Sobre o prémio Nobel da Literatura

Estava a comer um pão com queijo quando soube que Bob Dylan tinha vencido o prémio Nobel da literatura. Não tinha manteiga.

Os prémios com manteiga sabem sempre melhor. Tornam o pão menos seco, mas não fazem bem ao colesterol.

O pior é quando a dieta que nos impuseram é à base de opiniões. Muitas opiniões. É que eu engordo facilmente.

No outro dia, só para dar um exemplo, estava a andar na rua e caiu-me uma opinião. Olhei para o chão. Estava muito sozinha, ali no solo, coitada, quase que alguém a pisava. Mas depois pensei: pobrezinha, vou pegar em ti e pôr-te na minha boca outra vez.

Era de noite, e num beco escuro alguém me olhava de soslaio. Olhei outra vez. Era impressão minha, não era ninguém.

Depois, ouvi uma voz. Falava americano. “Pedro, és tu?” Nem queria acreditar, era o Bob Dylan, mas a coisa pareceu-me artificial, porque não disse “Pedro, is that you?”. Mesmo assim fiquei bastante perplexo, pois tendo passado toda a adolescência a pensar noutra coisa qualquer, nunca soube reconhecer ícones. Se a Madona passasse por mim não saberia quem era. Essa que está viva, claro, não o fóssil.

Bom, nem queria acreditar.

“Pedro, és tu?”

Eu perguntei – que outra coisa poderia fazer? – “mas quem és tu?”

Ele respondeu: “então nos últimos parágrafos já tinhas admitido que eu era eu”.

“Eu?”

Fiquei confuso, mas depois pensei: bom, não me conheço assim tão bem, pode ser que algo de estranho se tenha passado.

“És tu, Bob?”

O silêncio respondeu-me torto. O silêncio responde sempre torto. Entretanto, já tinha comido todo o pão que tinha para comer, nem tinha fermento nem nada.

Sobejamente confuso, olhei para a chávena de café e pensei: “caramba, era capaz de jurar que nunca tinha falado em chávenas de café”.

Pus uma pitada de opinião e segui em frente.

Entretanto, um sujeito muito estranho começou a olhar para mim, porque o verbo começar implica que ele já lá estava.

E pensei: oh lá, aqui há gente que conhece muito bem as coisas. Mas olhem para mim, todo sujo de opiniões, estava a andar e tropecei numa. Estatelei-me...

Outros poderiam pensar que um prémio é só um prémio. Aparentemente este é “o” prémio. Aparentemente é do caralho.

“O” prémio.

Com que então há prémios. Boa, adoro prémios. Gosto de pôr manteiga nos prémios, para o pão não ficar tão seco. Aí sim emito uma opinião forte, vigorosa, viril: adoro pão com queijo.

“Pedro, és tu?”

Desculpe, meu querido poeta, não o conheço, mas estou certo de que “o” prémio vai ser muito importante para si e para os seus, e especialmente para quem não o recebeu, e mais ainda para os que acham que “o” prémio devia ou não devia ser seu.

“Olhe, desculpe, mas deixou cair esta opinião.”

Olhei para trás. Uma velhota começou a aparecer, o que é confuso, porque não se pode começar a fazer uma coisa que é surgir. Tinha razão, olhei; de facto, tinha deixado cair uma opinião.

Aparentemente – pensei – é muito importante sublinhar em voz alta aquilo que pensamos. Simular nas nossas vidas os noticiários e as/os magazines culturais do mundo. Só assim poderemos verdadeiramente apreciar um/uma  bom/a sandes de queijo.

Bom. Nisto ficou tarde. À tarde, quando posso, gosto sempre de ouvir um pouco de música.

Ia a meio de uma música de que gosto muito, quando apanhei um susto imenso. Era o prémio Nobel de 1575. Era zarolho. Disse, “meu amigo, dás-me um pouco de pão?”

Disse-lhe, sim, claro que sim, conheço-te de retratos, estás envelhecido, companheiro, mas toma, claro, toma lá, gostas de pão com queijo? Isto era tudo bastante inverosímil, uma vez que anteriormente já tinha ficado definido que o narrador comera o pão todo, até ao fim, porque nunca se come o pão todo até ao princípio.

Ele disse-me: “é assim que tratas um Nobel?”

Pedi-lhe desculpa, mas em 1575 ainda era uma criança, não sabia bem que existiam prémios, achava que as pessoas simplesmente faziam – quando lhes deixavam – a poesia que podiam fazer.

