Hey, that's no way to say goodbye: Leonard Cohen (1934-2016)

Leonard Cohen por Dominique Isserman, Jardins do Luxemburgo, 1984. 

Leonard Cohen por Dominique Isserman, Jardins do Luxemburgo, 1984. 

Nós achávamos que esta semana não tinha por onde piorar – ingenuidade nossa. Algumas das madrugadas deste ano têm sido insuportáveis. Acordar para um Brexit ou para a eleição de um Donald Trump são eventos que nos lembram que vivemos num mundo em que todo um espectro de parvoíce perigosa pode ganhar espaço no instante em que o pulso da multidão se alinha com as palavras oportunistas dos demagogos e dos populistas. A propósito disto, e porque é agora que é crucial não parar de pensar, queríamos convidar-vos a ir ler as palavras de Masha Gessen na NYRB Daily e de David Remnick na The New Yorker. E, sobretudo, a não sucumbir ao pessimismo, ao cinismo, a formas de narcisismo que exalam uma imagem de activismo, patriotismo (nacionalismo?) e compromisso cívico mas que escondem um vazio enorme e um vazio preguiçoso, de gentileza em relação aos restantes, de memória histórica, política e cívica. O mesmo vazio mental e moral que em comícios aparece para gritar em favor de todos os muros que nos permitam tratar certos grupos de pessoas como se elas o não fossem ou fossem menos do que isso, porque, no fundo, é por causa delas que os nossos países não podem ser grandes outra vez. Porque a civilização dá um passo atrás com o fardo do homem branco às costas e, ainda assim, continua a ser difícil de acreditar que não haja um número considerável de eleitores afectados pela crise, desempregados por causa da recessão, que nunca poria o seu voto atrás de uma mensagem racista, sexista, anti-democrática, e no topo de tudo isto, profundamente inestética. Não há nada de novo em fenómenos como o Brexit ou Donald Trump. Mesmo para aqueles que queiram ver nestes acontecimentos uma tentativa de ruptura total com a ordem vigente, eles são na verdade bastante velhos. Mas é agora mais do que nunca o momento em que a nossa solidariedade e a nossa empatia são devidas e devem ser utilizadas o mais generosamente possível.

Leonard Cohen em Hidra. Anos 60. 

Leonard Cohen em Hidra. Anos 60. 

            Talvez seja esta a melhor semana para revisitar as canções de Leonard Cohen. Elas carregam com elas a marca de um mundo habitado por poetas errantes, amantes perdidos e reencontrados, ruas de Nova Iorque no Inverno onde se pode ouvir música durante todo o serão, poemas de Kavafis mudados tão cuidadosamente para que só a presença de uma amante se desvaneça com a perfeição de um deus antigo que se prepara para partir, o optimismo de um activismo que encerra nele a força com que se deve sonhar acerca do futuro, hotéis míticos, famosos casacos azuis, uma perturbação que desaparece do olhar e que achámos que estava lá para ficar, a intuição de que Suzanne é meio doida, mas é mesmo por isso que queremos estar aqui, e a certeza de todas as acções inúteis encerradas pelos nossos gestos. Às canções de Leonard Cohen pertencem a beleza do mundo e da poesia. Elas surgem envoltas numa espiritualidade que resulta até para quem não é religioso. Tão antigas e tão novas que regridem até àquela frase favorita de Walter Benjamin n’ O Anjo da História sobre termos sido esperados nesta terra. E isto acontece não só mas também porque as canções de Leonard Cohen são como os melhores livros, um treino para a nossa empatia, que ainda nos podem surpreender mesmo depois de ouvidas mil vezes. E elas servem também para que não nos esqueçamos que os nossos dias seriam outra coisa sem tudo isso – mais pobres. Hey, that’s no way to say goodbye. 

André Jorge (1945-2016)

Factos da vida de André Jorge: editor da Livros Cotovia, amante de livros e de gatos. Um breve editorial em jeito de obrigada. 

Factos da vida de André Jorge: editor da Livros Cotovia, amante de livros e de gatos. Um breve editorial em jeito de obrigada. 

