Dois poemas de Fernando Colitta: “Auto-retrato. Noite adentro” e “Pergunta para Esenin”

Tradução: João Coles

AUTO-RETRATO. NOITE ADENTRO

Escuta o baque surdo e curto do cotovelo,
que pousa na mesa indiferente e muda.
Somente ao outro se segue a mão maleável,
este sustém à cabeça o novo tronco e o novo pescoço.

Repara na minha elegância de homem de pé a degradar-se,
a degradar-se intacta sobre a mesa.
Entre as folhas umas mais outras menos brancas
escondem-se ao desleixo moedas para as compras.

Os vermes entre as jóias
facilmente vivem.
Se olhar para a cómoda
facilmente desaparecem.

Repara no fundo do mundo a perfilar-se
numa rua do mundo que sossega para lá do vidro,
repara no insinuar deste rosto criado ao acaso
que a sós se olha sem espaço para Narciso.

Enquanto isso entre as jóias
passeiam longos vermes.
Não olhes para a cómoda,
que eles de imediato se solapam.

Mas será que sempre foi ou é agora que é assim?
Na janela o vago busto preferiria a segunda.
Nos olhos descobre imovelmente uma coisa,
um baú, um olhar, uma faca perdida.

De relance repara na estrutura evaporando-se,
agora a cabeça acompanha os olhos no afã.
Bastou a dúvida para virar o retrato,
as costas para a janela, o cu para a mesa.

No enredo dos móveis e bibelôs se perde,
por todo o lado procura e tudo desarruma.
Numa gaveta encontra por fim poucos indícios de provas.
Há vida, mas não dá resposta alguma.

Sobre a cómoda
facilmente vivem.
Se ouvirem um passo
facilmente desaparecem.

Repara entre as jóias
onde habitam os vermes.
Esquece a cómoda,
não os perturbes.

PERGUNTA PARA ESENIN

Ainda aqui,
mesmo que qualquer fumo ou qualquer odor
de quando em quando se lembre.
Ouvir.
O que se perdeu
em troca deste tempo todo?
Tão frio que é
este ar apesar de nos acolher,
tão materno que é
e tão alheio.
Tu, pelo contrário, acabaste
o que talvez julgo não ter
sequer começado.
Diz-me se ainda tenho tempo,
tu que cedo deixaste de ter tempo.
Quão absurdo parece ser
resistir aos dias
se por instantes se
iluminam de alguém como tu,
que num momento tantos dias fizeste brilhar.
Aprendeste, ensinando,
que quem queima queima consigo o seu fim?
E se sim
com que proveito o aprendo?
Eu que queimo bem mais lentamente
e mesmo assim previno qualquer cansaço.
Talvez tenhas sido a imagem arrancada da língua
no mar de grão onde nasceste.
Sem o querer.
Em que te sinto próximo de mim
se a angústia não me mata
apesar de presente?
Não me conheces
e esta minha vida obstinante
não promete um encontro.
Há momentos em que a sinto
perto o suficiente para a chamar,
e sinto o cheiro da cinza,
e tudo tem a luz confusa
das coisas que se amam.
Caro amigo a quem nada posso dar,
amigo imolado e fresco porém como uma flor,
com o meu pensamento, que pouco estimo,
atravesso o século que passa
pelo teu campo gélido
e pelo meu seco e espinhoso,
e consigo ouvir entre as plantas sem nome
que talvez
não seja garantido viver,
como tão-pouco
é garantido morrer.


AUTORITRATTO. TARDA SERA

Senti il tonfo sordo e piccolo del gomito,
si pianta nel noncurante muto tavolo
.Solo l'altro è seguito dalla mano malleabile,
questo regge alla testa il nuovo tronco e il nuovo collo.

Guarda la mia eleganza di uomo in piedi degradarsi,
degradarsi intatta sopra il tavolo.
Tra i fogli lasciati chi più chi meno bianco
trascurate si nascondono monete per la spesa.

Vermi tra i gioielli
facilmente abitano.
Se guardo il comodino
veloci scompaiono.

Guarda sullo sfondo del mondo stagliarsi,
su una strada del mondo che oltre il vetro riposa,
guarda infiltrarsi questo volto creato a caso
che da solo si guarda senza spazio per Narciso.

Mentre tra i gioielli
lunghi vermi scorrono.
Non guardare il comodino,
rapidi rintanano.

Ma sempre sarà stato o è da poco come ora?
Nella finestra il vagobusto preferirebbe la seconda.
Negli occhi scopre immobilmente qualcosa,
un baule, uno sguardo, un coltello, perduto.

