Para uma ontologia da gralha - uma entrevista de Cassandra Jordão

Um poeta que colabora frequentemente na Enfermaria 6 foi apanhado a cometer uma das piores infracções que se pode imputar a um autor. Este Dostoievsky com sotaque transmontano submeteu-nos um poema onde se podiam identificar pelo menos duas gralhas, sendo que uma o era claramente e a outra, sendo duvidosa, o meliante, depois de questionado, acabou por confessar que aquele sujeito não reflectia o plural do complemento determinativo coisa nenhuma. O frequente conteúdo explicitamente sexual dos poemas do autor não nos perturba, as gralhas, no entanto, são manchas morais à superfície do texto, que na tradição portuguesa denunciam um défice de inteligência contra o qual não se pode argumentar. Perguntem ao vosso professor de clássicas do liceu, alguém que nunca se sentirá fascinado por vocês conseguirem retroverter para um latim ao estilo de Vergílio vinte frases de subordinação complexa, mas que nunca se esquecerá que quando vos conheceu vocês eram uns merdolas incapazes de explicar o que raio fosse um nome predicativo do sujeito. Resolvemos examinar esta questão com o poeta em causa, tirando evidente vantagem do facto de agora estarmos informados que existe um certo défice de atenção da parte do autor. Esta entrevista é um contributo para uma psicologia e ontologia da gralha.

Quando questionado acerca da origem das gralhas no seu poema, você afirmou que escreve os seus poemas meio em transe e daí as gralhas ocorrerem. Devemos assumir que depois de aturar o Nobel da Literatura para Bob Dylan (acontecimento que desautorizou toda uma facção de intelectuais da nação que apreciam uma leitura ordeira, baseada na autoridade e no respeito de e por uma certa definição de literatura), temos agora de acreditar que as suas gralhas se devem a uma certa pressa de capturar o mais rapidamente possível o que quer incluir nos seus poemas, em vez da explicação mais natural, de que isto é evidência de um défice de 50 pontos no seu QI?

Às vezes é mesmo porque estou bêbado. Escrevo muitas vezes bêbado. Entra-se melhor no tal transe de que falei. As palavras não se puxam, elas escorregam bem quando a digestão é feita em condições lá nas circunvoluções onde moram os pontos todos, os poucos, menos esses 50. Também é a pressa, não de chegar ao fim do poema, mas de apanhar as palavras todas enquanto elas caem. Algumas ficam meias penduradas entre a ignorância natural e a lentidão dos dedos. Afinal não estudei para poeta, foi um título que fui roubando desde a adolescência.

Não é fácil continuar a ler um poema depois de topar com uma gralha. É extremamente perturbador para a leitura. Você podia ser o Wallace Stevens, ainda assim para alguns dos nossos leitores não seria fácil continuar a ler. Concordaria que as pessoas mais inteligentes do que você, ou seja, todas as que apanharam a sua gralha, têm agora o direito de ser paternalistas consigo?

Sei que deve ficar a latejar nos cérebros dos génios, de tal forma que o resto do texto perde nitidez. Como quando acendemos um cigarro na escuridão depois dos olhos estarem adaptados à ausência de luz e parece que tudo se apaga outra vez. Se não vivem em casa dos pais, podem ser o que quiserem. O benefício de ter pouca massa cinzenta é que dá espaço para criar um túnel de orelha a orelha.

Gostaria de partilhar connosco alguma gralha particularmente embaraçosa?

Cu com acento, repetido em todos os cus do meu primeiríssimo livro… e foram muitos. Era jovem…

O poeta romano Horácio diz que os poemas deviam esperar 8 anos na gaveta antes de saírem cá para fora. Publicar é cada vez mais imediato. No seu caso, acha que esta solução o pouparia à gralha? Haveria aí alguma vantagem?

Os poemas corrigem-se sozinhos nas gavetas? Se eu soubesse disso antes… Devo ter poemas imaculados no meu quarto em Trás-os-Montes. Estão na gaveta há mais ou menos o dobro do recomendado por esse gajo.

Compreende que andem para aí uns quantos leitores da Enfermaria que poderão entender a sua gralha como uma homenagem a Donald Trump (uma alusão à incapacidade do candidato republicano de praticar a hipotaxe). O que tem a dizer sobre isso?

