Precisão

Trocou-lhe as voltas
a rapariga
ali deixada a meio
num corpo sem idade
a ir de novo pra velho
a ir de velho pra novo
sem espanto nem receio

a ir às compras como quem cobiça e quer
mesmo se depois não pode
como quem se atira e corre
afogueada
sem por isso chegar antes
ou mais depressa

Chega é tarde.

Com o pó da estrada a embaciar-lhe
os cabelos
lábios a gretar de sede
mãos pendentes
ripostando
que farão o que se lhes der a fazer

é uma questão de precisão
de palavra ouvida e dada
de trazer os pés
junto à cabeça
e de volta ao chão da estrada.

caixa negra

Brassai, Avenue de l’Observatoire, Paris, 1934

são aparafusadas à cauda dos aviões
porque é o local mais provável
de sobreviver ao impacto
em caso de acidente  

depois do embate
o sonar é activado
e emite um sinal durante
cerca de trinta dias
que é o tempo
que equipas de salvamento
têm para as recuperar
para as poderem estudar
e tentar explicar
o que causou o acidente 

caixa negra é o nome errado
porque elas são na verdade
cor-de-laranja e duas
a que grava os dados do voo
e a que grava
as conversas dos pilotos no cockpit  

raramente tens pensado em ti
como um avião em acelerada
queda em direcção ao solo
mas aqui estamos 

uma curiosidade desmedida
e estúpida e insistente para lá do razoável
indiscreta e um pouco ordinária
que tanto te diverte quanto
te traz humilhações consideráveis
e dor e desilusão
quando te fechas nessa trajectória em espiral
que qualquer idiota te saberia dizer de longe
que é garante de acidente
seguido da mais completa destruição 

quieta e parada na paragem do autocarro
com o nariz enterrado num livro intitulado
completamente sexta-feira
não estavas exactamente à espera
de perder o ar e a altitude nem sequer
de que qualquer coisa fora de ti
fosse a tradução exacta da intensidade
que está dentro dessa outra caixa negra
que tens de carregar contigo,
a que não sobrevive ao embate
e cuja existência continua a não fazer sentido 

pela janela a noite das piscinas
vem acertar agulhas contigo
a água anoitecida com a forte luz azul
vinda de baixo
e o sabor e o cheiro do cloro 

e qualquer coisa que transborda
que te faz seguir sem pensar
as linhas com os pequenos
ladrilhos azuis e azul-escuros
como os aviões seguem
as luzes nas pistas antes do momento
da descolagem ou da aterragem 

no silêncio
na quietude de quase ninguém
a paixão de um momento inexplicável
passa através de ti
não entendeste e não queres entender
sabias que importava
porque podia ter ultrapassado
todas as leis da gravidade
sabes que agora é um incêndio ao longe 

e voltas a esta tarefa difícil
deixar que o corpo flutue
na ausência de uma corrente
no vazio em quase nada
na falsa impressão de um líquido amniótico
que não vem com o regresso a nada de primordial
é apenas quase uma loucura
a lógica da sua trajectória em seta
inscrita no ar na tua vontade
na ausência dos objectos
com a profundidade
da mais rápida queda
dos não sei quantos mil pés de altitude
que tornam todos os aviões fúnebres  

e vais estar ainda à procura de travões
de comandos de emergência
em alguma sala onde terás de ouvir
a tua própria voz antes e depois do desastre
mas quase nunca consegues escutar
o que é vital e sobrevive  
onde quase ninguém sabe que exististe
e onde é preciso voltar
para que não te banalizes
e não te degrades
para que não percas o teu tempo
em desencontros onde apenas aprenderás
as previsíveis lições
do corte e da mutilação
os abraços intoleráveis da falsa proximidade 

onde perdeste tempo à espera
de revelações para as quais
não tens clareza que chegue
ou que não são tuas
ou que são previsíveis que chegue
e que não chegaram a ser sequer uma paixão 

que foram até muito menos
do que tuas são as mãos que agora no frio
têm de desprender o cadeado da bicicleta
e tua a cabeça que terá de se erguer
para ver o fumo que se ergue do rio
que gela silenciosamente no escuro
vista de muito perto esta clara solidão
onde não há ninguém
o incêndio em negativo 

seguido dos pequenos objectos contraditórios
que cabem nos bolsos e nas mãos
com os quais é preciso cuidado
porque não foram pensados
para escapar a grandes acidentes
são eles as pequenas inacreditáveis âncoras
das sobrevivências inexplicáveis
onde regressam todas as vozes
que é preciso procurar no escuro  

as que estás à espera de ouvir
de cabeça ao alto
enquanto queres ser
a música do vento
a assobiar entre os ramos