Guarda d'improvviso la struttura evaporare,
ora la testa segue gli occhi nell'affanno.
Il dubbio è bastato a voltare il ritratto,
le spalle alla finestra, il culo al tavolo.

Nell'intrico di mobili e soprammobili si aggira,
dappertutto cerca e tutto disordina.
In un cassetto trova infine pochi indizi per prova.
La vita c'è, ma non dà risposta alcuna.

Sopra il comodino
facilmente abitano.
Se sentono un passo
veloci scompaiono.

Guarda tra i gioielli
vermi albergare.
Salta il comodino,
non li disturbare.

DOMANDA PER ESENIN

Ancora qui,
anche se qualche fumo e qualche odore
di tanto in tanto ricorda.
Sentire.
Cosa si è perso in cambio di tutto questo tempo?
Quant’è fredda
quest’ aria anche se accoglie,
quanto è materna
e quanto estranea.
Tu, invece, finisti,
tu che a trent’ anni finisti
quello che io credo di non avere
ancora forse cominciato.
Dimmi se ho ancora un po’ di tempo,
tu che presto smettesti di avere tempo.
Quanto assurdo appare
il resistere nei giorni
se per un attimo questi
sono illuminati da uno come te,
che in un attimo tanti giorni facesti brillare.
Imparasti, insegnando,
che chi brucia brucia con sé la sua fine?
E se sì
a quale pro io lo imparo?
Io che brucio assai più lentamente
eppure avverto tutta la stanchezza.
Forse fosti l’immagine strappata dalla lingua
nel mare di grano in cui eri nato.
Senza volerlo. In cosa ti sento vicino
se l’angoscia non mi uccide
anche se è presente?
Non mi conosci
e questa mia vita che si ostina
un incontro non promette.
Ci sono momenti in cui la sento
vicina abbastanza da chiamarla,
e sento l’odore della cenere,
e tutto ha la luce confusa
delle cose che si amano.
Amico caro a cui non posso dare niente,
amico arso eppure fresco come un fiore,
col mio pensiero, che poco stimo,
attraverso il secolo che passa
tra la tua campagna gelida
e la mia secca e spinosa,
e posso udire tra piante senza nome
che forse non è così scontato il vivere,
così come
non è scontato il morire

Adiantamento - Suceder


1

Agora trancado em casa 

De mãos 

Bem lavadas Você

Poderá tocar os contornos 

Da apatia no teu rosto



2

Para vestir corretamente a 

Máscara Você

Deverá permanecer em estado

De pluma

Lembra-te urgente 

De teu estado

De pluma atrás Você

Das outras máscaras Você

Um espelho salpicado



3

Pensas 

Quem? 

Pensa quem ninguém irá estercar a larga

Jardineira das prerrogativas Você

Isso Você aquilo

Diriam

Isso é

Tudo pensa

Diriam?

Quem? Uma

Maldade de pássaros desinfetados? 

Vo Cê



4

Talvez a febre talvez o

Silêncio seja a granja suscetível talvez

O latido na rua seja 

Um grito de prazer talvez 

Você

A honestidade de um raio de

Sol acelerando a poeira

Na

Folha do

Antúrio talvez a

Véspera seja a pena a

Poeira a

Debilidade é ganhar

Votos 

A véspera é

A pena 



5

Agora Você trancado em 

Casa 

De mãos bem lavadas

Você 

Tu 

Umas plumas 

De ti

Tocando convívio 

Com outras de

Ti

 

