4 ou 5 poemas

Karate Kid

 

Levei porrada, sem a merecer, fui muitas vezes

O aluno novo, a escola é escola para tudo,

Nunca tive melhor lugar onde aprender crueldade,

Onde melhor se aprendeu a levar, quando a família

Um lugar de conforto, nem em casa se podia estar

Em paz, porque o senhorio uma besta incansável,

A minha paz um poço choco, tive ali o meu inferno,

No ensino obrigatório, ano após ano, novas vítimas,

Também eu fui uma besta quando me tornei demasiado

Familiar num lugar, isto depois de ter levado muito

Nas bentas, só hoje me apercebi da importância

Do Karate Kid, quando garotos engolimos

E nem imaginamos mais tarde de onde vêm certos amores,

Como a certas culturas, mas nunca tive um Mr. Miyagi,

Chovia e arrastavam-me paralelos fora, até as calças

Uma ruína, chovia e queriam lançar-me a uma fossa,

E o máximo que sabia de artes marciais era gritar

Como o Bruce Lee, os joelhos sangravam, mas tudo bem,

A água barrenta diluía o sangue, Okinawa um sonho,

Onde as tempestades tornavam o mundo justo para todos,

Agora bebo uma de Chianti, sangiovese puro e penso

No Daniel Larusso que fui no Minho, uma escola por ano,

Sem um sensei, levar e andar, crescer, mas agora,

Quase chegado aos quarenta, aqueles paralelos,

À chuva, continuam a abrir-me os joelhos.

Bolsos Cheios de Seixos e Merda

 

Também é verdade que fui uma besta, engoli a hóstia

Quando convinha e tinha a alma limpa do Tide,

Batia punhetas atrás da antena da televisão que tinham instalado

Na escola primária, hoje em dia é uma moradia,

Cortaram as mimosas, não há ilusões de ascensão,

A estas horas todos tiveram que baptizar inocentes

Por causa de um pecado que ninguém cometeu,

Muitos foram os outros, tive gosto em tantos,

Aqueles em que entrava, me despedaçava todo,

Depois apanhavam um autocarro, diziam-se apaixonadas,

Eu fingia que os tomates vazios eram tudo,

Não eram, bem me lembro das rãs na primavera,

Da proximidade da ponte romana, aquele granito

Sempre me pareceu quente, mesmo tocando-o

Com dedos ébrios em Dezembro, ou de madrugada,

Antes do Sol ser a promessa de mais um aborrecimento,

Esta vida é uma confusão tamanha, meu amigo,

Ainda cá andamos perdidos, todos, mais aqueles

Que cheios de certezas e bolsos cheios de seixos e merda.

Coito Interrompido

 

A que me sabe agora o desespero daquele amor de adolescente,

Aos dezasseis anos, amaldiçoando o tecto de madeira,

Naquele quarto escuro, que era o mais ou menos quente da casa,

Pelo menos sentia-se o cheiro da lareira, que arrefecia,

Menos a humidade negra nas paredes brancas,

Chorava e erguia os punhos ao mesmo tecto inocente,

Os punhos frios, as lágrimas arrefecendo pela carne imaculada

Abaixo, nas orelhas bem apertados os fones e as músicas

Que se tornaram em mim, um beijo teria custado a vida,

Mas teria custado tanto, como o ódio aos dióspiros,

A vida uma tentativa ridícula em criar sentido num infinito

De variáveis incontroláveis, um cálculo impossível,

A certeza de uma dor maior que o colapso de uma estrela,

Num quarto pequeno, húmido, escuro e triste,

Num planeta abusado por seres pequenos e tristes,

Este desespero de amor adolescente, sabe-me agora

Ao vazio de todas as garrafas, a todas as vaginas

De onde removi o meu orgasmo, segundos antes

Para me verter num prazer de agonia e derrota.

Velas que Consomem Vazios

 

A vela consome-se na garrafa vazia, aos poucos, o copo,

Enfrentando a objectiva, torna-se mais útil para a próxima sede,

A árvore de natal obsoleta como as memórias de outros tempos,

Ridícula como a própria juventude de um velho que se agarra

Ao vazio das memórias e dos sonhos cujos ecos ainda persistem,

Foram muitos os verões, poucos os que valeram a pena,

E agora quê, como criar alguma beleza com um conjunto limitado

De palavras, a flexibilidade de um carrasco num dia de tempestade,

A memória que é o que cada um é, uma garrafa que persiste no copo,

Ainda, como se tudo fosse um nada e é, a chuva acaba, o sol regressa

E tudo parece tão ridículo, não fosse o punho de terra ainda na mão

E a cova aberta que espera, um último gesto que não fecha nada,

E a patética vela persiste, iluminando uma noite escura que ninguém

Quer relembrar, solitária, com garrafas vazias, copos já secos,

Sonhos esquecidos, amores amputados, só os pulmões mantêm

O automatismo que nos mantem vivos, para quê, a garrafa

Onde a vela se consome há muito que está vazia.

O Poeta Pouco Finge

 

Eu não vivo na diáspora, eu sou a diáspora,

Eu apago-me para que não sejam tão difíceis

As vozes dentro do vazio deste apartamento,

Para que os olhos fechados não doam tanto,

Para que os sonhos não me tragam tanta ruína,

Eu não vivo na diáspora, eu sou o frio que cristaliza

As lágrimas e traz a neve aos dias escuros,

Eu sou o medo das geadas longínquas

Que obrigam às vindimas antes das uvas passas,

Eu sou aquele amigo que partiu, mas continua vivo,

Aquele que morreu e ainda respira,

Aquele idiota que ainda se julga poeta,

Anos depois do professor de português se ter reformado.

Entulho

 

Eu queria olhar os teus lábios e não pensar nas tuas palavras ridículas,

Deixar o lago da Sanabria gelar há décadas, continuar inocente

Ao lado dum cavalo qualquer, sentir-me perto de um deus

Que me diminuiu tantos anos, deixar arder tudo o resto,

As bandas desenhadas que me moldaram, não o barro, mas o lodo,

Porque se sou homem, sou feito da lama onde cagaram

As vacas e os burros a caminho dos estábulos, antes da geada imaculada,

Antes do adormecer dos avós ao regressarem da última poda

Aos castanheiros e colapsarem nas mãos sábias e impotentes das netas,

Eu queria olhar os teus lábios cheios de aves exóticas

E chamas que querias que queimassem o teu coração,

Mas não te dediques a voos se o que queres é encontrar entulho para poemas.

 

06/01/2022

 

Turku