Ler Friedrich Nietzsche

A obra de Nietzsche não é composta de textos-linha ou textos-superfície, são antes textos-palimpsesto que é preciso explorar a partir de uma multitude de perspectivas, talvez como se explora uma paisagem ao caminhar longamente através dela, abandonados ao acaso (sem que isso defina qualquer incoerência infecunda). No interior de cada texto exigente há deslocamentos de sentido, ambiguidades, ironias, contra-comunicações; uma infinidade de instabilidades, da pluralidade das palavras à pluralidade dos contextos. Aliás, quando um texto se dá à compreensão de uma só vez, não vale qualquer esforço de interpretação.

Mas não se devem abandonar certos protocolos fixados pela linguagem e desmerecer totalmente as indicações filológicas nietzschianas, nomeadamente a de ler lentamente, ruminando. E talvez os textos de Nietzsche já não sejam sequer um tecido verbal, parecem fragmentos cósmicos dispostos numa autoridade grave, vigorosos e implacáveis. É por isso que são dignos de comentários. E num bom comentário haverá uma espécie de fusão de horizontes entre Nietzsche e os seus leitores? Não, ele estimula ao avanço (em modo batalha, temerários), atropelando-o se for necessário (embora as suas resistências sejam proverbiais, mais do que um caiu do céu ao julgar planar por cima da sua obra, ou sofreu de vertigens aterradoras ao perceber que a altitude era excessiva, trágica). E quando isso é feito, quando pelo menos se desenha essa tentativa, então talvez Nietzsche pense em nós, dentro de nós (Claude Lévi-Strauss dizia isso em relação aos mitos, essa vida pensante que sacode todas as grelhas cartesianas, o sujeito é tomado pelo mito e não o contrário). Se assim for, não se esqueçam que terão de pagar um preço elevado pela liberdade de serem aquilo que vos apetece (com a excepção de cruzados de verdades indiscutíveis).

Áries ascende em Peixes; "Scarface; Um sotaque baiano resolveria quase tudo

Áries ascende em Peixes

Uma delicadeza de repente nasce
vestida pelo suspense de uma guerra,
colhida pela primavera secreta
que só as corujas conhecem. 

É flor, mas pode ser miragem. 
se chover, abriga a humanidade
enquanto desconfia do calendário,
das promessas e do impossível. 

Quer quase tudo, vagueia às vezes
e volta lúcida, tão sabedora de si
que nem parece que dorme. 

Tão brilhante a chama, não se vê
o que só o travesseiro sabe:
se Mulan tiver que se entregar
que seja a um guerreiro. 


“Scarface”


I
Teus olhos precisam de deserto

Tu preferirias tirá-los e finalmente
separar um do outro, deixando o direito
mais confortável pra ensiná-los a justiça ou
deixar o gauche queimar como bruxa ou

Sentindo prazer em enterrá-los vivos
enquanto o resto do corpo cega

Adivinhar que se debatem nos grãos
que arranham sem dó como gatos

mas não 

II
Repousas os olhos na mancha
que me corta o umbigo, sente
que se debatem – pombos
esfomeados – tremelicam de leve e tu ficas
feio, não sou alquimista, tu saltas
no meu corpo e me preenche
de cobertas até que começo
a te ensinar o fogo

Só então tu olhas o Sol
recusas mais uma manhã

Meu corpo te mancha de terra.

III
Teus olhos precisam de um
deserto como a mancha
do meu umbigo precisa
dos teus olhos me molhando

Teus olhos me comem e
me alimentam

Te enraízas cada vez mais

Te afundas

IV
Se eu te desse um deserto
talvez a tua torneira de açúcar
fosse a cereja do bolo 

Não a loucura que respinga
Não a loucura que incomoda

Tu enfim me desertarias

mas não

V
O amor ignora o coração
porque fica preso nos olhos

VI
Manchaste-me.


