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Confesso que não me lembro da última vez em que te vi com os olhos,
Dez anos não são dez anos, são 10 vezes em que a neve derreteu
E 10 verões em que se achou impossível o seu regresso, foram noites
E piores manhãs, cada dia a nascer já mais gasto, o espelho uma
Memória que nos acorda para cada ano, não te reconheceria o sorriso,
Nós tão sérios na juventude, esperando o fim de décadas para finalmente
Dar razão à ilusão, enquanto se espera, os nomes apagam-se,
Só os sonhos ficam, as suas visitas inesperadas entre menos um dia e outra,
Ninguém me sonha como tu, a entrar naquela sala, levitando no soalho
De madeira com as tuas sapatilhas all star, até o sol encontrou o caminho
Para as janelas, ou alguém tinha acendido a luz, neste dia apagado,
Conto mais esquecimento que vontade, mais partidas que regressos,
Mais fomes que vidas, dez anos que não são dez anos, são cabelos
Que imitam a neve, olhos que reflectem o inverno, dedos demasiado curtos
Com profundidades anónimas gravadas na articulação obvia do fracasso,
Hoje até o Leonard Cohen morreu, os mortais sentem o paraíso cada vez mais
Distante, sentem-se mais longe de todos os reencontros possíveis com o amor,
Sentem-se mais neste mundo que passa para nada e é cada vez menos o que temos
Pena por não ser eterno, e dez anos são tantas eternidades perdidas.

Hey, that's no way to say goodbye: Leonard Cohen (1934-2016)

Leonard Cohen por Dominique Isserman, Jardins do Luxemburgo, 1984. 

Leonard Cohen por Dominique Isserman, Jardins do Luxemburgo, 1984. 

Nós achávamos que esta semana não tinha por onde piorar – ingenuidade nossa. Algumas das madrugadas deste ano têm sido insuportáveis. Acordar para um Brexit ou para a eleição de um Donald Trump são eventos que nos lembram que vivemos num mundo em que todo um espectro de parvoíce perigosa pode ganhar espaço no instante em que o pulso da multidão se alinha com as palavras oportunistas dos demagogos e dos populistas. A propósito disto, e porque é agora que é crucial não parar de pensar, queríamos convidar-vos a ir ler as palavras de Masha Gessen na NYRB Daily e de David Remnick na The New Yorker. E, sobretudo, a não sucumbir ao pessimismo, ao cinismo, a formas de narcisismo que exalam uma imagem de activismo, patriotismo (nacionalismo?) e compromisso cívico mas que escondem um vazio enorme e um vazio preguiçoso, de gentileza em relação aos restantes, de memória histórica, política e cívica. O mesmo vazio mental e moral que em comícios aparece para gritar em favor de todos os muros que nos permitam tratar certos grupos de pessoas como se elas o não fossem ou fossem menos do que isso, porque, no fundo, é por causa delas que os nossos países não podem ser grandes outra vez. Porque a civilização dá um passo atrás com o fardo do homem branco às costas e, ainda assim, continua a ser difícil de acreditar que não haja um número considerável de eleitores afectados pela crise, desempregados por causa da recessão, que nunca poria o seu voto atrás de uma mensagem racista, sexista, anti-democrática, e no topo de tudo isto, profundamente inestética. Não há nada de novo em fenómenos como o Brexit ou Donald Trump. Mesmo para aqueles que queiram ver nestes acontecimentos uma tentativa de ruptura total com a ordem vigente, eles são na verdade bastante velhos. Mas é agora mais do que nunca o momento em que a nossa solidariedade e a nossa empatia são devidas e devem ser utilizadas o mais generosamente possível.

Leonard Cohen em Hidra. Anos 60. 

Leonard Cohen em Hidra. Anos 60. 

            Talvez seja esta a melhor semana para revisitar as canções de Leonard Cohen. Elas carregam com elas a marca de um mundo habitado por poetas errantes, amantes perdidos e reencontrados, ruas de Nova Iorque no Inverno onde se pode ouvir música durante todo o serão, poemas de Kavafis mudados tão cuidadosamente para que só a presença de uma amante se desvaneça com a perfeição de um deus antigo que se prepara para partir, o optimismo de um activismo que encerra nele a força com que se deve sonhar acerca do futuro, hotéis míticos, famosos casacos azuis, uma perturbação que desaparece do olhar e que achámos que estava lá para ficar, a intuição de que Suzanne é meio doida, mas é mesmo por isso que queremos estar aqui, e a certeza de todas as acções inúteis encerradas pelos nossos gestos. Às canções de Leonard Cohen pertencem a beleza do mundo e da poesia. Elas surgem envoltas numa espiritualidade que resulta até para quem não é religioso. Tão antigas e tão novas que regridem até àquela frase favorita de Walter Benjamin n’ O Anjo da História sobre termos sido esperados nesta terra. E isto acontece não só mas também porque as canções de Leonard Cohen são como os melhores livros, um treino para a nossa empatia, que ainda nos podem surpreender mesmo depois de ouvidas mil vezes. E elas servem também para que não nos esqueçamos que os nossos dias seriam outra coisa sem tudo isso – mais pobres. Hey, that’s no way to say goodbye.