No cais do Potomac, WV

Andar e molhar os pés na Virgínia Ocidental
e uma hora antes
andar e molhar os pés em Washington
a água estende-se
atravessa a cidade falsa de mármore branco
atravessa o cais mais próximo de Arlington
atravessa o limiar das ruas de Georgetown
atravessa o bar de whiskey com cem espelhos
atravessa a livraria repleta de mapas do século XIX
atravessa-me a mim
atravessa o meu corpo
colado à montra da padaria dos pescadores
que observa
os rolos de canela feitos na hora
queijo filadélfia branco e açúcar de cana
Os americanos chamam a isso topping
e só o Potomac fica indiferente
ao whiskey fumado de centeio
ao cheiro dos fritos das roulottes de corn dog
e ao topping do meu último pequeno almoço

No Harpers Ferry o cais do rio Shenandoah enternece
sobrevive sem os cadeados de amor
sem a proeza das trotinetes alugadas por uns minutos
através de uma app qualquer
o cais atrai milhares de insectos nocturnos
os insectos nocturnos conhecem bem o Shenandoah
os mesmos insectos dedicam a vida toda ao Potomac
às pedras lisas
aos poços de água parada
aos buracos entre os parafusos gastos da Key Bridge

A vida curta desse insectos
é um acto de amor rastejante
um topping entomológico
em cima do rio Potomac
até a baía de Chesapeake

O canto do fogo

Aos meus hóspedes de Piégon

 cavar um buraco
cobri-lo com galhos
andar devagar
assobiar
e cair enfim
nessa briga empedernida
são qualidades dignas
das próprias ficções
da lareira de Piégon
e da sua boca de fogo

uma câmara hipnótica
de um desejo irrefreável
uma reserva natural onde
as labaredas azuis e amarelas
acarinham
confortam
acariciam
acalentam
quem chegar mais perto

E o que é o amor
se não for a forma
mais alta de contenção
de lisonjear
de rubificar
de cobiçar
de irradiar
o calor necessário
do primeiro fogo do ano
quando quatro amigos
inventem  jogos de palavras
numa noite de chuva
que vai estrear
a noite de Halloween

 


Tonturas

são aquelas tonturas
de um desejo inconsequente
fulcros de confiança
na montra de um oculista
que caminha num raio de luz
borboletas de medo
pacifistas
voltejam
no estômago inquieto
de um rapaz de oito anos

poema da minha infância
a colheita de um ano estéril
escolhido por um pintassilgo
árvore de galhos cheios
que roubou as promessas
de jasmins brotados
num dia funesto

quem refresca o meu copo
sozinho
no bar do aeroporto
ó pintassilgo
onde a noite se cruza
nas linhas de rabiscos ilegíveis
potencial sangrento
que escorre
para fora do caderno preto