Pós-verdade e pós-modernidade

Há quem atribua à constelação nietzscheana, expandida até ao pós-modernismo francês (Bataille, Foucault, Deleuze, Derrida...), a origem do conceito de pós-verdade. É certo que Nietzsche imbrica verdade e bem com a história, retirando-lhe qualquer pretensão à universalidade, é verdadeiro aquilo que uma cultura considera como um bem num dado momento. E se nos alvores da humanidade isso era feito por “legisladores heroicos”, trágicos e vitais (preferindo o termo “bom” ao de “bem”), o optimismo socrático, isto é, o racionalismo e a sua crença na ordem e no progresso, juntamente com as transcendências metafísicas e teológicas colocaram a vontade de verdade no movimento niilista ascético que desvaloriza a vida, procurando no além, qualquer que ele seja, o sentido pleno que falta à imanência. Jacques Derrida dirá depois que tudo é indecidível, que não há significantes ou referentes; Gilles Deleuze, por seu turno, chega a defender que o sentido provém do sem-sentido, que só há uso e experimentação. Finalmente, fez fortuna o conceito de “jogos de verdade” de Michel Foucault, para ele não há a Verdade porque tudo está historizado. Ficando assim também ela sujeita às relações que estabelece na realidade, às condições de existência. Os jogos de verdade não dependem da descoberta da verdade, mas de contingências históricas que decidem sobre o que deve ser ou não considerado verdadeiro (o célebre “estar no verdadeiro”). Todavia, importa referir que Foucault não foi o fundador da actual pós-verdade, longe disso. Em primeiro lugar, porque a veracidade, a afirmação da sua verdade, muitas vezes, no seu caso, em modo militante, é a condição basilar de uma neo-ética do governo de si e dos outros. Depois, porque, como disse em 1984, “Nada é mais inconsistente do que um regime político que é indiferente à verdade; mas nada é mais perigoso do que um sistema político que pretende prescrever a verdade.” Portanto, claro, o perigo da imposição da verdade nos sistemas políticos totalitários, mas igualmente a crítica à indiferença em relação à verdade. Ora, é esta indiferença que define a centralidade da pós-verdade.

Os construtores de opinião, em trabalho forçado para entenderem o acontecimento Trump e um pouco do Brexit, vão dizendo que a origem, ou proveniência, da pós-verdade deve ser procurada no romance póstumo de Steve Tesich (Óscar do melhor argumento para Breaking Away, 1979) Karoo. Diga-se que o Oxford Dictionnary elegeu a post-truth politics como termo de 2016, vendo-o a operar na contemporaneidade quer nas democracias liberais, quer nos regimes autoritários semi-racionais, quer ainda no estranho, e demente, realismo mágico da Correia do Norte. A exigência da verdade política, dessa anacrónica adequação entre o discurso e a realidade parece ter sido revogado, desapareceu a linguagem referencial. Em favor do quê? Das paixões e das crenças, das expectativas e dos preconceitos comuns. Por isso, a incoerência de Nigel Farage quando depois de ganhar o referendo sobre o Brexit afirmou que tinha sido um erro da sua campanha dizer que se iriam deslocar os 450 milhões de euros semanais da União Europeia para o sistema de saúde britânico. Esta enorme mentira, porventura calculada, não levantou, porém, grande polémica, alimentou apenas uma minúscula perplexidade em meia dúzia de articulistas e numa parcela menor de activistas anti-Brexit, prova que se está no reino da pós-verdade. As classes populares, as mais inclinadas para o Brexit, preferiram uma mentira que culpava as elites pró-europeias do que ouvir a verdade. De igual forma, o ódio racial e o sentimento de desclassificação dos brancos americanos mais desfavorecidos toleraram perfeitamente, e parecem continuar a fazê-lo, se receberem agora alguma esperança económica, as mentiras mirabolantes da máquina Trump (Trump é mais do que Trump: trunpismo). Estes dois exemplos significativos descrevem com clareza a era da pós-verdade (e quase toda a propaganda política vive parcialmente aí), que parece ganhar terreno a uma razão crítica que nasceu no Iluminismo (ou Esclarecimento, termo que traduz melhor a Auflklärung alemã, ganhando em rigor filológico e filosófico). Já não se trata de fazer uma política da mentira, ou da falsidade, própria aos velhos regimes totalitários, mas de enfraquecer a importância da verdade na política. O termo post-truth foi cunhado por Tesich em 1992, quando durante a 1.ª Guerra do Golfo publicou o panfleto “The Wimping of America”, onde relata 30 anos de mentiras na política americana. Para Tesich, desde o Watergate, os americanos teriam criado uma certa fobia à verdade, porque esta trazia más notícias (isso é hoje claríssimo no campo das alterações climáticas), preferindo que o governo lhes mentisse para os proteger da desilusão racional. A Guerra do Golfo exemplifica um pacto trágico entre o poder político e a opinião pública: “conseguiremos uma vitória gloriosa se nos esquecermos da verdade”. O mito auto-consolador em vez da realidade. Tesich diz nesse texto que a novidade está em que até àquela época os ditadores tinham trabalhado para suprimir a verdade, agora suprimia-se a importância da verdade, “enquanto povo livre, decidimos livremente que queremos viver num mundo de pós-verdade.” Isto aplica-se, diz o autor, a todos os aspectos da vida. Esta era da pós-verdade emerge, pois, de um novo contratualismo, assente na indiferença geral em relação à verdade, e à veracidade.

