da sua pele cultural e olhar directamente para as estratégias mais elementares, amorais, de sobrevivência, já sem raiva ou alimentados pelo espírito de vingança, em puro para lá bem e mal. E depois, uma extraordinária desvalorização da vida em favor da marcha da história, um caminho visionário que alguns acharam por bem, caprichosamente, elevar a lei cósmica. Uma Teodiceia ao contrário. 

Paulo Rodrigues Ferreira

Ler El Pasado, do argentino Alan Pauls, é das mais belas experiências que um leitor de livros pode ter. Depois de treze anos juntos, Sofía e Rímini separam-se. Este acontecimento banal dá origem a uma profunda reflexão sobre o amor, sobre não se sab…

Ler El Pasado, do argentino Alan Pauls, é das mais belas experiências que um leitor de livros pode ter. Depois de treze anos juntos, Sofía e Rímini separam-se. Este acontecimento banal dá origem a uma profunda reflexão sobre o amor, sobre não se saber estar no mundo sem a pessoa amada, apesar de todas as zangas e defeitos. Quinhentas e tal páginas, longuíssimas frases, reflexões sobre a vida, o amor e a dor, tudo para dizer que Sofía e Rímini não se conseguem afastar. Por mais que se afastem, estarão para sempre juntos. E acabam juntos. Este é um livro para leitores a sério.

 Este conjunto de palestras permite compreender o pensamento de um autor que, não sendo Borges, é das criaturas mais fascinantes que a Argentina viu nascer. Cortázar não se limita a dar opiniões sobre o que gosta e o que não gosta na literatura…

 Este conjunto de palestras permite compreender o pensamento de um autor que, não sendo Borges, é das criaturas mais fascinantes que a Argentina viu nascer. Cortázar não se limita a dar opiniões sobre o que gosta e o que não gosta na literatura, lê e comenta atentamente os seus próprios contos. Explica, por exemplo, que lhe interessa o universo do “fantástico”, na medida em que o fantástico é, ao contrário do que possamos pensar, algo que tem como objectivo fazer pensar. Acompanhar o pensamento de Cortázar é uma forma de regressar aos seus contos, de relê-los, de vê-los a partir de outros pontos de vista. 

Ler Alberto Manguel é quase como não ler, ou melhor, é como ouvir, falar ininterruptamente sobre livros, sobre literatura, sobre aspectos mais corriqueiros que quem possui livros sente agudamente (as tristezas e alegrias de comprar livros, de arrumá…

Ler Alberto Manguel é quase como não ler, ou melhor, é como ouvir, falar ininterruptamente sobre livros, sobre literatura, sobre aspectos mais corriqueiros que quem possui livros sente agudamente (as tristezas e alegrias de comprar livros, de arrumá-los, de não ter mais espaço, por exemplo). Em Manguel passamos de Homero a Borges sem darmos pela passagem de duzentas páginas. 

Este foi um ano em que descobri que amo a literatura argentina, que os escritores argentinos que tenho lido vão todos beber a Borges e, consequentemente, apresentam uma profundidade intelectual e inteligência que não são assim tão usuais em tudo o r…

Este foi um ano em que descobri que amo a literatura argentina, que os escritores argentinos que tenho lido vão todos beber a Borges e, consequentemente, apresentam uma profundidade intelectual e inteligência que não são assim tão usuais em tudo o resto que tenho lido. Este livro é uma criação genial de Piglia, uma investigação de Emilio Renzi, conhecida personagem ficcional, sobre um tio intelectual a tender para o libertário, que largou uma mulher rica para fugir com uma mulher de má fama e viver no mais puro anonimato. 

Tatiana Faia

A Sport and a Pastime de James Salter, originalmente publicado em 1967, é uma breve novela. O narrador evoca o percurso de Philip Dean, um jovem americano que desistira da universidade. Dean muda-se para Paris, aí apaixona-se, para ceder depois à pr…

A Sport and a Pastime de James Salter, originalmente publicado em 1967, é uma breve novela. O narrador evoca o percurso de Philip Dean, um jovem americano que desistira da universidade. Dean muda-se para Paris, aí apaixona-se, para ceder depois à pressão de regressar à América, ao destino convencional e medíocre a que primeiro tentara escapar. A Sport and a Pastime tem uma segunda parte aparentemente repetitiva, seguimos Dean e Anne-Marie, a rapariga por quem ele se apaixona, de hotel de província em hotel de província, noite após noite, em círculo, até que quando chegamos às últimas páginas entendemos que A Sport and a Pastime é um romance sobre a natureza e a fragilidade da felicidade, do veneno de sucumbir a convenções, abdicar de sonhos, abdicar de nós próprios, uma espécie de carta de resistência, tendo por cenário a beleza das pequenas cidades provinciais de França, intacta, espécie de sinal ao alto da potência da vida.