Bó, tenho muito pouco a dizer: wrong! Que s´arrafoda o Trump.

Mínima animália

1.

as nuvens são eternas
filosofam os bois
pastando o pasto efêmero
que lhes coube pastar


2.

impermeáveis às pérolas
os homens preferem
a lama

os porcos, poetas
ainda que parcos
persistem


3.

mestres na arte da espera
os abutres sabem
tudo o que vive
um dia
carcaça será


4.

pousado ao lado
de uma folha
o louva-deus
parece rezar

a que deus rezaria
senão à folha
da qual ele acredita ser
imagem e semelhança?

 


5.

coube ao cavalo
a concisão do coice


6.

a astúcia da linha reta
o morcego dispensa
antes prefere
a vereda cega
em que se perde
e pensa    


7.

a galinha
agonizou
antes de
morrer

se não estivesse
morrendo
de verdade
o pátio seria um palco
e ela, a galinha
uma grande canastrona


"On Chesil Beach", um livro sem acontecimentos

On Chesil Beach, de Ian McEwan, não é, ao contrário do que se diz na capa, um livro de cortar a respiração. A bem dizer, pouca literatura corta a respiração. O processo a partir do qual se obtém prazer da literatura está ligado a algo que se poderia apelidar de cansaço. A literatura cansa e derruba o animal, a frase deliciosa convence, sossega o estômago, e desta maneira se vai de livro em livro, a lutar contra a selvajaria de estar vivo,  a preparar o olho vencido para o dia seguinte. Um dia, num concerto de Carlos do Carmo a que por acaso assisti, reparei que o artista detestava as palmas do público e exigia silêncio. Retirar prazer da literatura tem um pouco que ver com a irritação contra as palmas manifestada por Carlos do Carmo. Não há palmas nem paragens de respiração na literatura. O êxtase é silencioso e comedido. O que encontramos nesta novela é intensidade psicológica, cenas, momentos, pedaços de vida descritos a partir do que se sentiu. Estados de alma, sensações, como o nojo sentido pela rapariga ao ser assaltada pelo linguarudo beijo do marido. Longas e belas são as linhas que nos contam que aquele beijo e aquela língua são tão bem-vindas na boca da mulher como uma martelada nos dentes. É disto que este livro a lembrar Stefan Zweig trata, portanto, de sentimentos, de delírios. A história é simples e só um grande escritor conseguiria mantê-la durante duzentas páginas. Um jovem casal recém-casado, e aparentemente muito apaixonado, parte em lua de mel. Ele quer perder a virgindade, ela nem suporta a palavra sexo, a língua e a mão dele pousadas na sua perna nauseiam. Duzentas páginas de avanços e recuos mentais. Houve uma vez alguém que resumiu uma obra de Hemingway como a história de um velho que sai de manhã para pescar e regressa com um balde vazio. Pois bem, esta é a história de um casal que se casa e separa no mesmo dia por a noiva repudiar qualquer contacto físico. Uma história que sugere que o casamento pode ser uma experiência a dois, que pode excluir o sexo mas incluir amor. 

"Perhaps I should be psychoanalyzed. Perhaps what I really need to do is kill my mother and marry my father."