6

A sombra da mobília entrega

Maquetes  

Das garantias da cidade 

Você

Esteja você à cintilação das tuas

Fianças



7

A sorte assim

Passada feito

Filme que passa à tela

Da morte

Você

Uma ereção à sorte alguma

Suave neurose nenhuma

Febre à sorte 

40 graus medidos 

Mesma 

Sorte



8

Apaziguamento então passa

A ser

Nuvem drástica nuvem

Presencial extremada apaixonada

Distante carecida de

Reformas carecida

De 

Higiene Você se

Entrega 



9

Pensa

Ainda pensas

Sobre as

Prerrogativas nas jardineiras pensa

Quem um sorriso de

Vergonha um gesto anônimo

Uma semente ocasional as tintas do 

Que pensas

Você



10

Suceder então

De mãos bem lavadas como 

Um 

Paciente trancado da cura dos outros sucede aos 

Pulmões rebuscados 

Sucede 

Que 

Ainda a jardineira esteja talvez

Você a

Ereção talvez a véspera 

Seja talvez 

Suceder 

Perséfone nos Infernos


Comeu pois Perséfone as seis sementes
porque percebeu que ao ter sido colhida pela morte
seria para sempre flor da morte naquele palácio de xisto
Ela que dantes colhia gerânios, se lambuzava em mel
ferrava-se toda a ela e às irmãs, sansânica em cabelo
tirava-lhes dos rabos nus a rir os espigões
És tão bonita e tão tontinha, respondiam-lhe elas
já não a vêem há duas semanas e nem um telefonema
não deve andar a comer nada, e se definha
Viu Perséfone a coroa da morte e comeu pois as seis sementes
porque já não se imagina na luz fúlvida a ser rainha
Agora sim, coroados de negro negros os lindos olhos
colhe vida aos mortos, colhe da morte os vivos
ama sôfrega as flúvias cinzentas do marido
(e este outra ninfa à entrada dos xistos, junto às heras)
E uma a uma as seis sementes deglutidas
puseram os olhos mais que negros negros de Perséfone
a quererem mais que cegar, olhar para dentro

persefone.jpg

"TWOMBLY FALA SOBRE LEONARDO" e outros poemas sobre o fogo

TWOMBLY FALA SOBRE LEONARDO *

“Não saberão, os Homens, que é mais difícil

  copiar um sorriso do que um corpo; um

  Twombly do que um Rubens?”

                                   - Raúl Milhafre

 

Quando subi as escadas da

National Gallery e olhei para

a minha esquerda todas as

paredes do museu ruíram.

Aos pés de Maria do Amor

da Doçura eu era outra vez

menino e não sabia quem era.

Hoje sei o que sou. Sou uma leve

pedra aos pés de São João Uma

lágrima romana nos olhos de Leda

Uma vincada linha Uma curva

num ovo de cisne. E mais do que

tudo uma mancha de sangue nas

costas de um efebo adormecido.

E. P. TWOMBLY JR COPIANDO PICASSO

 

“Desire is not simple or Safe”

                         Joshua Rivkin

 

Este cabelo loiro enrolando-se

sedoso no interior fino deste

lápis diz carinhosamente que sim.

Os teus olhos Thérèse inocentes

perscrutam o meu templo Absoluto

um templo recuperado de Apolo

no meio do ardente deserto.

 

E é aqui que tu dizes vinda

do alto “Dá-me a tua chave

da vitória” enquanto cai sobre

mim o ouro e a pena de Zeus -a que

anuncia o passado transposto.

 

Tão pequeninos olhos cinzelavam a

minúcia do desenho e estendiam

a captação impossível da emoção.

 

Quando dois astros se cruzam

numa explosão galáctica para

que serve um raio num papel?

PANDATERIA

“I’m totally unprepared so i must

    compose as i singing”

        - Peter Ustinov as Nero

Aquela mulher que fui já não mora aqui!

As minhas sandálias gastou-as a terra e

já não tenho outra esperança senão

aquela que sei que virá: um afiado e

seco gume de uma espada entrando

no meu macio e esguio pescoço. Não

não mais evito o meu triste destino.

Com o lenço ensanguentado da minha

pobre mãe vítima dos homens e do

 

poder eu Octavia dou-me por fim

vencida. Mas antes que o frio metal

 

me fure a garganta quero no meu

triste leito de espera praguejar

mil pragas àquele que em tempos

foi meu marido: “Que a força quente

do fogo sob a sua lira seja o raio

inevitavelmente certeiro sobre

os seus virados trinta Anos!”

                                               

                                         TOCHA

Desespero

                    Arrependimento

                                                    Ternura

é tudo e é pouco o que sinto por ti.

              Todo o bem que poderia ter existido

  não existe. E é o não ter acontecido

que nos prende essa possibilidade

          paralela daquilo que nunca aconteceu

   ou acontecerá. E dada a distância da

abertura do arco solar das plantas do

meu jardim de flores a escolha foi a certa.

 

É na ternura deste Fim de poema que

                                          todo e qualquer elo

                          entre a minha memória e a tua pele

                                        se esgota e se apaga.

                                             Para com ele

                                                    fazer a

                                                     tocha

                                                       do

                                                      fogo

                                                      que

                                                       se

                                                    apagou.

*Poema de “O Nardo” (2020)

Cy Twombly (1921-2011) Petals of fire  dét. (1989.jpg

Cy Twombly - “Pétalas do Fogo” (pormenor), 1989.