Luc Sante é um jornalista nascido na Bélgica que emigrou na infância para Nova Iorque e se radicou em Paris na década de 80. Em Novembro de 2015 publicou um livro intitulado The Other Paris: An Illustrated Journey through a City’s Poor and Bohemian …

Luc Sante é um jornalista nascido na Bélgica que emigrou na infância para Nova Iorque e se radicou em Paris na década de 80. Em Novembro de 2015 publicou um livro intitulado The Other Paris: An Illustrated Journey through a City’s Poor and Bohemian Past que a Paris Review, na entrevista feita ao autor, definiu como colossalmente sórdido. É um livro sobre os bairros de Paris mais afastados da circunferência imediata do Quartier Latin e do Boulevard Saint Michel. É de alguma forma um guia ilustrado sobre a formação da identidade contemporânea de Paris, particularmente concentrado nos séculos XVIII e XIX e nos bairros periféricos. The Other Paris é povoado de flânerie, personagens bizarras, ruas e cafés onde se deram os encontros e os acontecimentos mais estranhos. Um livro indispensável, não só porque amar Paris é indispensável, mas porque cada ano merece pelo menos um belíssimo livro sórdido.

Autumn de Ali Smith, o primeiro romance inglês do pós-Brexit, o que quer que isso queira dizer. No centro de Autumn está a amizade entre Elizabeth e David, um alemão emigrado em Inglaterra que carrega com ele a memória de um século. Autumn lança um …

Autumn de Ali Smith, o primeiro romance inglês do pós-Brexit, o que quer que isso queira dizer. No centro de Autumn está a amizade entre Elizabeth e David, um alemão emigrado em Inglaterra que carrega com ele a memória de um século. Autumn lança um olhar crítico à precariedade de Inglaterra para pensar no valor da arte, da fotografia, da cultura em criar pontes entre as pessoas, em treinar a empatia. É um livro fundamental sobre a ligação entre actos de decência básica, ausência de preconceito, beleza e amizade. Neste país tão amado, que parece à superfície estar condenado a virar-se para dentro, há aqui um voraz olhar para fora, acto sem o qual nunca estaremos exatamente vivos. Redescobrimos ainda aqui a arte das colagens de Pauline Boty. 

Within the Walls de Giorgio Bassani é um dos volumes da edição completa do Romanzo di Ferrara, presentemente a ser editado pela Penguin, nas brilhantes traduções de Jamie McKendrick. Bassani podia levar anos até dar um conto relativamente breve por …

Within the Walls de Giorgio Bassani é um dos volumes da edição completa do Romanzo di Ferrara, presentemente a ser editado pela Penguin, nas brilhantes traduções de Jamie McKendrick. Bassani podia levar anos até dar um conto relativamente breve por terminado, num desses processos de escrita que são afinal o que a expressão “o poema contínuo” pretende definir, a noção de uma obra nunca acabada, que continua a trabalhar no autor muito depois do ponto de publicação. O título é uma alusão ao facto de todas as histórias se passarem dentro dos muros de Ferrara. Escritas no pós-guerra, quase todas as histórias são marcadas pela memória violenta desse período. A vida de uma cidade de província que é uma epítome da história da Europa, da história do mundo. Num dos contos lê-se: “The truth is that the places where you have wept, where you’ve suffered, where you’ve had to find the many inner resources to keep hoping and resisting, are the ones you grow fondest of.” Assim Ferrara para Bassani. 

Bailey

6.30 em frente à tua porta
não sei ao certo como começou
talvez fosses madrugador por natureza
nenhum de nós faltava
nem mesmo
nos dias de chuva
caminhávamos juntos
até ao fim da rua
contavas-me como iam
as coisas no clube
a pressão da liderança
de como todos querem
algo de ti
os mais novos
são ambiciosos
estão mortinhos
por me ver fracassar
já não sou o mesmo de outros tempos

mas todos te respeitavam
até a Betsy
apesar da rivalidade
sempre suspeitei
que ela tinha
um fraquinho por ti
6.30 em frente à tua porta
vinhas ter comigo
eras um bom ouvinte
acho que estou para perder o emprego
e depois de escapar à ronda de redundancies
estou farto daquilo
acho que não fui feito para ser
animal de escritório

caminhavas ao meu lado
até ao fim da rua
exortavas
as virtudes da paciência
e voltavas para trás
ainda passo pela tua porta
todas as manhãs
já vai para um ano
que faltas
ao nosso encontro

Da utilidade e dos perigos da caricatura para a vida

Dada.jpg

A caricatura exagera os traços do objecto, verga os limites, rasga-os por vezes, introduzindo, assim, o risível, o ridículo no que representa. Neste sentido, diz José Gil, “A caricatura é como um monstro cultural”.