Acontecimento que nada tem que ver com os autores que abrem este ensaio, nunca Nietzsche, Derrida, Deleuze ou Foucault aceitariam que uma mentira consoladora, própria apenas para aguentar as subjectividades fracas, as que não olham as coisas de frente, os neo-fascismos nascidos nas massas ululantes, os pequenos nacionalismo racistas... viesse substituir a verdade, a verdade como veracidade, a parrésia cínica grega, a, para utilizar uma expressão Foucaldiana, “coragem da verdade” (título do seu último curso no Collège de France).

 

entre certos instantes de brahms e uma cloaca, III; Copérnico; Radar

entre certos instantes de brahms e uma cloaca, III

O curumim se pendura no avental de Hera
para tentar escalar suas tranças graciosas.
E são fundadas acrópoles a partir dos inefáveis
desejos humanos,
as caçarolas de alumínio
sobre bocas de dragões furiosos.
O contorno da romã se desfaz
em linhas,
e o curumim consegue, afinal,
vislumbrar os paralelos que fatiam
a superfície do planeta.
Como é fácil se encantar pelos Trópicos!
Gira-se a torneira
e a água molda o espaço,
e a água molda as ideias & os sentidos
do curumim.
O ralo da pia bebe vastos açudes de provações
e desaparece.
A carne plástica das dobras do sifão
recobre o túnel de aros de uma tranqueia
esganada.

            “Incêndio em mares de água disfarçado!
            Rio de neve em fogo convertido!”

Hera senta
o curumim à mesa, serve
o almoço e reza
pela alma do marido,
que deu o couro às varas
faz poucas semanas.
                        Sim:
todos respondemos pelas escolhas
daqueles que pisaram estas campanhas
estéreis antes de nós.
                        Sim: 
nossos escritos são medíocres
reproduções dos palimpsestos que abarrotam
a biblioteca suspensa pela sobreposição
dos anos.
                        Sim:
este cheiro de serragem molhada,
que tanto me incomoda as narinas
sensíveis ao fracasso, também atordoará
os belos deuses do futuro.

E o curumim marcha entre trovões.


Copérnico

Com o intuito de estancar a sede irresistível
que me pôs acordado
        no momento exato do alvorecer,
recorro ao catálogo das variedades
            anarquicamente dispostas
    nos compartimentos da geladeira.

Deparo-me com uma jarra de vidro
                quase vazia.

No fundo desse crisol ilegítimo,
    a emular o resultado
    de ensaios químicos frustrados,
    o resto do suco de laranja
    que eu mesmo havia preparado
    antes de dormir.

Uma quantidade ínfima do líquido
em cuja acidez estão concentradas
        todas as minhas perversas manias.

                Ralho comigo. 

Por que não bebera tudo de uma só vez?
Por que guardara o último gole
            para depois?