“És tremendamente ingénuo”, bradou uma voz dos céus. Ou dos seus? Já não sei.

Olhei à volta, e obviamente não tinha sido o zarolho. Entretanto atirara-se com uma voracidade épica ao meu pão com queijo, que vi desaparecer com alguma pena, mas com o sentimento de dever cumprido.

“Roberto, sois vós?”

Ainda o ouvi sussurrar estas palavras. Mas, entretanto, estava na hora de sair de casa, e nunca se deve ficar em casa quando é hora de sair de casa.

Um abraço,

Pedro Braga Falcão

Intelectuais

Jean-Paul Sartre e Michel Foucault em 1972

Jean-Paul Sartre e Michel Foucault em 1972

[nota prévia: há uma quantidade surpreendentemente grande de artigos, entrevistas, ensaios... sobre os intelectuais. Julguei que fosse uma moda mais francesa, onde o termo e a pose modernas nasceram. Mas não, ela está bastante disseminada e até Portugal, onde não goza de muita fama, pensa e escreve bastante sobre essa figura clara-obscura. No final do artigo estão links para se aprofundar o tema, revelam também algumas das minhas linhas de inspiração.]

Se perguntarmos por um intelectual, a resposta cairá mais facilmente para o lado do “quem, aquele gajo que tem a mania que é bom?”, do que “quem, aquele que é”... seguindo-se uma enumeração das suas características mais importantes. Trata-se de desprezo e confusão, em relação a esta recordo-me de exclamar com um amigo, numa sala tingida de noite e embalados por generosas quantidades de whisky, que éramos intelectuais sem termos feito muito para isso, sentido apenas dificuldade em encontrarmos uma inabalável pose de seriedade. Mas deve descontar-se o vapor da ebriedade que nos parasitava (por vezes, álcool e cérebro agem em simbiose, mas são momentos raros, a quem devemos pedir, inutilmente como Fausto: “És tão belo! Demora-te.”). Em boa verdade, custa muito fabricar intelectuais, porque não basta haver talento, eles só emergem dentro de ecossistemas culturais complexos, um intelectual isolado é uma contradição nos próprios termos (talvez por isso os americanos usem a expressão public intellectual), ainda que eles instiguem singularmente a nossa admiração, e inquietação, arrebatando-nos por si mesmos a cada instante. Neste artigo vou tentar, em contracorrente (à força de tantas heterodoxias teremos qualquer dia a mais pura das ortodoxias), definir alguns traços do intelectual, um esquisso menos demonstrativo do que gostaria.

custa muito fabricar intelectuais, porque não basta haver talento, eles só emergem dentro de ecossistemas culturais complexos, um intelectual isolado é uma contradição nos próprios termos (talvez por isso os americanos usem a expressão public intellectual), ainda que eles instiguem singularmente a nossa admiração, e inquietação, arrebatando-nos por si mesmos a cada instante

Comecemos por onde deve ser, mesmo repetindo histórias. O termo intelectual é bastante recente, e muito francês, substituindo até certo ponto o de filósofo. Nasceu social e politicamente no caso Dreyfus, embora semanticamente já se usasse antes. Foi o J’accuse de Émile Zola (contribuindo para que Dreyfus tivesse um segundo julgamento, onde ficou provada a sua inocência), publicado em Aurora no dia 13 de Janeiro de 1889 (carta aberta ao Presidente da República, Félix Faurel), que tornou o intelectual um dos novos heróis da República (paradoxalmente, usando a acusação que os detractores de Dreyfus fizeram aos seus contendores: chamavam-lhes “meros intelectuais” para glosar a sua ignorância).[1] Mas já naquele tempo continha uma carga narcísica que nunca mais cessou de curto-circuitar a sua possível grandeza. Depois, a palavra foi-se fixando e, como acontece muitas vezes, vieram os profissionais da definição tentar espartilhar o seu sentido, mas sem abandonarem completamente o tom dissensual: Julien Benda, Raymond Aron, Jean-Paul Sartre, Albert Camus, Gilles Deleuze, Michel Foucault, Noam Chomsky, entre outros.