Mas deformar o significante ou o referente é útil para a vida porque acrescenta significados, enriquecendo o sentido do que é caricaturado (a Contra-Informação, e.g., ampliava os ângulos e os pontos interpretáveis das personagens).

Pelo contrário, ela é perigosa para a vida porque contamina com suplementos espúrios o significante ou o referente, mostrando-o disforme e volátil, numa palavra: sem valor (nas guerras os inimigos também se combatem assim). Retirar a seriedade ao objecto fá-lo implodir ou torna-o irrelevante, a não ser quando ele próprio se apresenta desde a origem constituído no e para o anedótico (por exemplo, o movimento DADA). Na cultura do sério, cheia de quantificações e de moralidade, a introdução da irrisão desbarata a estrutura que a mantém ordenada.

Desta forma, a caricatura é um pharmakon (dispositivo linguístico grego para a ambiguidade). E não vale a pena conjurar a sua negatividade, já que ela se aloja na própria utilidade (devíamos ter mais presente a metafísica do yin/yang). Por outro lado, o impasse político-social que aprisiona actualmente a Europa (com uma brutal crise demográfica, de que quase todas as outras são, parece-me, consequência) pode levar ao recrudescer da seriedade mortífera (necessariamente conservadora e dogmática, é impossível ser sério sem acreditar na Verdade e numa escala de valores que polariza simploriamente o bem e o mal, juntando-lhe as respectivas interdições/permissões e punições/recompensas). Revejam os semblantes cadavéricos dos facínoras nazis (e também, claro, os risinhos cínicos). Apesar de tudo, se controlarmos os riscos, a caricatura será uma das poucas formas de, numa época niilista como a nossa, combater a rigidez conservadora, sobretudo a intolerância moral que parece pronta a conquistar novamente a Europa, a começar pelo Leste.

Livros do ano (passado): Reiner Stach: Kafka

"Even today, a biography of Franz Kafka that bore the title A Life would seem ironic..."

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Com um total de 1832 páginas dispersas por três volumes, Reiner Stach tornou-se o autor da mais completa e autorizada biografia de Kafka, cuja tradução em língua inglesa foi publicada pela Princeton University Press entre 2013 e 2016. A Princeton University Press não funciona como a maior parte das editoras de textos académicos do mundo anglo-saxónico. Num modelo semelhante a um punhado de outras editoras ligadas a grandes universidades dos Estados Unidos, a PUP edita os seus livros utilizando os fundos de um endowment, um subsídio se assim lhe quisermos chamar, o que significa que esta editora escolhe muito criteriosamente o que publica, publicando muito menos do que as casas editoriais que competem nos mesmos mercados. Significa também que não existe necessariamente pressão para gerar lucro, porque este não é necessariamente o fim para o qual esta casa editorial existe. Não faço a mínima ideia de quem seja o(/a) editor(a) das humanidades da PUP. Não tenho qualquer ilusão de que se possa imaginar esta pessoa como alguém imune às pressões de justificar perante um conselho editorial as suas decisões em termos financeiros, nem que em editoras que funcionem sob a pressão de gerar lucro estes projectos não existam também, mediante um certo compromisso. Nem estou com isto a dizer que o que gera lucro tem necessariamente falta de qualidade, ou que o que o não gera é necessariamente bom, belo e justo. A existência destes volumes cor-de-laranja avermelhado, no entanto, pode dar-me as expectativas erradas, mas faz-me pensar mais em alguém como Aldo Manuzio do que alguém que confunda o trabalho de editor com uma extensão do serviço de apoio ao cliente. Não sei quem é o editor das humanidades da PUP mas gostava de lhe apertar a mão. Quero com isto sublinhar a minha absoluta apreciação pela singularidade do que reconheço pode não ter sido exactamente um investimento. O leitor romântico em mim fantasia que algumas casas editoriais deviam mesmo funcionar nos mesmos moldes de um sistema nacional de educação ou de um sistema nacional de saúde, com uma espécie de compromisso tácito entre o governo e os cidadãos, de que é aceitável que a finalidade de certas instituições não seja gerar lucro, mas educar os cidadãos, melhorar a qualidade de vida, ajudar a elevar o nível do debate democrático. Alguns livros darão sempre prejuízo mas há um valor imaterial na sua existência. Tenho uma dívida de gratidão para com esta pessoa que resolveu que fazia sentido editar Reiner Stach em inglês. Não sabendo ler alemão, nunca teria tido a mínima hipótese de ler os dois últimos volumes da biografia de Kafka escrita por Reiner Stach se não fosse pelo que imagino só pode ter sido uma combinação de idealismo e uma ausência de receio perante o risco de prejuízo. Não li ainda o primeiro volume porque disputas que envolvem os herdeiros de Max Brod atrasaram substancialmente a pesquisa de Reiner Stach para a primeira parte da biografia, que acabou por sair no final de 2016.

