No tempo do liceu, onde nas aulas de literatura éramos ensinados a escrever comentários de texto, o que, olhando para trás, pode bem ser interpretado como um aborrecido exercício preparatório, espécie de imitação paródica, para a subserviência a todas as autoridades a que mais tarde seremos convidados a conformar-nos (obedecer ao texto, depois ao resto), encontrei-me com o romance de Umberto Eco, O Nome da Rosa. Isso aconteceu num Inverno particularmente chuvoso, em que adoeci intermitentemente com uma sucessão de gripes mal curadas e portanto passei boa parte do Inverno a ler.
A minha descoberta desse livro de Eco aconteceu numa altura em que achava que toda a história que importava era Rómulo e Remo, Cícero e as Filípicas, os dois triunviratos e Augusto, e por fim, cereja no topo, a instituição do Império Romano, não sem antes o coração acelerar com o golpe dramático do suicídio de António e Cleópatra, no meu entendimento anacrónico a primeira lição sobre a dignidade que sobra aos derrotados em sistemas na iminência de se tornarem radicalmente autocráticos, sistemas cuja sobrevivência se garante por, e assenta em, como não?, populismo. A notícia do saque de Roma por Alarico, a chegada dos bárbaros, o fim do Império, numa das aulas do último ano de latim no liceu, foi um golpe difícil de suportar, a decadência do fim de uma era na história da humanidade a imitar a decadência do fim de uma época da minha vida.
É fácil para um adolescente com uma imaginação inquieta apaixonar-se pela longa sucessão de intrigas políticas que é a história do Império Romano. Depois desse esplendor, chegar a uma ideia da Idade Média enquanto tempo de uma aventura ao mesmo tempo intelectual e espiritual, para qualquer adolescente previamente exposto a Catulo, Horácio, Cícero e Vergílio, pode ser algo bem mais desafiante. Na minha imaginação ignorante, isto continuava a ser um facto: nenhum santo deixou para trás uma linha que pudesse rivalizar com a beleza de ibant obscuri sola sub nocte per umbram, e as Confissões só chegaram muito mais tarde. Tal como só um pouco mais tarde me chegou a ideia de que a forma como nos entendemos enquanto Europeus, enquanto herdeiros de uma cultura comum, que une e define, e por fim separa, os países de um continente heterogéneo e fragmentado, tem as suas fundações nos processos culturais que estão em jogo na continuidade entre estes dois períodos, que de alguma forma serão reconfigurados e reinventados pela imaginação dos Renascentistas (incluindo, de novo, uma demonização quase adolescente da Idade Média em detrimento da Antiguidade Clássica). Eco falou sobre o fascínio da Idade Média numa entrevista à Paris Review (The Art of Fiction n.º 197):
Why do you fall in love? If I had to explain it, I would say that it’s because the period is exactly the opposite of the way people imagine it. To me, they were not the Dark Ages. They were a luminous time, the fertile soil out of which would spring the Renaissance. A period of chaotic and effervescent transition—the birth of the modern city, of the banking system, of the university, of our modern idea of Europe, with its languages, nations, and cultures.
As personagens de Eco em O Nome da Rosa são, em certo sentido, herdeiras das tensões entre esses mundos, e foi aí que eu primeiro percebi essa continuidade. Essas personagens fantásticas que são capazes de descrever um homem e um quadrúpede pelas pegadas que estes deixam na neve são, na totalidade dos seus percursos, representativas de um tipo de inteligência ao mesmo tempo medieval, em que os contextos éticos se tornam intimamente ligados a um conceito mais profundo de viagem espiritual, e são também, quase paradoxalmente, herdeiras do pragmatismo dos Romanos. Descobrir Eco é, neste sentido, um exercício de aprendizagem sobre o diálogo constante que existe entre o passado e o presente, um exercício sobre a profundidade do nosso próprio tempo no mundo. É também um exercício sobre o que outro autor italiano, Pietro Citati, a propósito do Ulisses de Homero, apelidou de "a mente colorida", numa referência à inteligência complexa, cheia de energia e de ardis do herói grego.
Uma das minhas citações favoritas de Walter Benjamin pode ser lida no fim de O Anjo da História, em que se diz que existe um acordo secreto entre as gerações passadas e a nossa, que é assim que sabemos que fomos esperados nesta terra, e que entre nós e as gerações que nos precederam está vivo o acordo de uma ténue força messiânica, a que o passado tem direito. Isto explica porque é que os mortos precisam dos vivos para continuarem vivos. O romance de Eco, que cruza a Idade Média com o argumento de um policial, pode ser entendido como uma versão da força desta ideia.
Aprende-se mais tarde: o Inverno é um bom tempo para ler Santo Agostinho, São Tomás de Aquino, e para romances policiais passados na Idade Média, subcategoria especial do género “romance policial histórico,” que viria a ser preenchida, e talvez totalmente inventada, por Eco para mim, como para milhares de leitores antes de mim, nesse Inverno. É difícil de descrever a adequação que existe entre noites de Inverno e um livro com um enredo intricado, adequação essa prolongada pela solidão da luz de um candeeiro numa mesa de cabeceira, chá, laranjas e febre.
O Nome da Rosa é um romance bom para gente com uma imaginação febril. Se acreditarmos no que Eco disse numa entrevista ao The Guardian em 2011, a propósito do sucesso menor do mais comercial do seus romances, muito mais pessoas descobriram que gostavam de ser desafiadas por um romance para literatos com especial interesse na Idade Média do que Eco talvez alguma vez tivesse esperado. Nesse romance, Eco escreve algures que não nos devemos preocupar com o que os livros dizem mas com o que eles significam. Na altura em que percebi que queria passar o resto da minha vida a estudar literatura e tudo o que me diziam acerca dela é que o que importa para ter uma boa nota no exame é prestar atenção ao que se diz e ao como é dito, esta frase fez toda a diferença. Introduziu o tipo de suspeita fundamental que acaba por decidir que tipo de inteligência é a de Adso de Melk em O Nome da Rosa. Sobre o papel da suspeita (e do cómico) nas nossas vidas, vale a pena lembrar de novo a mesma entrevista de Eco, citada acima:
And I believe that in The Name of the Rose, I did, in narrative form, flesh out a certain theory of the comic. The comic as a critical way of undercutting fanaticism. A diabolical shade of suspicion behind every proclamation of truth.
E nessa altura ainda estava longe a alegria de ler o Diário Mínimo. Um dos ensaios desse livro ficcionaliza o relatório de um editor que se vê no papel de avaliar o potencial da Bíblia enquanto eventual bestseller. Os melhores livros que vamos ler deixam-nos redescobrir as coisas a partir dos ângulos mais inesperados, alimentam a nossa imaginação durante dias, durante os mais longos Invernos, deixam-nos perceber as formas em que a nossa curiosidade está viva e é um instrumento para sobreviver a rotinas, a gestos repetidos quotidianamente, que de outra forma nos estupidificariam, deixando-nos um pouco menos humanos. Bons livros permitem-nos continuar a estranhar a realidade. Estamos mais vivos com uma imaginação melhor. Para terminar quase na forma de um silogismo aristotélico, o que Eco apreciaria, este talvez seja o melhor epitáfio: a nossa imaginação melhora com Umberto Eco.