Se fôssemos muito optimistas, talvez pudéssemos dizer que uma casa editorial podia dar em espelho perfeito da vida cultural de um país. Os livros presentes nesse catálogo surgiriam então não apenas como uma resposta às procuras vorazes impostas pelo percurso intelectual de cada um, mas também como gestos de perfeita adequação às necessidades culturais de um país inteiro. Na versão mais pessimista – Portugal, país ignorante que não quer saber de livros para nada –, não teríamos outra hipótese que não classificar uma tentativa que encaixasse nesta descrição como ocorrendo no campo da pura megalomania. Mas é verdade que a existência de determinado livro, o facto de ele poder ser avistado, talvez numa livraria para os lados da Rua Nova da Trindade, habitada por uma gata preta, pode ser suficiente para criar num leitor a necessidade dele, mesmo quando se está no princípio e não se sabe nada de livros. Às vezes a vida de uma pessoa confunde-se com os seus projectos. Editor de Homero, Pavese, Ovídio, Milton, Walser, Horácio, Catulo, Ibsen, Brecht, Christa Wolf, Virginia Woolf, Rohmer, e de uma efémera revista. Talvez seja esse o melhor epitáfio. As dívidas que os vivos reconhecem ter para com os mortos, mesmo aqueles com quem nunca se cruzaram, são também uma maneira de celebrar a vida destes. Certas escadas não têm mesmo degraus. André Jorge (1945-2016). 


Sublinhados noutros lugares:

Obituário, Facebook, Livros Cotovia.
Ricardo Domeneck, "Morreu o editor português André Jorge, amigo de poetas", DW
Joana Amaral Cardoso e Inês Nadas, Morreu André Jorge, o editor que era a Cotovia
Entrevista de Alexandra Lucas Coelho, "Sou feito do avesso", 2008, Público:

Quem gostava de editar?
Alguém que certamente não me queria como editor, o Lobo Antunes. Gosto bastante.
...

 

Uma diabólica sombra de suspeita para cada proclamação de verdade: Umberto Eco (1932-2016)

No tempo do liceu, onde nas aulas de literatura éramos ensinados a escrever comentários de texto, o que, olhando para trás, pode bem ser interpretado como um aborrecido exercício preparatório, espécie de imitação paródica, para a subserviência a todas as autoridades a que mais tarde seremos convidados a conformar-nos (obedecer ao texto, depois ao resto), encontrei-me com o romance de Umberto Eco, O Nome da Rosa. Isso aconteceu num Inverno particularmente chuvoso, em que adoeci intermitentemente com uma sucessão de gripes mal curadas e portanto passei boa parte do Inverno a ler.

A minha descoberta desse livro de Eco aconteceu numa altura em que achava que toda a história que importava era Rómulo e Remo, Cícero e as Filípicas, os dois triunviratos e Augusto, e por fim, cereja no topo, a instituição do Império Romano, não sem antes o coração acelerar com o golpe dramático do suicídio de António e Cleópatra, no meu entendimento anacrónico a primeira lição sobre a dignidade que sobra aos derrotados em sistemas na iminência de se tornarem radicalmente autocráticos, sistemas cuja sobrevivência se garante por, e assenta em, como não?, populismo. A notícia do saque de Roma por Alarico, a chegada dos bárbaros, o fim do Império, numa das aulas do último ano de latim no liceu, foi um golpe difícil de suportar, a decadência do fim de uma era na história da humanidade a imitar a decadência do fim de uma época da minha vida.

É fácil para um adolescente com uma imaginação inquieta apaixonar-se pela longa sucessão de intrigas políticas que é a história do Império Romano. Depois desse esplendor, chegar a uma ideia da Idade Média enquanto tempo de uma aventura ao mesmo tempo intelectual e espiritual, para qualquer adolescente previamente exposto a Catulo, Horácio, Cícero e Vergílio, pode ser algo bem mais desafiante. Na minha imaginação ignorante, isto continuava a ser um facto: nenhum santo deixou para trás uma linha que pudesse rivalizar com a beleza de ibant obscuri sola sub nocte per umbram, e as Confissões só chegaram muito mais tarde. Tal como só um pouco mais tarde me chegou a ideia de que a forma como nos entendemos enquanto Europeus, enquanto herdeiros de uma cultura comum, que une e define, e por fim separa, os países de um continente heterogéneo e fragmentado, tem as suas fundações nos processos culturais que estão em jogo na continuidade entre estes dois períodos, que de alguma forma serão reconfigurados e reinventados pela imaginação dos Renascentistas (incluindo, de novo, uma demonização quase adolescente da Idade Média em detrimento da Antiguidade Clássica). Eco falou sobre o fascínio da Idade Média numa entrevista à Paris Review (The Art of Fiction n.º 197):

Why do you fall in love? If I had to explain it, I would say that it’s because the period is exactly the opposite of the way people imagine it. To me, they were not the Dark Ages. They were a luminous time, the fertile soil out of which would spring the Renaissance. A period of chaotic and effervescent transition—the birth of the modern city, of the banking system, of the university, of our modern idea of Europe, with its languages, nations, and cultures.