1- Antigamente, quando era feliz devido a uma dose exacta de ignorância, tinha para mim como certo que havia em Lisboa duas divisões de intelectuais: na 2.ª divisão, os que iam ver filmes (sempre de “qualidade”) ao Quarteto (agora evangeliza de outra forma), jornal Expresso debaixo do braço; na primeira divisão, os que iam à Cinemateca “ver arte”, acompanhados pela publicação que na altura tinha o recorde mundial das gralhas (mágicas, algumas), o Jornal de Letras. Os dois jornais eram em formato XL e sugeriam que quem se escondia por detrás deles devia ter em casa uma biblioteca-e-pêras, lida e sublinhada, discutida com pessoas do mesmo calibre, pronta a ser incendiada, ou vendida ao quilo (bem pior), pelo filho misólogo que esses pais por vezes educam.

Estas ilações cândidas desapareceram quando me abri ao mundo e o cepticismo entrou, creio que de rompante, nas minhas interpretações: afinal, nem todos os filmes do Quarteto tinham realmente “qualidade” e no Expresso havia artigos de semiologia fina mas também narrativas melodramáticas; a Cinemateca era frequentada por alguns divergentes que viam nos Cahiers du Cinéma uma Bíblia estético-política e as gralhas do Jornal de Letras também eram erros ortográficos. Caí, pois, lentamente na incerteza hermenêutica e cheguei mesmo a desconfiar do meu gabarito mental, o que desfez totalmente a pose que copiara dos meus ídolos.

Antigamente, quando era feliz devido a uma dose exacta de ignorância, tinha para mim como certo que havia em Lisboa duas divisões de intelectuais: na 2.º divisão, os que iam ver filmes (sempre de “qualidade”) ao Quarteto (agora evangeliza de outra forma), jornal Expresso debaixo do braço; na 1.º divisão, os que iam à Cinemateca “ver arte”, acompanhados pela publicação que na altura tinha o recorde mundial das gralhas (mágicas, algumas), o Jornal de Letras

2- Isso foi antes de ler Michel Foucault, esse filósofo que ousou contestar a ideia do oráculo Sartre sobre o filósofo engagé: super-pensador militante, decidido a ver o mundo pela lente moral da esquerda, um intelectual universal. A esta figura demiúrgica opôs-lhe a do “intelectual específico”, conhecedor de uma ou outra área particular, militante de baixa intensidade, resistindo a ser porta-voz de qualquer movimento político-social. Em 1971, Foucault aproveitava uma entrevista a um jornal de Genève para se demarcar do intelectual dominante francês, criticando também os profissionais da indignação, porque ela não potencia qualquer horizonte político, esgota-se no mediatismo, é fugaz e não produz forças de mudança. A intolerância, mais foucaldiana, conduz, pelo contrário, a acções revolucionárias. Na mesma altura, aproveitando o púlpito da Academia Sueca, Albert Camus criticava os intelectuais tradicionais por se afastarem da vida e da sociedade na ilusão de criarem as suas próprias regras, acabando por acreditar em Deus (Discours de Suède). Camus disse no mesmo discurso que cada geração pensava refazer o mundo, mas que a sua não teria essa possibilidade. Talvez ficasse, porém, com uma tarefa maior: impedir que o mundo colapsasse (acho que ainda estamos neste ponto). Hoje, Alain Badiou, no seu Logique des mondes (2006), tenta recuperar um pouco do intelectual universal, no entanto as verdades do século passado (o comunismo, para ele) não se adequam a este, profundamente diferente. Neste sentido, continuo com Badiou, não basta a uma verdade ser universal, ela deve ser eterna. Mas estes iconoclastas conceptuais são-no a partir da sua condição de intelectuais (inovadores na conservação), tomando a palavra para defender uma ideia global superior às ideias particulares, isto é, falam-nos da superação do intelectual universal situando-se justamente na posição de um intelectual universal.

O que temos agora, segundo o historiador das ideias Christophe Prochasson, é uma massificação dos intelectuais, em oposição ao modelo antigo da figura singular, heróica mesma

