Quando as coisas acontecem

Quando as coisas acontecem, nunca é bom perguntar “porque é que aconteceram?”. Concentrem-se na expressão “as coisas”. As coisas não é bem “tudo”, pois não?...

Bom, se perderam o fio do meu raciocínio, há sempre que recordar a história de uma certa menina que disse, olha lá, como é que vais sair do labirinto sem um fio?...

É claro que a maioria das meninas nunca se lembraria disso. Ela lembrou-se. Como recompensa, foi traída. Estranham os factos?... Só se não pertencerem à elite. Nesse caso, avancem para a alínea b).

b) Não sei quem é Ariadne. Conto-vos por palavras minhas: havia um homem muito bonito, um actor famoso, que decidiu que queria entrar num sítio difícil. Ela, claramente apaixonada, lembrou-se do óbvio. Ele queria tê-la na sua cama. Anuiu. Foi ao sítio difícil, por sugestão dela, e por causa dela (uma pista), conseguiu voltar. No fim, já estava um bocado farto, por isso disse: adeus! Ela não ouviu, e por isso sentiu-se traída. Quem achar que isto é uma versão simplista da história, avance para alínea a)

a) Nunca perecebeu(este) porque é que alínea a) se chama “alínea” e não simplesmente “línea”? Avance para a alínea c)

c) Alíena c). Quando na antiguidade alguém dizia: estou a ler da linha c), dizia, em latim, porque todos na antiguidade falavam latim, “a linea c”. É claro que nessa altura “c” soava a “quê?”, o que podia ser confuso.

Passando todos estes prolegómenos, podem-se estar a perguntar o que é exactamente “acontecer”?

Deixo-vos com este pequeno enigma: quem são vocês?... Se por um instante pensarem que nunca haverão de morrer, estão dentro da linha corrente e coerente de pensamento. Se por um instante duvidarem, asseguro-vos: estão fodidos. Vão morrer.

Por isso, se acontecer alguma coisa na vossa vida, não se esqueçam que “coisas” é muito mais grave do que acontecer. Acontecer, toda a gente acontece. “Coisar” é que nem por isso.

Com os melhores cumprimentos, e esperando resposta em relação ao Anexo B,

Pedro de Braga Falcão

Momentum

I.
 
a chegada do interlúdio nocturno dispara na direcção de
um candeeiro intermitente à luz de todas as vezes. 
 
- são instantes fotográficos
 
em que a espera medeia o que lhes cabe nas mãos, ou
nas lareiras dissipadas pelo ventre do consolo da noite
 
são muros que se inundam à primeira oportunidade de errar. 
 
existe o salto e uma lebre espreitando na esquina
o torpor felino de um nome esquecido um
pássaro atordoado numa gaiola de estrelas. 
 
a penumbra e a sombra quando chegam são remorsos de
dois corpos que saem de si e entram em si
trocando de lugar no olimpo terrestre, pintando através dos sentidos a
insígnia profana de existir. marginais
 
um velho cospe para o chão a doença antes da morte lado
a lado com eles, sulcos de uma solidão urgente. 
 
- entre quatro paredes ninguém é feliz de pé. 
 
os ossos são o que mais se gasta a seguir, a pele sucumbe à razão
de nenhuma sensibilidade dizível e o último despojar é a sorte largada
em cruz: 
 
- enquanto o solstício não se anuncia, 
chegar é a melhor forma de  partir. 


II.

quantos poemas pediste neste labirinto pombalino? 
 
agora que nada tens, arrasa-te diante da folha amarelecida rasuras os cantos
com anotações minúsculas  e riscas demasiadamente na vertical movendo a
cabeça como quem espera a aragem vinda de longínquos poentes. 
 
a pergunta esmaga-te a gramática cardíaca e tu
já só consegues prosar uma mudez insuportável.  
 
só o poema te conhece. só na poesia te reconheces.  
 
afinal quantos poemas perdeste no engolir desta espiral
necessária? 
 
o vício precisa-te. tu retribuis-lhe e o vício-versa
 
na varanda o ofício do
cansaço registava o começo
das manhãs. 

 
a demência e o amor abrem-te por fim, 
os seus caminhos nas tuas veias sujas
 
- alcatrão pó e promessas por cumprir – 
 
e tu, 
destituição de fome ou falta de agasalho
 
decides enfrentar o que te consola quando no
palco são já outros que te espiam a ti.

A nudez de Scarlett Johansson com uma nota de Byung-Chul Han

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A Maja Desnuda de Goya, c. 1870/80, inaugura os nus femininos reais, foi uma das primeiras vezes em que o púbis aparece retratado, ao mesmo tempo que o olhar da personagem nos confronta e nos desarma, obrigando-nos a vê-la como um ser histórico em vez de mitológico. Note-se, todavia, que o seio direito está fora do lugar, desafiando claramente as leis da gravidade. Goya sacrificou o realismo da anatomia à, creio, erotização da personagem, o que comprova o fascínio do masculino por esses órgãos que servem a vida.