As personagens de Eco em O Nome da Rosa são, em certo sentido, herdeiras das tensões entre esses mundos, e foi aí que eu primeiro percebi essa continuidade. Essas personagens fantásticas que são capazes de descrever um homem e um quadrúpede pelas pegadas que estes deixam na neve são, na totalidade dos seus percursos, representativas de um tipo de inteligência ao mesmo tempo medieval, em que os contextos éticos se tornam intimamente ligados a um conceito mais profundo de viagem espiritual, e são também, quase paradoxalmente, herdeiras do pragmatismo dos Romanos. Descobrir Eco é, neste sentido, um exercício de aprendizagem sobre o diálogo constante que existe entre o passado e o presente, um exercício sobre a profundidade do nosso próprio tempo no mundo. É também um exercício sobre o que outro autor italiano, Pietro Citati, a propósito do Ulisses de Homero, apelidou de "a mente colorida", numa referência à inteligência complexa, cheia de energia e de ardis do herói grego. 

Uma das minhas citações favoritas de Walter Benjamin pode ser lida no fim de O Anjo da História, em que se diz que existe um acordo secreto entre as gerações passadas e a nossa, que é assim que sabemos que fomos esperados nesta terra, e que entre nós e as gerações que nos precederam está vivo o acordo de uma ténue força messiânica, a que o passado tem direito. Isto explica porque é que os mortos precisam dos vivos para continuarem vivos. O romance de Eco, que cruza a Idade Média com o argumento de um policial, pode ser entendido como uma versão da força desta ideia.

Aprende-se mais tarde: o Inverno é um bom tempo para ler Santo Agostinho, São Tomás de Aquino, e para romances policiais passados na Idade Média, subcategoria especial do género “romance policial histórico,” que viria a ser preenchida, e talvez  totalmente inventada, por Eco para mim, como para milhares de leitores antes de mim, nesse Inverno. É difícil de descrever a adequação que existe entre noites de Inverno e um livro com um enredo intricado, adequação essa prolongada pela solidão da luz de um candeeiro numa mesa de cabeceira, chá, laranjas e febre.

O Nome da Rosa é um romance bom para gente com uma imaginação febril. Se acreditarmos no que Eco disse numa entrevista ao The Guardian em 2011, a propósito do sucesso menor do mais comercial do seus romances, muito mais pessoas descobriram que gostavam de ser desafiadas por um romance para literatos com especial interesse na Idade Média do que Eco talvez alguma vez tivesse esperado. Nesse romance, Eco escreve algures que não nos devemos preocupar com o que os livros dizem mas com o que eles significam. Na altura em que percebi que queria passar o resto da minha vida a estudar literatura e tudo o que me diziam acerca dela é que o que importa para ter uma boa nota no exame é prestar atenção ao que se diz e ao como é dito, esta frase fez toda a diferença. Introduziu o tipo de suspeita fundamental que acaba por decidir que tipo de inteligência é a de Adso de Melk em O Nome da Rosa. Sobre o papel da suspeita (e do cómico) nas nossas vidas, vale a pena lembrar de novo a mesma entrevista de Eco, citada acima:

And I believe that in The Name of the Rose, I did, in narrative form, flesh out a certain theory of the comic. The comic as a critical way of undercutting fanaticism. A diabolical shade of suspicion behind every proclamation of truth.

E nessa altura ainda estava longe a alegria de ler o Diário Mínimo. Um dos ensaios desse livro ficcionaliza o relatório de um editor que se vê no papel de avaliar o potencial da Bíblia enquanto eventual bestseller. Os melhores livros que vamos ler deixam-nos redescobrir as coisas a partir dos ângulos mais inesperados, alimentam a nossa imaginação durante dias, durante os mais longos Invernos, deixam-nos perceber as formas em que a nossa curiosidade está viva e é um instrumento para sobreviver a rotinas, a gestos repetidos quotidianamente, que de outra forma nos estupidificariam, deixando-nos um pouco menos humanos. Bons livros permitem-nos continuar a estranhar a realidade. Estamos mais vivos com uma imaginação melhor. Para terminar quase na forma de um silogismo aristotélico, o que Eco apreciaria, este talvez seja o melhor epitáfio: a nossa imaginação melhora com Umberto Eco. 