Oxford, 22 de Dezembro de 2021

Atenas, 12 de Janeiro de 2022

 

Frank 2

para Penny Smith

não percebo nada
destes policiais de que gostas
afinal
porque é que ela o matou?

porque o amava mãe
porque o amava
mas não era recíproco

que ideia tão parva
porque raio
haveria uma mulher
de fazer isso?

já te disse
que ele
teve quatro filhos?

quem mãe
quem é que teve quatro filhos?

casou-se e teve quatro filhos
há quem lhe dê para isso
se queres saber o que acho
quatro é um exagero
mas pronto
agora nada a fazer
ele já morreu

de quem é que estás a falar mãe?

do Frank
ele casou-se
e morreu
mas antes disso
decidiu ter quatro filhos

mas eu achava
que não sabias
quem o Frank era

e não sei

e ambas se riram
e ficaram um pouco mais
a ver televisão

Nota: O poema “Frank” pode ser encontrado aqui e foi incluído no livro Por favor não dê de comer aos unicórnios

when doves cry - as piores canções sobre lembranças





numa diagonal do corpo

ligando o coração

ao ombro está a fronteira entre

uma baça lembrança do seu rosto e

a certeza de que estava garoando

em algum lugar do mundo


=//=


nada a não ser a força

de um instante acelerado

que atravessa os anos da minha vida

desamarra meus cadarços e me

faz encontrar lembranças no chão


=//=



uma lembrança mal alojada

jogada de qualquer jeito no destino

dolorosa ao sorriso como varicose

nas bochechas


=//=


você caminha por uma

lembrança ruim e seus braços

vão se descolando do corpo que lembra

é de tanta areia o caminho tanta

tanta areia você se aproxima de um 

coqueiro o único no caminho sem os

braços você se balança imitando o coqueiro

e já nem se lembra de como era estar 

agarrado à lembrança

é de tanta areia, querido

tanta tanta areia


=//=


recolhe gravetos

prepara uma arapuca na

memória sem se lembrar:

70% do corpo das lembranças

é água


4 ou 5 poemas

Karate Kid

 

Levei porrada, sem a merecer, fui muitas vezes

O aluno novo, a escola é escola para tudo,

Nunca tive melhor lugar onde aprender crueldade,

Onde melhor se aprendeu a levar, quando a família

Um lugar de conforto, nem em casa se podia estar

Em paz, porque o senhorio uma besta incansável,

A minha paz um poço choco, tive ali o meu inferno,

No ensino obrigatório, ano após ano, novas vítimas,

Também eu fui uma besta quando me tornei demasiado

Familiar num lugar, isto depois de ter levado muito

Nas bentas, só hoje me apercebi da importância

Do Karate Kid, quando garotos engolimos

E nem imaginamos mais tarde de onde vêm certos amores,

Como a certas culturas, mas nunca tive um Mr. Miyagi,

Chovia e arrastavam-me paralelos fora, até as calças

Uma ruína, chovia e queriam lançar-me a uma fossa,

E o máximo que sabia de artes marciais era gritar

Como o Bruce Lee, os joelhos sangravam, mas tudo bem,

A água barrenta diluía o sangue, Okinawa um sonho,

Onde as tempestades tornavam o mundo justo para todos,

Agora bebo uma de Chianti, sangiovese puro e penso

No Daniel Larusso que fui no Minho, uma escola por ano,

Sem um sensei, levar e andar, crescer, mas agora,

Quase chegado aos quarenta, aqueles paralelos,

À chuva, continuam a abrir-me os joelhos.

Bolsos Cheios de Seixos e Merda

 

Também é verdade que fui uma besta, engoli a hóstia

Quando convinha e tinha a alma limpa do Tide,

Batia punhetas atrás da antena da televisão que tinham instalado

Na escola primária, hoje em dia é uma moradia,

Cortaram as mimosas, não há ilusões de ascensão,

A estas horas todos tiveram que baptizar inocentes

Por causa de um pecado que ninguém cometeu,

Muitos foram os outros, tive gosto em tantos,

Aqueles em que entrava, me despedaçava todo,

Depois apanhavam um autocarro, diziam-se apaixonadas,

Eu fingia que os tomates vazios eram tudo,

Não eram, bem me lembro das rãs na primavera,

Da proximidade da ponte romana, aquele granito

Sempre me pareceu quente, mesmo tocando-o

Com dedos ébrios em Dezembro, ou de madrugada,

Antes do Sol ser a promessa de mais um aborrecimento,

Esta vida é uma confusão tamanha, meu amigo,

Ainda cá andamos perdidos, todos, mais aqueles

Que cheios de certezas e bolsos cheios de seixos e merda.