O texto infra foi escrito em 2011 (introduzi pequenas alterações), ano do acontecimento (suposto roubo e difusão de fotografias íntimas do telemóvel da actriz Scarlett Johansson), revisito-o agora a pretexto de um livro recente de Byung-Chul Han sobre a Salvação pelo Belo (espero recenseá-lo em breve). Uma das teses do filósofo é a do desaparecimento do belo, porque tudo se tornou liso (“O liso é o fio de [Ariadne] da nossa época. Ele liga as esculturas de Jeff Koons, o Iphone e a depilação brasileira”), não há dobras, físicas ou metafísicas, estrias onde alojar a dúvida ou a dor, tudo acontece numa tessitura implacavelmente dócil e fluida, corpos depilados e obras de arte sem qualquer obscuridade ou indecisão, como as de Jeff Koons, desprovidas de profundidade (“Face à sua arte, nenhuma interpretação, nenhum juízo, nenhuma hermenêutica, nenhuma reflexão, nenhum pensamento é necessário”). Ainda relacionado com as imagens de Johansson, diz Byung-Chul Han: “Face à vacuidade interna, o sujeito da selfie tenta, em vão, fazer-se engraçado. As selfies são formas vazias de si. Elas reproduzem o vazio. […] Trata-se de um narcisismo negativo.” Vejamos então o que pensava e agora se actualizou.

“O Jornal El País tem um artigo muito interessante de Vicente Verdú com o título “Scarlett y el púbis”. Relata o pretenso roubo das fotografias do telemóvel de Scarlett Johansson. O artigo desenvolve-se a partir da hipótese desse roubo ter sido encenado. O articulista estranha que tirando fotografias a si mesma, liberta da roupa protectora (que tantas vezes favorece o erotismo), Johansson as tivesse deixado num objecto que facilmente se perde. Já o acto narcísico das auto-fotografias [em 2011, o termo selfie não estava na moda], claramente atravessadas por energias libidinosas, é para ele compreensível, porque essa é a quase-condição para ser o que é: objecto de desejo e fonte de inspiração estética.

Surpreende-o também que tudo pareça tão escrupulosamente encenado, ao ponto de não o ser. Isto é, com a inflação actual de imagens que expõem o corpo nu esculpido em make up (tangível ou digital), um que apareça desleixadamente natural aumenta tremendamente a carga erótica. Além dessa naturalidade, Johansson aparece em lugares e com posses onde os homens normais costumam viver a realidade ou as fantasias sexuais, dando assim verosimilhança ao “sexo óptico” que as fotografias transportam.

Verdú termina dizendo: “Scarlett Johansson, ou qualquer outra com estatuto idêntico, não pode conformar-se em oferecer ao voyeur contemporâneo o mesmo aborrecido top-less de sempre, ou a insignificante morfologia do seu sexo, mas um cenário onde passeia, adormece, pensa, se depila.” Isto é, Johansson “oferece-se” num cenário realista que parece acessível ao “comum dos mortais”. Johansson tem, pois, de convidar-nos para a sua casa e desenhar poses que fazem de cada um de nós o seu voyeur preferido. Abertas a todo o mundo através da internet, estas fotografias dão-se, paradoxalmente, como únicas, autografadas pelos gestos e cenários íntimos, a cada um dos espectadores.

 

Dois poemas

[Dia Após Dia A Nossa Relação Vai Apodrecendo]

dia após dia a nossa relação vai apodrecendo
comos os deuses de Nietzche
muitas tarefas ficaram por cumprir
desde o dia em que partiste
só a luz do frigorífico cheio
pode iluminar de novo este amor
mas aqui em casa já não se pagam as contas há meses
dentro dele guardo ainda o meu coração
que não devoraste por medo de magoar
mas que agora o cheiro de saudade o torna insuportável

retoma rapidamente a mensagem que deixei na linha de chamadas
pode ser que ainda haja algo a salvar
antes de o entregar aos gatos


[Aguento Firme]

Aguento firme
A espera inútil dos dias
O olhar nostálgico sobre o álbum de fotografias onde ninguém encontra a velhice mesmo que o folheie até ao fim
O pó inócuo sobre os móveis que nenhum pano de flanela laranja será capaz de limpá-lo para sempre
O tédio das tardes de domingo presas em teias de aranha difíceis de chegar agora que a mãe deixou de habitar esta casa
O véu da morte essa negra sombra que me cobre o rosto enquanto durmo
A descrença no futuro uma ferrugenta engrenagem pronta a partir-se a qualquer momento
As longas frases riscadas que são o adiamento de um futuro génio escritor que o tempo calará


Elogio de la inutilidad

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“No preguntarme nada. He visto que las cosa cuando buscan su curso encuentran su vacío.” 

Federico García Lorca en “1910”.