Bom, mas desde o pós-modernismo francês e, sobretudo, das alegações foucaldianas, poucos já se atrevem, além de Badiou, a apontar um intelectual desse tamanho e potência, capaz de descobrir os veios do mundo e fazer profecias a condizer. O que temos agora, segundo o historiador das ideias Christophe Prochasson,[1] é uma massificação dos intelectuais, em oposição ao modelo antigo da figura singular, heróica mesma. Hoje, a Universidade produz e alimenta milhares de putativos intelectuais, nomeadamente nas ciências sociais e humanas, que tendem, diz com ironia Prochasson, a ficar cada vez mais ligados entre eles, “cultivando as delícias do entre-si”. Portanto, parecem ter desaparecido os velhos senhores do pensamento, capazes de dominar sobre vastos reinos espirituais. Simultaneamente, expiraram também as grandes narrativas, produzidas e alimentadas por instituições que tinham como função explicar de fio a pavio o mundo, para depois o mudar, lembro-me do marxismo, do existencialismo e do estruturalismo. Revogou-se, refere Prochasson, o modelo feudal sobre o qual assentava o intelectual clássico: “um mestre (Bergson, Sartre, Foucault, Bourdieu, etc.) e os seus discípulos, “adubados e/ou repudiados". Agora, o pensamento fervilha e são imensos os que se dedicam a pensar, mas isto parece ser a “marca do declínio”.[2] O autor que vimos acompanhando arrisca, contudo, reconhecer três estilos de intelectuais: 1) o “intelectual especialista”, fechado num círculo de competências únicas e que recusa evadir-se; 2) o “intelectual mediático”, oposto ao primeiro, sem qualquer especialização, próximo do senso comum, legitimador de ideias feitas; 3) mais residual é o “intelectual do partido, ou do sindicato”, como ainda existem nas extremas esquerda e direita, as teses são aí mais performativas do que descritivas, trata-se quase sempre de ser o porta-voz da instituição a que pertence.

“A rive sud do Tamisa é menos elegante mas intelectualmente mais viva do que a rive gauche do Sena.”

Numa das outras geografias principais do pensamento escrito e divulgado, a Grã-Bretanha, festeja-se a falta de intelectuais. O historiador Stefan Collini, em Absent Minds: Intellectuals in Britain, destaca a tradição britânica de negação da intelectualidade, pensadores que noutros países receberiam com honra o epíteto de intelectual, recusam aí serem-no. Collini chama-lhe a “tese da ausência”; na evidência de que os intelectuais só começam em Calais; aliás, dizer “intelectual britânico” seria um oximoro. Daí as alcunhas pejorativas egghead, highbrow, boffin, telly don... Ou o nojo que esta etiqueta provocava em Orwell. Ainda assim, Collini distingue três tipos de intelectuais: 1) alguém que lê muito, interessado pelas ideias, dedicado à vida do espírito (sentido subjectivo); 2) intelligentsia enquanto classe, universitários (sentido sociológico); 3) por último, alguém que atinge um certo nível de criatividade, de análise ou de investigação, e que depois se serve dos médias para intervir sobre assuntos que interessam a um público alargado, aos olhos dos quais ele se torna uma referência (sentido cultural). Além disso, contra a aparente fobia dos ilhéus ao intelectual, assegura que a Grã-Bretanha deve ter hoje uma das culturas intelectuais mais prolíficas da Europa, parecendo consensual reconhecer-se que aí se discutem ideias, política, livros... sendo fácil encontrar debates autênticos, sólidos, inovadores, arriscados, e que cativam um público alargado. Por isso, Timothy Ash (cf. link abaixo, “Qu’est-ce qu’un intellectuel?”) refere com algum humor e um leve espírito de vingança: “A rive sud do Tamisa é menos elegante mas intelectualmente mais viva do que a rive gauche do Sena.” E a BBC Radio continua fiel a um dos seus princípios maiores: instruir. Dando a oportunidade a muitos pensadores de aí divulgarem as suas teorias. Já para não falar em revistas intelectuais de primeira água: Prospect, The Times Literary Supplement, The Guardian Review, The London Review of Books, OpenDemocracy. Acrescente-se uma blogosfera realmente interessante, de que destacamos, sem reais fronteiras étnicas ou políticas, mas vivendo na língua inglesa, a Literary Hub. Único bemol, Timothy Ash critica o facto de na Grã-Bretanha apenas 3% dos livros serem traduções (contra mais de 25% em França, por exemplo), havendo um perigo real de vedar aos britânicos, cada vez mais satisfeitos com o seu imperialismo linguístico, novos intelectuais de outras línguas, conduzindo-os não para o mundo mas para uma torre de marfim cheia de ideias fixas. Afirmando o mesmo autor, em semi-lamento, que afinal a rive gauche está bem aberta à vida, enquanto a rive sud do Tamisa se encontra encerrada num autocontentamento estéril. E o fechamento, sabem-no bem os portugueses, traduz-se em raquitismo.