Reiner Stach sumariou a extensão do desafio de escrever uma biografia de Kafka numa frase que aparece na introdução ao segundo volume: “Even today, a biography of Franz Kafka that bore the title A Life would seem ironic.” Um pouco mais adiante RS elabora sobre este ponto: “If a person who was so inconspicuous in his social surroundings was capable of generating a shock wave in the history of world culture, the echoes of which still resound today, it seems inevitable that we need to regard life and work as incompatible worlds, each with its own set of laws.” No cerne de Kafka (o conjunto dos livros mas também o autor) está esta tensão. Um crítico notava que, paradoxalmente, Kafka teve uma das vidas mais bem documentadas do século XX. RS dá-nos os números: “...Kafka generated about 3,400 pages of diary entries and literary fragments...Virtually all of Kafka’s approximately 1,500 letters that were preserved have been published...”

Há um tópico na literatura grega antiga que diz que as gerações dos homens são como as folhas, que florescem e fenecem reflectindo o arco das estações do ano e que desaparecendo dão lugar a novas. Aparece em Homero primeiro e depois em Mimnermo. Enquanto escritor, a actividade de Kafka termina num momento de profunda cisão, pouco antes de o terror da Segunda Guerra se instaurar e a meio, Kafka viveu metade de uma vida, morreu quando normalmente se chega ao auge. Das muitas coisas que a biografia de RS é, aquela que é talvez mais relevante prende-se com facto de estes livros demonstrarem como esta vida de um judeu de Praga que viveu mais ou menos no anonimato, que trabalhava como advogado num instituto público de seguros, que publicou pouco durante a vida e ironizava com a sua falta de sucesso comercial (na livraria tal havia onze livros meus, eu comprei dez, matava para saber quem comprou o décimo primeiro), que tinha uma irmã favorita que dava pelo diminutivo de Ottla, que passava horas a sonhar acordado num sofá, que em Munich fez uma leitura pública e desastrosa da própria obra, que invejava alguns dos escritores seus contemporâneos, que esteve noivo duas vezes da mesma mulher e nunca se casou com ela, que quis combater na Primeira Guerra e o chefe não o deixou ir, que gostava de remar e de trabalhar a terra, que amava o teatro e tinha amigos actores, que se apaixonou por uma jornalista que era uma mulher casada e formidável, chamada Milena Jesenská, Kafka, para quem um dos últimos encontros é com um grupo de raparigas a quem ele sorri, e elas olham para ele apelidando-o com desdém de judeu, é uma das vidas essenciais do século XX, talvez a vida essencial do século XX. Não apenas por causa da dimensão da aventura intelectual do seu percurso de escritor, algo que, em qualquer dos casos, é difícil de documentar e que o trabalho de RS descreve incrivelmente bem, mas porque há toda uma dimensão da história do século XX que é personificada no percurso de Kafka.

O que se segue é uma selecção de alguns excertos desta biografia monumental.

(Sobre o barulho constante na casa dos Kafka) “Kafka called this prose piece “Great Noise”. He jotted it down in his diary on November 5, 1911, and about a year later published it in a Prague literary journal for the “public flogging of my family,” since the circumstances depicted in it had not changed in the slightest. It is unlikely that Hermann Kafka ever saw with his own eyes the mark that his trailing robe left in German literature.

(Do diário, sobre Werfel, um jovem poeta amigo de Max Brod) I hate W., not because I envy him, but I envy him too. He is healthy, young, and wealthy, everything that I am not. Besides, he has written very good things early and effortlessly, using his sense of music; he has the happiest life behind him and before him; I work with weights I cannot get rid of, and I am completely detached from music.

(Sobre a leitura pública de um texto sobre Yiddish) Kafka caught his listeners unawares, and played an aggressive game with their expectations, alternately confirming and demolishing them. A reader would be hard pressed to find a comparable example among Kafka’s contemporaries of such a modern, reflective intensity.

(Sobre literatura, de uma carta a Felice Bauer) Not even the part about the “artistic bent” is true; in fact it is the most erroneous of all these erroneous statements. I have no literary interests; I am made of literature; I am nothing else and cannot be anything else.