Um sotaque baiano resolveria quase tudo

O calendário fantasia os inícios
colocando açúcar

são tão estúpidos os feriados:
começam limpos e acabam
com copo de cerveja
na roupa nova

bebo ayuhasca e camomila
em feriados apaixonados
para despertar

ninguém para culpar pelas mãos
geladas ainda
transo com detalhes
sempre fria
 
tenho medo de vomitar o medo

se eu ganhasse o War
dançaria na linha dos trópicos:
ensaio o sotaque baiano

quando acabar o poema
escreverei calmamente:
ter útero dói

não fabrico amor.
como se vomita?

um útero é sempre
um escândalo:
A DANÇARINA DESMEDIDA
CANTA GIL NA LINHA
DO EQUADOR

E ele deixou quem berrava

                    E ele deixou quem berrava                   
queimar em vão & sem combate serem cinzas
enquanto o sol imerge & a noite roda o dia

Assim sem chance de causar mais morte
aos poucos passa a ira as mentes se arrefecem
tal como um peito ferido é mais feroz                           
quando é recente o golpe a dor & o sangue ainda entrega
aos membros movimento & os ossos não repuxam
a pele — mas quando a mão estanca então
o torpor ata as mentes os membros & retira as forças                            
depois que o sangue frio aperta nas feridas

Sedentos primeiro procuram por fontes secretas
cavando terras ribeiras subterrâneas
perfuram chão com enxadas ancinhos
com suas armas & o poço escavado no monte                   
desce ao profundo dos campos irrigados

Mas nem no curso oculto os rios ressoam
nada reflui das pedras abatidas
nas rochas nem orvalho se destila
nem veio emana dos cascalhos
jovens exaustos de suor
são retirados dessas minas
na busca pela água fez-se o calor
intolerável & os corpos fatigados
não se bastam de alimento & abandonando
as mesas assentam sua fome — se um trecho
do chão oferta um solo que se encharque
espremem sob a mão o sumo do charco
se encontram pelos cantos o preto dum limo
soldados se matam por goles & moribundos
matam a sede como vivos não fariam feito feras
secam o gado & quando leite acaba chupam
da teta exausta a borra do sangue então esmagam
ervas caules colhem ramos orvalhados
& apertam toda a seiva dos brotos
até a medula — felizes são os corpos
daqueles mortos pelos inimigos
& que infectam águas de outros rios
enquanto expõem ao dia o pus dixit Lucanus

que beberão homens de César

O fogo abrasa os órgãos a boca seca
a língua escama-se áspera & enrijecida
as veias mirram o pulmão ressequido
encerra seus canais suspiros duros
escavam mais os seus palatos & a boca
se arreganha a sorver o sereno da noite

                        esperam chuvas

que corram onde antes nadavam
o olhar se fixa na secura das nuvens
sedento o exército contempla
ali tão perto os próprios rios

Há que apenas saber adoecer; Até que a fenda desabe; Seria querer muito para uma latinoamericana?; Mais forte que o açoite dos feitores; Quando stanislavski leu pela primeira vez a gaivota

Há que apenas saber adoecer

Não sinto sua falta
Quando posso dela
Tomar uma forma
Da qual tiro prazer

Tudo que não é arte me aborrece 

Como agulhas de gelo
O amor muitas vezes
Toma a face da violência 

Esmagada
Pela simples materialidade do meu corpo

Sou só 
Como Franz Kafka 

E até mais
Por ser mulher

Quão pequena me torno diante das abelhas!

Transformo minha doença em arma contra esse mundo
Ninguém como eu reconhece uma prisão
Nem Franz Kafka 

Agora não tenho recursos para análise
Tão consumida pensando em você 
Não escrevo

Sonho que minhas mãos são inflexíveis
E tento em vão empunhar
O medo insuportável de ser feliz ao seu lado

Me sinto exposta a tudo quanto você está protegido

Já não tenho salvação enquanto mudar seja
Transplantar os olhos

A escrita não cura a doença do mundo
E já nem posso chama-la de minha
Mas sem ela é impossível viver


Até que a fenda desabe


Movida por invisíveis galopes - busca agônica pelo divino - 
Onde aqui dentro tudo é tão apertado?
Onde aqui dentro - espaço de mundo imenso - me sinto cercada?
Onde habitam carvalho e seiva - labaredas em trânsito - 
Onde você fogo incontido lambendo meu peito
Onde você ripa seca e seus gumes
Inscrevem em mim o impossível:
Aquele que não para de se não inscrever


Seria querer muito para uma latinoamericana?