3- Por seu turno, Patrice Maniglier (no Le Magazine Littéraire 553 de Março de 2015, pp. 86-89), ajudando-me  a sistematizar um pouco este artigo, propõe cinco condições para a formação de um intelectual: 1) tem de irromper qualquer coisa de novo; 2) esse aparecimento não deve estar apenas localizado numa obra: 3) a unidade do percurso não deve ligar-se a uma tese mas a um problema, algo que dê a pensar, que exija uma abordagem plural; 4) esse problema não deve ser principalmente um problema especulativo ou filosófico, mas qualquer coisa de mais “necessário e cego [aveugle]”, algo que venha de fora do pensamento para nos obrigar a questionar as mais sólidas evidências; 5) finalmente, importa que instaure um “depois”, isto é, que não cesse de interrogar a actualidade. Além disso, não como um suplemento mas mais como uma condição de possibilidade geral, um intelectual arrisca, não uma ou outra vez, mas sistematicamente, pelo menos sempre que consolida uma teoria e esta começa a ser percebida e vulgarizada, quando isso sucede chegou o momento de partir à aventura, deixando-se inquietar por um novo exterior que promete boas batalhas especulativas. 

Filomena Molder diz que “desconfia dessa palavra”, é uma palavra, continua, “um bocadinho irritante por causa desse fechamento no intelecto.” Além disso, “Não existem revistas ou publicações de saber intermédio, entre o facilitismo e a coisa hermética da cátedra.” Uma ponte entre arte, pensamento e quotidiano, como o fazia Eduardo Prado Coelho.

4- Mas estas caracterizações necessitam do aval de quem é considerado intelectual, vaga ou mais objectivamente. É bastante irrelevante designarmos como intelectual alguém relutante em sê-lo. Neste aspecto, convém ler uma reportagem do Expresso de 21 de Setembro de 2014 (Link abaixo), onde José Gil, Pedro Mexia, Filomena Molder, António Pinho Vargas, António Pinto Ribeiro e Rui Ramos mostram muitas reticências, quase à maneira inglesa, em relação ao termo intelectual. Filomena Molder diz que “desconfia dessa palavra”, é uma palavra, continua, “um bocadinho irritante por causa desse fechamento no intelecto.” Além disso, “Não existem revistas ou publicações de saber intermédio, entre o facilitismo e a coisa hermética da cátedra.” Uma ponte entre arte, pensamento e quotidiano, como o fazia Eduardo Prado Coelho. Rui Ramos começa por afirmar que é um “editor de ideias”, mas conclui que se trata de uma ”figura algo vaga, contaminada pela nostalgia e pelo que nela se projecta de capacidade de organizar e interpretar um colectivo”. José Gil, impregnado de filosofia francesa, continua as tese foucaldiana do desaparecimento do intelectual universal, embora a sua sombra ainda ajude a pensar “uma relação de verdade e de liberdade”. Depois, como se exumasse um figura antiga, diz: “Uma das características tradicionais do que se chamava ‘intelectual’ era abanar os conformismos e ir contra o bom senso, aquilo em que se acredita, os clichés, a mesmice.” No mesmo sentido nostálgico, António Pinto Ribeiro argumenta que “já houve épocas, e tenho um pouco inveja disso, em que os intelectuais se permitiam ser portadores de um princípio de potência, de energia.” Pedro Mexia, lapidar, “Não me vejo como um intelectual”. Do mesmo modo, António Pinho Vargas, “Não sei o que isso seja”. Há ainda os lamentos sobre a ambivalência em relação às multidões, fascinantes e desprezíveis, ou à especialização dos pensadores. Mas concordam que os dois mundos onde hoje se exerce o métier de intelectual são o dos média e da Universidade. Outro bom articulista português, Vítor Belanciano (Público), critica também o intelectual especializado, contrapondo-lhe o imperativo da rua, quando, por exemplo, Zizek vai ao encontro de um público alargado. Aqui, “As pessoas refugiam-se na especialização e nas universidades utiliza-se uma linguagem difícil. Não se traz o debate para a rua […] Em Portugal ainda todos querem ser engenheiros e os burocratas reinam nos lugares de poder.” (Público de 05/08/2001). Mas será, Vítor, que a rua quer ouvir os intelectuais que forem ter com ela?

