a partir de michael hofmann
olha gabriel
tão feroz a manhã
que de noite virás de novo a este quarto
com todos os frutos ainda nos bolsos
e para conto que me contes
uns quantos convencionais acordes
nem teus nem meus exactamente
que dedilharás com os dedos se puderes
mas com os dentes se tiver de ser
terra da mesma cinza que tu o meu corpo
afinal tão real e mortal como o teu
mas aí onde aterraste sem mais terror
do que esperar-te agora uma chuva de sapos
vinda como uma alguma peste bíblica
directamente do panamá
e todos caindo rápido aos teus pés
que é toda tua a humidade desse ar
a amplitude dessas avenidas uma coisa
tirada à bolonha de de chirico
tanto tuas como dele
mais todas as histórias que não me contarás
algumas praças e também a nostalgia do infinito
que é esta coisa secreta árvore
cujo fruto abre para as primaveras
anunciada por flores derrubando-se como penas
todos os sapos do panamá te esperam gabriel
e são as luzes vermelhas dos quartos
de onde vais e vens que te fazem pensar em de chirico
são as luzes que não te anunciam
que não são nem os archotes
que anunciam a chegada do rei agamémnon
nem os luzeiros de alguma tróia a arder na distância
mas a pequena destruição diária confinada às unhas
de por exemplo teres de caminhar todos os dias
para o trabalho com um pé torcido
que assim nunca melhorará
gabriel
olha que é quase meio dia num dia qualquer de junho
nas paisagens pós-industriais do século XXI
onde um exército de homens se arregimentou
com tanta paixão diante dos computadores
com este imperativo categórico
de trazer aos accionistas tanto lucro quanto possível
(porque é preciso ter um objectivo na vida
e olha como esta quieta ternura da rotina
tem dentes e afinal ferra tanto
quanto a minha mais feroz crueldade)
e onde como álvaro de campos
eu cantaria a sensualidade cosmopolita
de todas as facturas passadas por todas as casas comerciais
de todas as corporações do mundo
onde eu observaria em transe o selo a bater no papel
e o dedo passado pelo bigode do miguel da contabilidade
sentado mancamente três filas à frente da minha
este corpo que vai ao ginásio mas não se recorda
de como seria dançar um tango argentino
um tango argentino aqui e já
e tudo isto gabriel não seria a minha morte de tristeza
não fora saber de cor que fora da abstracção
existe o golpe da matéria cuja jurisdição é também
a mortalidade de um corpo
do teu do meu agora separados
por mais que meio continente
e a fala da minha desmesura
para a planície de um desmedido silêncio
como o crescimento do lucro das revistas científicas
está para o dos livros de filosofia
e eu olho-os de cima gabriel
a partir da janela do primeiro andar
e reacende-se no meu sangue a verdade simples
e bucólica e inquieta dos damascos
que um caeiro qualquer podia ter cantado
e acende-se no opressivo horizonte chuva a cântaros
nesta cidade onde vim para fazer o meu dinheiro
embora dia a dia convenhamos que isto esteja
algumas libras abaixo do que se pareça com ganhar a vida
e eu vejo-os enquanto eles entram e saem
do autocarro que os traz ao parque
como entraram e saíram antes
dos autocarros que os trouxeram à escola
e eles trabalham na sua rotina com amarga indiferença
eles estão nas páginas de marx
e não querendo ver tudo a negro
talvez também nos mais apaixonados
poemas de d h lawrence
tu gabriel
lembra-te do teu nome
que te foi dado por causa do anjo da anunciação
no momento em que a vida te tocou mais fundo
é dele ainda o florescimento de todos os meus frutos
o lugar para onde todos os versos pendem
até aquele escrito por o’neill que reza que não podias
ter ficado nesta cidade
nesta abjecta cidade comigo
de todos os homens o que mais te teria amado
nesta cidade mais um dos dormitórios do mundo
onde os homens por falta de imaginação e de revolta
por falta de amor e bom humor vieram recozer a depressão
gabriel
fora deste ritual de mesquinhez e nada
está tu teres-me dito que durante seis meses
tentaste amar bem um homem que não te quis
gabriel ao alto de pé na noite mesmo quando
não sabes para onde ir mesmo quando for só
um entrar demasiado rápido na escuridão
eu canto gabriel
como safo em mitilene
a tua marginalidade
a velocidade solitária do teu pulso
tu que no esplendor da tua ternura até sabes
como cair bem de joelhos à frente da destruição
Milton, 13 de Junho de 2018