Tenho um amigo chamado Glauber. Sempre que desejava agradar se dirigia aos amigos assim: Como vai mestre. Elegante como sempre o mestre. Mesmo que fosse o mais esculhambado dos amigos, como o era João, que entendia naquela fala uma necessidade de tocar o barco. De modo que estamos todos à deriva sinto-me muy íntima de ambos. O delírio do Glauber era fazer cinema com imagens. Ele dizia: Palavra é coisa de teatro e não cinema. Glauber era um homem sem claquetes. Costumava interromper os amigos nos momentos mais inusitados, instaurando uma atmosfera de conspiração que o acompanhou por toda vida: Não diga que me viu para a sua segurança pessoal. Deixando o ambiente logo em seguida. Eu que não cheguei a conhecer o Glauber entendo perfeitamente seu sentimento asfixia. Sentimento esse que contribui em muito nas mortes prematuras. Sei também que o BR tem essa mania de maltratar seus melhores filhos. O máximo grau de vitalidade anárquica que esse corpo cansado atingiu foi decidir que não quer fazer um livro que vá tomar um ou dois dias do sujeito lendo pra ele ser enganado. Só pra tomar dinheiro alheio em troca de alguma distração inútil. Uma das poucas escolhas que um escritor pode fazer na vida é seu leitor. Quero escrever pras pessoas que queimam a vela dos dois lados, saca? O mínimo que se espera de um bom leitor é que ele ande nu na sua intimidade. O mínimo que se espera de um bom leitor é que ele tenha um amor especial pelos esquecidos e os que deixam de escrever. Sendo princípio e fim escrevo porque não há Deus ou homem que seja como Deus pra mim.


Mais forte que o açoite dos feitores

Uma sombra vespertina me contagia
Não se trata de mandar ou não notícias
O único modo de governar cada brecha
Desse tempo falho é interrompendo-o
Minha boca é morada ácida
Quero uma figueira sem pássaros
Para gozar dos frutos e anseios
De querer ser grande
A colher já não cabe no bule
Sua espada já não cabe em meu ventre
E atravessa cortando sua manhã 
Perpassa grades
Parte chaves
Assim invisível incorpórea
Vou ao termo
Posto de pé o próprio amor inflamado
Vai a pique
Você se queima
Mas sou eu quem sai ferida


Quando stanislavski leu pela primeira vez a gaivota


Temo que no fim o dinheiro valha mais que a arte e suas ideias. Permaneço distante de toda ação libertária no bangbang tropical. O que alimenta minha culpa é isso que deseja unificar todas as contradições, mas nunca fui boa em charadas, por isso não pude ouvir aquele que me falava decifrar seus recados:

Não é com as mãos que se pega uma mensagem na garrafa

A verdade trama
Rede múltipla
Abre percursos
É preciso percorrê-los
É preciso manter o impulso
É preciso passar por cada ramificação
Não há atalhos
Porque se trata do
Olho no olho

Quando stanislavski lê pela primeira vez a gaivota pergunta a nimirovitch: como eu vou encenar essa peça esquisita? Ao passo que seu parceiro prontamente o responde: se vira. 


Cinco poemas

FEITO VIVO


Nunca lancei meus olhos com
tanta sede
Cada retícula cada vinco cada
falha eu
captava sôfrego
Um retalho da fissura
abstrata no concreto todo
pedaço suspenso de coisa
Até a fibra adivinhada eu
mirava com vontade de
quem nunca mais iria
ver 


 

MENINO PICADO POR UM ESCORPIÃO

O choro intermitente e devido à insuficiente porção de veneno
formou-se um roteiro oculto indecisa
assíntota alacranada se avizinhando às pequeninas artérias - viés de um
ódio inacabado algo volátil anônimo
acomoda-se à ardência enquanto
vigiamos a pulso mínimas metamorfoses em cada sentido.
Ignorando até onde nos atravessa essa marcha puntiforme de
calibre venoso turvando o que
parece sempre a ultima contemplação
ele nos dá um desconhecido
sorriso.


 

PARA TUDO NA VIDA, UMA BOA IMAGEM

No painel da traseira do ônibus
na mídia digital do consultório
no meio aquoso da revista: casal de sorridentes velhinhos
(bote em forma de cisne) digamos
propaganda de pecúlio e empréstimos para aposentados. 
Jove ilustra colchões de mola e casas geminadas. 
Crianças suspensas em balões verdes para o plano de saúde.
Móbiles indiferentes à necessidade
premeditada.


ESSA LEVEZA

Tipo peso se
ausenta
da cama
e             é
percebida: o corpo desloca
a transparência


DESCULPE, BUT

Desculpe, mas pertenço a um mundo desvirtuado
Também não me sinto moralmente apto a
tirar da experiência um lema
Desculpe, mas minha formação musical é promíscua
Desculpe, infelizmente essa metáfora não me atinge
Obrigado, mas não vivo de ênfase
Desculpe, não planejo dizimar a ideia contrária
Desculpe, mas não concluí a tarefa com êxito