Conclusão: a figura do intelectual é inseparável da do anti-intelectual, quando queremos usar uma caricatura insultuosa, podemos simplesmente chamar “intelectual” ao nosso detractor. Por outro lado, o termo pode trazer proveitos materiais e simbólicos a quem o imprima na pele, desde que seja reconhecido por alguns mandarins. Ao mesmo tempo, dentro da ambivalência que referi há pouco, persiste uma imagem idílica do intelectual como alguém que defende desinteressadamente os valores da justiça, da verdade e da liberdade. Não uma verdade universal, mas, seguindo Foucault, a sua verdade, veracidade, dizer-verdade, falar franco, instaurando uma relação entre o verdadeiro e a democracia (Foucault dava o exemplo de Robert Oppenheimer, que passou do projecto Manhattan a um grande crítico das armas nucleares). Talvez tenha sido isso que fez Sócrates: nunca se inibiu de dizer aquilo que realmente pensava, desagradasse ou não aos atenienses, arriscando, de verdade, a própria vida, jamais alienando a sua autonomia e batendo-se pela justiça. Isto é o que mais me interessa, reviver um modelo de cidadão culto que intervém publicamente para defender a justiça, a verdade e a liberdade.

Links:

Os intelectuais de direita estão a sair do armário

Para que servem os intelectuais?

Os intelectuais sob escrutínio

O intelectual acabou?

Contra o fim dos intelectuais em Portugal

Pedro Mexia. ‘Não sou nem quero ser um intelectual’

Os intelectuais e a superação da crise nacional no início do século xx em Portugal

Os intelectuais

O regresso dos intelectuais

Qu’est-ce qu’un intellectuel?

The Role of the Public Intellectual

What does it mean to be a public intellectual?”

Who Is a Public Intellectual?

[1] Cf. Le Magazine Littéraire 553 de Março de 2015, pp. 90-91.

[2] Mesmo assim, há selectividade. Em 2015, a revista britânica Prospect consultou os leitores acerca dos maiores intelectuais mundiais do momento, sobre 100 nomes propostos, eis o resultado, do primeiro ao décimo, respectivamente: Noam Chomsky, Umberto Eco, Richard Dawkins, Václav Havel, Christopher Hitchens, Paul Krugman, Jürgen Habermas, Amartya Sen, Jared Diamond e Salman Rushdie. Lamentamos a ausência de, por exemplo, George Steiner, Peter Sloterdijk, Bruno Latour, Bernard-Henri Lévy, Slavoj Zizek, Vargas Llosa... ou os nossos Eduardo Lourenço, José Gil e Filomena Molder.

[1] Cf. Le Magazine Littéraire 553 de Março de 2015, pp. 90-91.

 

[1] Embora Jacques Le Goff coloque o nascimento do intelectual na Idade Média (cf. Les intellectuels au Moyen Âge).

 