(Sobre o início da Primeira Guerra Mundial) On August 2, 1914, just a few hours after the Great War began, Kafka walked away from the cheering, the special news supplements, the singing, announcements, addresses, rumours, hoarding, parades, porters hurrying by, horses clopping, rolling gun carriages, sparkling uniforms, freshly ironed flags, and weeping girls. The diary entry with which he turned his back on the world was, “Germany has declared war on Russia – Swimming in the afternoon.”

(Kafka recebe correio de um fã a propósito de A Metamorfose) Now [my cousins] they’ve written to me. They want me to explain the story to them because I am the one with a doctorate in the family. But I am baffled.
Sir! I spent months fighting out with the Russians in the trenches without flinching, but if my reputation among my cousins went to hell, I would not be able to bear it.

(Depois de uma leitura em Munich, nota de Kafka sobre o juízo de Rilke) After some extremely kind remarks about “The Stoker,” he [Rilke] went on to say that neither “The Metamorphosis” nor “In the penal colony” had achieved the same effect. This observation may not be easy to understand, but it is perceptive.

(Sobre Milena Jesenská) Unlike Felice Bauer or Julie Wohryzek, her personality was stronger than Kafka’s. It is conceivable that he could have molded himself to Milena, but it is not conceivable that she would have followed him into his world…Her experiences went well beyond the risqué rumors in Prague and could not be reconciled even with the vague idea of Bohemian libertinism. Two abortions. Two suicide attempts. Shoplifting and document forgery. A lesbian relationship. Drug abuse. Work as a baggage handler. Cohabitation with her husband’s mistress. It was thought she was turning the world order on its head, both economically and morally.

(Sobre o fim da época de Kafka) The fate of many people he was close to was sealed, and countless traces of Kafka’s life that were left behind in the collective memory were wiped out. Letters, photographs, literary estates, even entire archives were destroyed. The violence that gripped the era often made it impossible to identify what was lost, and even to ascertain that it was lost. If Kafka had had the double good fortune of surviving tuberculosis and then a concentration camp, he would not have recognized anything left after the end of this catastrophic blow to civilization. His world no longer exists. Only his language lives.

o puto da Bica

bica.jpeg

emborrachado
com um maço de cigarilhas na mão
deu-se-nos a conhecer à porta da Casa Liège
“sou primo do Salgado” disse o velhote
“mas não vão pr'aí bradá-lo aos 4 ventos”
“é melhor não” respondi
nunca o vi sóbrio
e pensando bem
nunca o vi com um copo vazio -
de vez em vez entornava
um cochito ou outro -
nem tão-pouco o vi beber de empino
“eu sou o puto da Bica” respondeu
quando lhe perguntámos pelo nome
“toda a gente daqui me conhece
por puto da Bica”
puxou a cigarrilha até aos pulmões e num minuto
lá nos disse que se chamava Carlos
a minha amiga dava-lhe trela
um pouco mais de dois dedos de conversa
enquanto eu os ouvia com atenção
disfarçada
fazemos uma boa parceria
ali sentados nos degraus da Bica
somos dois bons comparsas
o equilíbrio certo
entre silêncio e rumor
entre euforia e disforia
entre vida e morte
“fui ter com o meu filho a Vilamoura”, contava-lhe a certa altura
“e já agora, deixe-me que lhe diga, querida,
os pastéis de nata ali não valem uma beata”
“pode dar-me uma cigarrilha” perguntei
“meu querido, este é o tabaco mais reles que
podes fumar”, respondeu mostrando-me os Chesterfield
“bom, ou isso ou o pastel”, retorqui
e lá me deu a cigarrilha e
meia dúzia de gotas de vinho branco
nas calças
“depois de uns quantos dias lá em baixo”, prosseguiu
“não tinha cheta para voltar,
e como o meu filho trabalha no casino
e percebe como tudo funciona ali dentro
disse-me «ouve, velho, é aquela a máquina que
te vai levar de volta a casa»,
e, meus queridos, parece mentira
mas aqui me têm,
venci a maldita da máquina”
o ascensor travava palmos abaixo de nós
num resmungo preguiçoso de Julho
recheado de turistas até às costuras
e o guarda-freios no derradeiro sisífico esforço
“isto é que é uma maravilha” disse o puto da Bica
olhando embasbacado para as estrangeiras que desciam do ascensor
com o copo inclinado em ameaça de
verter o vinho a qualquer instante
é um talento raro equilibrar ao mesmo tempo
a embriaguez e a volúpia
sem fraquejar
e nós cedemos sempre