Hace un par de semanas, en el parque de Chapultepec, el retiro dominguero de Ciudad de México, se celebraron las jornadas de educación financiera, costeadas por el Ministerio de Economía y promovidas por un sinfín de instituciones de crédito y agencias de seguro. El objetivo era concienciar a los niños y adolescentes mexicanos de la importancia de endeudarse, de hipotecarse, de invertir en bolsa y de asegurar los ahorros. Los paneles informativos insistían en la relación entre futuro, madurez e inversión, con un mensaje sin aristas destinado a los padres de los asistentes: el éxito de su hijo depende de las finanzas familiares. Para los niños el reclamo era aún más zafio. Bob Esponja, Dora Explorada o Snoopy cantaban con una vistosa coreografía aquello de “I love soda, yo invierto en bolsa.” También había talleres para aprender a utilizar la tarjeta de crédito, videojuegos cuya recompensa eran billetes de imitación y teatros de marionetas en los que sus entrañables protagonistas contrataban seguros.

No pensemos que México está lejos, el espacio cuando hablamos de los imaginarios totalizadores del utilitarismo se reduce a una mera representación poética. En nuestro país, sucesivas leyes educativas ensimismadas en la formación de futuro capital productivo han reducido sustancialmente los estudios humanísticos para priorizar conocimientos económicos y pragmáticos. La educación de individuos con capacidad reflexiva y principios ciudadanos ha dado paso a la tortura de la empleabilidad y del emprendedurismo, que han reubicado la filosofía en odas al éxito y a las riquezas y a la historia en una sucesión de etapas oscuras superadas por el emprendedor y el crecimiento. El utilitarismo ha calado el sistema educativo hasta los huesos empezando por los docentes que, integrados en la lógica individual del pragmatismo, estamos sumidos en una carrera de puntos infinitos y pocas veces participamos en actividades que no reporten certificados o complementos autonómicos. (Quién esté libre de pecado…) Nos obsesiona la plusvalía, la noción de que cada acción generará algún tipo de beneficio, de valor añadido.

Este funcionalismo, tan bien reconocido por Nuccio Ordine o Martha Nussbaum para sociedades en crisis que han desmantelado en nombre de la recuperación económica siglos de bagaje cultural, condiciona nuestra capacidad para reconocer los instintos. Estamos programados para concatenar acciones útiles, identificadas por su rentabilidad económica o reconocimiento. Leemos, pensamos y trabajamos con estos fines. Cada minuto es una oportunidad para la rentabilidad cuantitativa que no podemos desaprovechar. Las artes o los conocimientos humanísticos nos distraen del camino de la competitividad o son lujos a los que debemos renunciar en aras de la prosperidad. Esta ceguera colectiva está dinamitando el conocimiento sobre las experiencias y expectativas de nuestra sociedad y, por extensión, el planteamiento de alternativas. El proceso tiene una amplia trayectoria: Montaigne ya se lamentaba que los alumnos de su época lograban declinar la palabra “virtud”, pero no sabían amarla ni abrazarla, lo cual les aportaba beneficios económicos pero escasas herramientas paraenfrentarse al abismo de la existencia humana. Hoy, la victoria de los principios políticos utilitarios ha convertido a los alumnos universitarios de humanidades en kamikazes matriculados en unos saberes inútiles, improductivos y prescindibles.

Los daños colaterales más visibles son la pérdida de nociones culturales e identitarias, la incapacidad de tolerar la frustración o el recluimiento del individuo en prácticas anestesiantes como el consumo o el entretenimiento digital. Pero no sólo se trata de un problema de abandono u olvido del bagaje acumulado de la cultura occidental, sino del alumbramiento de una nueva variante de humanidad, utilitarista, desprovista de elementos simbólicos y de significantes. Es el paraíso jamás soñado por los burócratas: nuestras aptitudes y saberes son el resultado de un enunciado, no condición preexistente al certificado.

Los agentes culturales nos hemos refugiado tradicionalmente en discursos autocomplacientes basados en la redención individual. El mundo podía irse a pique mientras nosotros degustábamos Los Ensayos o el Juan de Mairena. Nos consolaba saber que pertenecíamos a un selecto e invisible club que cultivábamos los saberes sin apenas encontrarnos y quemábamos ofrendas a la belleza, a la curiosidad y al desarrollo del espíritu. Esta estrategia fracasada ha dejado a la intemperie de políticas antropófagas e irresponsables los conocimientos y las prácticas humanísticas. Quizá haya llegado el momento de sustituir el escudo por la espada y emular a Attillio Maggiulli, quien el 23 de diciembre de 2013 en París empotró su coche contra el Elíseo para llamar la atención sobre el desprecio general del gobierno por la cultura y en particular por su proyecto Théâtre de la Comédie Italiénne. El conjunto de saberes que nuestro tiempo ha denominado inútiles es fundamental para la perpetuación de modelos sociales reflexivos y críticos, para comprender el entorno al margen de las lógicas utilitarias. El arrinconamiento de las humanidades nos deja a la intemperie de discursos nacionalistas, xenófobos, sin memoria ni herramientas de contestación, abocados a un continuo presente, donde las estrategias de seducción política y mercantilista encuentran el campo expedito para su extensión. Corresponde a los anónimos cultivadores de los saberes inútiles contrarrestar los imaginarios dominantes y propiciar un renacimiento que asiente nuestra sociedad en cuestiones más trascendentes e integradoras que la mera utilidad, principio que desde Cervantes a Theóphile Guatier o Leopardi ha sido combatido por su rotunda capacidad para multiplicar la estupidez humana.