O NASCIMENTO DE AUGUSTO

Mergulho em música probatória:
eu no meu período azul, talvez venial,
ouvindo a voz pátria muito ao de longe
em rasgo parturiente, toda ela ao comando:
em mim ordem ignorada, sentida como cesura.

Daí a minutos, horas ou dias, a intimidação,
mas por ora o consenso – sim, conservo-me
nesta cama de sangue, cetim e largas penas,
procuro tentar algo mais que salto barulhento –
a minha gramática é uma seta a gotejar de sol.

Ouves a canção que inaugura o mundo privado:
globo de maçãs vibrantes, esta correia de platina
que range sob a mais bela estação do zodíaco.
Contento quem me faz oferendas, cabeças firmadas
no plasma adiado da vitória, sombras simples

vertidas na concha destas duas mãos
através dum grosso cabo de corda
que puxo todo com toda a imaginação
mais o leite que sobeja de biografia
ebuliente, em combustão forte, bravosa. 

(inédito)

SAL NA PELE, SÃO PAULO

Vamos fazer um filme, uma viagem
ao doce columbário das almas mortas.
Cada homem, cada fruto emagrecido
orará na suculência onírica do seu cadáver:
tantas vidas que não bastará uma para contá-las.
Capta isso ao arrepio, com uma luz lanceolada
que te atravesse a garganta em golpes de asa.

Olhos lambuzados de verdejante miséria
junto aos parques que atravessam o morro:
alcandorado percorro as pústulas de São Paulo.
Há quem se aproxime e cozinhe a sua versão
de humanidade com sacos e vozes nos ouvidos,
quem rejeite o perdão a prazo da homilia,
a chatice imensa da charneca do trabalho
que obriga a acumular breves batalhas
até ao perro desfecho da biografia.

Ao menos que o pouco que registamos
entretenha uma noção de verdade,
remova a praga dos deuses de barro
relidos em esquálidas folhas de jornal.
Vamos fazer o filme do furor perdido,
o mesmo que César viu transir de frio
ao virar a lenta página do desastre.

Que não deixe nunca de nos incomodar
a verde luzerna suicidando-se gelada
entre as ondas de nenhuma circunstância.
Assim que o fumo da névoa for propício,
captemos os testemunhos mais extraviados.
Quanto ao célebre estábulo da criação,
é estender-lhe por cima um pano de linho,
como se faz aos papagaios que se apeitam
na sua interesseira adoração.

(inédito)

Incêndio

no mapa
as aldeias
em fogo

amarelo
campos de aveia
alimento dos cavalos

laranja
o que está em disputa

castanho
os caminhos possíveis
(desde que ainda
se tenha cavalos)

as horas passam
não arredam pé
da mesa
os amigos
absortos no jogo

quando ainda
se podia fumar no café
comprávamos
um maço a meias
e jogávamos toda a tarde
eu abria a partida
escrevendo alguns versos
numa folha em branco

agora
é a tua vez
o fogo alastra

Maio

Na seiva desesperada das árvores dormentes,

Correm agora os pântanos, as ilusões despertas

Pela persistência do sol, apresentam-se os rebentos

Aos hinos das aves, contudo há amores que não regressam,

Escondidos nas vergonhas de raízes curtas,

Ecoando em cada folha seca que a nova erva levanta,

Dormir torna-se numa náusea breve interrompida

Por sonhos de pálpebras rubras, convergentes nos desejos que subsistem,

As crianças riem ao sol e eu já não as invejo,

Vontade apenas, de musgo, terra nas unhas

E os joelhos encardidos pelo peso da inocência. 

 

Turku

01/05/2024