Mais sobre Umberto Eco:

Umberto Eco, The Art of Fiction n.º 197The Paris Review. 

Umberto Eco, Ur-FascismThe New York Review of Books. 

Umberto Eco in Ten Quotes, The Guardian. 

People are Tired of Simple Things, entrevista ao The Guardian. 

A Guide to Thesis Writing that is a Guide to Life, New Yorker. 

Umberto Eco, Guardian Live Event. 

Umberto Eco: The Name of the Rose, World Book Club, BBC World Service

Obituário, Corriere della Sera.

Herberto Helder

Funchal 23/11/1930 - Cascais 23/03/2015

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PREFÁCIO

 

Falemos de casas, do sagaz exercício de um poder
tão firme e silencioso como só houve
no tempo mais antigo.
Estes são os arquitectos, aqueles que vão morrer,
sorrindo com ironia e doçura no fundo
de um alto segredo que os restitui à lama.
De doces mãos irreprimíveis.
— Sobre os meses, sonhando nas últimas chuvas,
as casas encontram seu inocente jeito de durar contra
a boca subtil rodeada em cima pela treva das palavras.

Digamos que descobrimos amoras, a corrente oculta
do gosto, o entusiasmo do mundo.
Descobrimos corpos de gente que se protege e sorve, e o silêncio
admirável das fontes —
pensamentos nas pedras de alguma coisa celeste
como fogo exemplar.
Digamos que dormimos nas casas, e vemos as musas
um pouco inclinadas para nós como estreitas e erguidas flores
tenebrosas, e temos memória
e absorvente melancolia
e atenção às portas sobre a extinção dos dias altos.

Estas são as casas. E se vamos morrer nós mesmos,
espantamo-nos um pouco, e muito, com tais arquitectos
que não viram as torrentes infindáveis
das rosas, ou as águas permanentes,
ou um sinal de eternidade espalhado nos corações
rápidos.
— Que fizeram estes arquitectos destas casas, eles que vagabundearam
pelos muitos sentidos dos meses,
dizendo: aqui fica uma casa, aqui outra, aqui outra,
para que se faça uma ordem, uma duração,
uma beleza contra a força divina?

Alguém trouxera cavalos, descendo os caminhos da montanha.
Alguém viera do mar.
Alguém chegara do estrangeiro, coberto de pó.
Alguém lera livros, poemas, profecias, mandamentos,
inspirações.
                  — Estas casas serão destruídas.
Como um girassol, elaborado para a bebedeira, insistente
no seu casamento solar, assim
se esgotará cada casa, esbulhada de um fogo,
vergando a demorada cabeça para os rios misteriosos
da terra
onde os próprios arquitectos se desfazem com suas mãos
múltiplas, as caras ardendo nas velozes
iluminações.

Falemos de casas. É verão, outono,
nome profuso entre as paisagens inclinadas.
Traziam sal, os construtores
da alma, comportavam em si
restituidores deslumbramentos em presença da suspensão
de animais e estrelas,
imaginavam bem a pureza com homens e mulheres
ao lado uns dos outros, sorrindo enigmaticamente,
tocando uns nos outros —
comovidos, difíceis, dadivosos,
                           ardendo devagar.

Só um instante em cada primavera se encontravam
com o junquilho original,
arrefeciam o resto do ano, eram breves os mestres
da inspiração.
                        — E as casas levantavam-se
sobre as águas ao comprido do céu.
Mas casas, arquitectos, encantadas trocas de carne
doce e obsessiva — tudo isso
está longe da canção que era preciso escrever.

— E de tudo os espelhos são a invenção mais impura.

Falemos de casas, da morte. Casas são rosas
para cheirar muito cedo, ou à noite, quando a esperança
nos abandona para sempre.
Casas são rios diuturnos, nocturnos rios
celestes que fulguram lentamente
até uma baía fria — que talvez não exista,
como uma secreta eternidade.

Falemos de casas como quem fala da sua alma,
entre um incêndio,
junto ao modelo das searas,
na aprendizagem da paciência de vê-las erguer
e morrer com um pouco, um pouco
                                             de beleza.

In A Colher na Boca in Ofício Cantante, Assírio & Alvim, Lisboa, 2009


Na Enfermaria 6 é possível ler este "ensaio" de Miguel Cardoso sobre o poeta.