Hurricane

Ainda deve estar entre aqueles meus primeiros poemas, o/a “Hurricane” do Bob Dylan
Em papel reciclado e a tinta azul, que era sempre a que sobrava no fim do tinteiro,
Numa gaveta dominada por humidade e segredos que só os fungos agora conhecem,
Era uma canção, poetas americanos nunca tinha lido e o inglês do nariz ainda me custava
A entrar nas orelhas geadas, parecia-me um conto, mas era em verso, cantado,
Aquele mp3 que o amigo francês encontrou no Napster e só não se gastou
Por se ter perdido entretanto entre cds riscados e disquetes desmagnetizadas,
Ainda devo ter grandes obras imortais perdidas naqueles bits obsoletos,
Pensem nos vossos cérebros fossilizados, revoltados com aqueles títulos
De imortalidade atribuídos por mortais, revoltados da mesma forma com a fome
E a fartura dos outros, quando o estômago moderadamente cheio de reis,
Tenho lido desde então tantos poemas que não são canções sequer, só merda,
Escrito provavelmente ainda mais, mas nunca tive outras ilusões além da purga,
Toda a revolta dos poetas agora, lembra-me o Gregory Corso indignado
Porque alguém tinha escrito “poet” no túmulo do Jim Morrison,
Se calhar com inveja de um artista menor ser maior que a morte, “he beated the dust”
Parece-me que todos os poetas queriam ser na verdade rockstars,
Que todos lhe comem do prato dos restos e não conseguem parar de rosnar,
Ao mesmo tempo que se comovem com os cacos dos sonhos alheios e galinhas mortas,
Nada chega para todos, onde um está só o amigo cabe, amigo do ódio de estimação,
Imparcialidade impossível nos olhos amargos de dedos pesados pelo brilho de lata,
Cantor não entra, palavras só as da minha cor, em papel é que é,
A cantar ou a rosnar, de papel ou de ar, lembrem-se que
Cabemos todos neste barco de ilusão em direção ao esquecimento.

Turku

31.10.2016

 

 

Já sois chegados, já tendes diante a terra de riquezas abundante

 

José Quarenta, de quarenta anos, antigo José Trinta e Nove, de trinta e nove anos,  lisboeta, desempregado, desterrado em apartamento T-0 em ruínas decorado com bolor e humidade nos tectos falsos e nas paredes e nos móveis e na roupa pendurada no armário, encolhe-se na cama a regressar ao útero materno, morde os joelhos, os joelhos ensanguentados, joelhos feios como a minha cara de velho, falhado, cara de quem não é bebé e perdeu dentes e esperança, acima de tudo esperança, que é o que confere graciosidade a esta mescla de poros e fluidos e ranço, ranço.  O corpo a doer no peito, é isto a ansiedade, um tornado a apertar o crâneo, desesperar por não ser hoje, por não ser amanhã o homem que não se foi em tempo algum. José remastiga palavras de William B. Yeats que descrevem o moribundo como um animal sem temor nem esperança, palavras a zoar desde 1982, ano primeiro de abandonos e de doenças nervosas, sente-se aquele moribundo seco para sensações boas ou más, seco para sentimentos, seco como uma poça exposta ao calor de julho, lama feita barro que se desfaz mediante pisadela.  As semanas passam, ora bolas, semanas a passar, que lugar-comum, que falta de domínio linguístico não ter outra forma de dizer que as semanas se sucedem sem que algo diferente das costumeiras tragédias diárias converta o vazio existencial numa vida interessante e bonita e digna de ser vivida. Os cães ladram, raio dos bichos, nem a lei da pantufa os apascenta, cães frustrados, por passear, a largar fezes pela casa. O carteiro, santo e gordo carteiro, a dormir na caminha até às duas da tarde, sem trazer as cartas fundamentais, cartas das namoradas, por exemplo, cartas que não sejam para pagar a caríssima electricidade. Não o chamam para entrevistas de emprego, para isso não me chamam, ai se chamam, e os caminhos para o dinheiro, que caminhos para o dinheiro? Ao ler numa manchete de jornal que o pessimismo é uma profecia que se realiza, pensa na quantidade de vezes que viu realizadas as suas profecias. Tantas vezes a avistar o apocalipse, a ser profeta da desgraça, a viver o pior, a saborear dores que mais ninguém sofre. José afunda a testa na almofada e diz deus e arrepende-se porque deus não existe ou porque deus é demasiado grande ou porque nada, jura que um dia mata o caniche, o idiota, e desata a correr até à linha do comboio, para fazer o quê não sabe, mas até à linha do comboio, talvez para morrer esmagado (mas o som dos ossos a partir, e a imagem dos olhos nos sapatos do transeunte desencorajam e não devia ser assim tão difícil morrer). Eu o cão, que cão, realidade, estas imagens na cabeça em remoinho, a confundir o passado com o futuro, o menino de quarenta anos a escorregar para dentro da barriga da mamã embarcada séculos antes, mais concretamente em 1504, para Alcácer-Quibir. E nada mais do que isto diz respeito a esta vida.