Crítico de sensações

O teu mijo deve saber a mel, suspirava ele, vermelhusco, atarracado, meio a sufocar dentro do colarinho apertado. Vendia-lhe pelo eBay as minhas cuecas usadas, ruçadas. Quanto mais encardidas, melhor. Cobrava vinte euros pelos portes de envio, mais trinta ou quarenta pelo produto vendido, uma fartura ao fim do mês. Que importava o dinheiro se as cuecas conservassem uma fragrância ou uma emanação da essência orgástica feminina, como soprava ele, iluminado por omnipresente gravata dourada com a sigla T.A.N.G.A estampada na diagonal, totem exibido pelo mais destacado vendedor de seguros associado a firma sediada em Vila Franca de sei lá quantos. A internet constituiu trampolim para faustosos jantares, mariscadas, gambas de meio metro salpicadas de alho frito, pratadas de borrego regadas com jarras de vinho tinto fino, para mim aguarrás, mistela. Narciso, agente de seguros vip, garantia de apólice barata, pau para toda a obra, assim se apresentava este romântico envergonhado, a estender cartão da firma e a corar cada vez mais, quase a explodir. Submisso até mais não, gaguejava sem levantar as pestanas da mesa ou do volante ou da linha contínua a dividir a estrada. Superlativa astúcia e meticulosa planificação requereu arrancar um primeiro beijo. Perguntei se tinha réstias de bacalhau no queixo e, quando o Narciso Valdemar, eis o nome do pitosga, se aproximou para milimétrico exame, estiquei a língua e paralisei com os dentes aquele bigode fujão, a esbanjar pujança. Nasci astuta. A avó Clementina, que deus a guarde ou prenda para sempre, bem dizia que esta menininha aqui nada valia, e eu acolhia as suas palavras aparentemente insultuosas como um canudo académico. Nada valer é sinónimo de esperteza. Valdemar fugia de contactos físicos desses de fundir bocas e fluidos e de apalpar nádegas e de puxar cabelos e de gemer à custa de tanto entrelaçar pernas e de galopar e de truca, truca. As camisas azul bebé impecavelmente engomadas não se lhe desfraldavam. Aquela braguilha de aço intransponível era como um templo sagrado que apenas o credenciado sacerdote manejava. Narciso Valdemar era uma espécie de crítico literário ou artístico ou de esteta vocacionado para a contemplação e para as mais puras sensações. Trincava-me o salto dos sapatos e tinha erecções se o apodasse ao telefone de focinho de porco, pança de estrume ou testículo de rato, e morria de prazer se o filmasse vestido de mulher a limpar o pó. Ensinam os desgostos amorosos que tendemos, seres humanos, a desvalorizar uma felicidade que, não sendo absoluta, é tão real quanto as nossas tão queridas depressões. O velhote era doente por mim. Queria que o tratasse por pila pequena, pila murcha. Oferecia-me vibradores prateados. E eu adorava as prendas e a sua aversão ao ritual de acasalamento, e ainda mais o adoro depois de termos tropeçado um no outro em plena rua Augusta, encobertos por um céu cinzento de Novembro. Ele, condicionado pela mulher e pelos netos, pedia desculpa pelo encontrão e fingia não me conhecer. E eu, tratada na terceira pessoa e por senhora, perdão, cara senhora, de repente excitada e apaixonada e perdida, corria para os meus vibradores ou para os meus sonhos, chorava pelo Valdemar, o poeta, o Van Gogh dos prazeres sexuais, o homem da minha vida. O homem que não voltei a ver.

Três mandamentos

para um propenso desígnio da sorte:

fazer um filho
plantar uma árvore
escrever um livro

a criação no tempo na angústia mais pura
— os quartetos por ler no terraço
goro invocado a nome na cabeça literária
    

para um intenso domínio da arte:

plantar um filho
escrever uma árvore
fazer um livro

o ato de enterrar o quê e o quanto puder  
à guisa de informação: iodo e tutano
para o desespero pelo idioma nos olhos


para um pretenso declínio da morte:

escrever um filho
fazer uma árvore
plantar um livro

até que se veja o ser revivo relâmpago
irregular e tão útil: cavalar
corrigido e aceito pelo crânio turquesa 

ordens expressas:
recordar remanejar transgredir o orfeu


on the road

hoje faziam na cidade mais de
quarenta graus, quarenta graus
de inferno neste porto onde chove
o ano inteiro, as ruas tóxicas
incêndios invisíveis a permanente  
memória de coisas antigas
queimadas à superfície dos olhos, 
tudo sem chama que se veja, 
o suar imóvel a tortura dos corpos
inchados transportes públicos a chiar
de raiva quebras de tensão depois de almoço
cigarros a meio pela escassez de oxigénio, tu que te foste
vão vinte e oito dias em combustão, 
estúpidos como adolescentes e borbulhas
que crescem sempre mais feios
no dia seguinte. estes dias  
em que por cá fiquei ou nem isso, fui ficando, 
abandonada à ideia de mim mesma abandonando-te, 
tu chegares agora, com aviso mas sem que contasse, 
fresco sólido tocado pelo sol
"i'm already on the road, hun" 
e aqui eu, pálida-menina-de-escritório, (como se faz  
para parecer feliz de repente?) 
tenho esta vergonha de avisar que o incêndio  
vem comendo as entranhas da cidade, do meu cheiro
a cansaço, disto de não saber como te chamar
e por isso falar de ti  
menos & menos, 
isto: 
não saber se abraço beijo se ambos
querer de ti tudo  
se ficares, não querer nada  
quando abalares, isto não era
para ser assim nós não íamos ser
esta coisa intangível este plástico  
a queimar devagar as paredes, 
a cinzentidão da manhã que hoje asfixia a cidade
um fogo demente que
ninguém vê ou extingue, terei de explicar melhor, 
eu só quero que volte a chover o ano inteiro, 
que se foda o sol a primavera essa coisa dos dias felizes, 
you say: "i'm already on the road, hun" 
but i? 
i didn't sign up for this.