Coito Interrompido

 

A que me sabe agora o desespero daquele amor de adolescente,

Aos dezasseis anos, amaldiçoando o tecto de madeira,

Naquele quarto escuro, que era o mais ou menos quente da casa,

Pelo menos sentia-se o cheiro da lareira, que arrefecia,

Menos a humidade negra nas paredes brancas,

Chorava e erguia os punhos ao mesmo tecto inocente,

Os punhos frios, as lágrimas arrefecendo pela carne imaculada

Abaixo, nas orelhas bem apertados os fones e as músicas

Que se tornaram em mim, um beijo teria custado a vida,

Mas teria custado tanto, como o ódio aos dióspiros,

A vida uma tentativa ridícula em criar sentido num infinito

De variáveis incontroláveis, um cálculo impossível,

A certeza de uma dor maior que o colapso de uma estrela,

Num quarto pequeno, húmido, escuro e triste,

Num planeta abusado por seres pequenos e tristes,

Este desespero de amor adolescente, sabe-me agora

Ao vazio de todas as garrafas, a todas as vaginas

De onde removi o meu orgasmo, segundos antes

Para me verter num prazer de agonia e derrota.

Velas que Consomem Vazios

 

A vela consome-se na garrafa vazia, aos poucos, o copo,

Enfrentando a objectiva, torna-se mais útil para a próxima sede,

A árvore de natal obsoleta como as memórias de outros tempos,

Ridícula como a própria juventude de um velho que se agarra

Ao vazio das memórias e dos sonhos cujos ecos ainda persistem,

Foram muitos os verões, poucos os que valeram a pena,

E agora quê, como criar alguma beleza com um conjunto limitado

De palavras, a flexibilidade de um carrasco num dia de tempestade,

A memória que é o que cada um é, uma garrafa que persiste no copo,

Ainda, como se tudo fosse um nada e é, a chuva acaba, o sol regressa

E tudo parece tão ridículo, não fosse o punho de terra ainda na mão

E a cova aberta que espera, um último gesto que não fecha nada,

E a patética vela persiste, iluminando uma noite escura que ninguém

Quer relembrar, solitária, com garrafas vazias, copos já secos,

Sonhos esquecidos, amores amputados, só os pulmões mantêm

O automatismo que nos mantem vivos, para quê, a garrafa

Onde a vela se consome há muito que está vazia.

O Poeta Pouco Finge

 

Eu não vivo na diáspora, eu sou a diáspora,

Eu apago-me para que não sejam tão difíceis

As vozes dentro do vazio deste apartamento,

Para que os olhos fechados não doam tanto,

Para que os sonhos não me tragam tanta ruína,

Eu não vivo na diáspora, eu sou o frio que cristaliza

As lágrimas e traz a neve aos dias escuros,

Eu sou o medo das geadas longínquas

Que obrigam às vindimas antes das uvas passas,

Eu sou aquele amigo que partiu, mas continua vivo,

Aquele que morreu e ainda respira,

Aquele idiota que ainda se julga poeta,

Anos depois do professor de português se ter reformado.

Entulho

 

Eu queria olhar os teus lábios e não pensar nas tuas palavras ridículas,

Deixar o lago da Sanabria gelar há décadas, continuar inocente

Ao lado dum cavalo qualquer, sentir-me perto de um deus

Que me diminuiu tantos anos, deixar arder tudo o resto,

As bandas desenhadas que me moldaram, não o barro, mas o lodo,

Porque se sou homem, sou feito da lama onde cagaram

As vacas e os burros a caminho dos estábulos, antes da geada imaculada,

Antes do adormecer dos avós ao regressarem da última poda

Aos castanheiros e colapsarem nas mãos sábias e impotentes das netas,

Eu queria olhar os teus lábios cheios de aves exóticas

E chamas que querias que queimassem o teu coração,

Mas não te dediques a voos se o que queres é encontrar entulho para poemas.

 

06/01/2022

 

Turku