Preocupo-me somente
        com as sobras,
        com os resíduos,
        com os resquícios.
        A abundância das horas, deixo-a

aos que ainda esperam muito da vida,
aos que anseiam por algum clímax
ou por alguma absolvição,
aos que não puderam estar presentes
no velório de Ivan Ilitch.

Meus inimigos dizem que não tenho ambições.
    E eles têm razão.
    (Eu não quero ter razão.)

Prefiro o resto do suco de laranja
à revolução da laranjeira,

        espécie ímpar em um bestiário
        de leviandades,
        utopia petulante a servir-se
        de uma filigrana lexical

que ora descreve
a mecânica dos corpos celestes,
ora retém
o anelo dos corpos históricos
por mudanças drásticas.

Mal sabem os filólogos ocidentais que, 

            em termos ontológicos,

não há diferença
entre a lente arguta do telescópio
& a lâmina implacável da guilhotina.

                A tradução da liturgia
                na diagonal deve ser feita
                porque graça não há
                em seguir da ordem canônica
                a tradição (da liturgia).

    Se a guerra & a poesia
    constituem, por excelência,
    os espaços de negação
    do tempo e dos arquétipos
    partidos que veneramos,

            os restos já são, por si, revolucionários.


Radar


O evento cósmico que, segundo o âncora do principal
                    [noticiário do país,
era apenas um clarão no céu,

                    chaga & recorte,

            rompeu a atmosfera

        e fez um buraco
                na terra
        e fez um buraco
                na menina
        e fez um buraco
                nos segredos da atriz,

    um fragmento de meteoro agarrado à pele-película
                    [sob tuas unhas pintadas,
    espada de um Dâmocles sideral em rota de colisão
            [com tua cabeça perfeitamente redonda.

Naquele dia quente,
naquele simpósio organizado pelo Departamento
                        [de Astronomia,
além de ter me confidenciado
tuas maiores inquietações, disseras:

                    olhe,

    sou mãos de mulher & pernas de centauro
                        [& caráter de pirata.

                Concordo com a última parte.

Gostaria de te apresentar a meus pais,
porém sei que tu danarias a discorrer sobre as vantagens
do neoliberalismo,
sendo que os velhos ainda choram

        a perda do camarada Lênin
        & os mais de noventa soviéticos mortos
        no naufrágio do K-129
        & a implementação da Perestroika.

Também sei que te aborrece meu hábito arcaico de utilizar
a segunda pessoa do singular em qualquer conversa,
e eu nada posso fazer quanto a isso.

            O inquilino paranoico do n° 105
            me fala que eu deveria te pedir
                        [em casamento

porque és uma moça muito bonita porque aparentas ser uma boa cozinheira porque te vestes bem porque não tens planos fúteis porque escreves de forma legível porque, embora as qualidades que ele te atribuiu não me sejam caras, tenho orgulho de ti.

    Abro o escaninho
    à procura de faturas vincendas,
    e me surpreendo
    com um telegrama
    que anuncia:

ESTA NOITE.
ECLIPSE LUNAR.
APRECIÁVEL A OLHO NU.

                    Silhuetas metálicas.

                E a Lua vai se alojar sob tuas unhas
                        [quando sentires medo.
                Imagina as crateras da Lua sob tuas unhas
                                [roídas.
                O eclipse & o meteoro,
                simultaneamente.

Imagina, menina atriz, essas
unhas roídas e sujas como
espadas de um Dâmocles
soviético, como letras
legíveis, tão siderais.
Imagina a terra que
preenche todos os
teus segredos e
deixa chover
sobre ela.
Imagina
a Lua.


A escrita do amor por entre quartos e corredores

1.
é sempre um retorno à memória que aqui me traz
o debater de uma imagem vibrando de afectos
soltando-se da sua rede até tomar conta do espaço
em que habitas dentro do meu peito

lá fora trovejava como as despedidas nos corações
e segurando entre mãos o teu rosto pelos teus lábios
rodava a língua – são estas ou outras
palavras perdidas que me visitam no empoado espelho
onde te refletes e nada foi nada terá sido e amarrado
pelo ouvido Ulisses se ilude e somente sofro uma recaída

neste vício da escrita – a cama revolta e olhos
fechando-se para o dia antes da partida de Abril
lembro ainda como as mãos enovelando-se
desteciam dedo a dedo a tremura
do teu corpo – por ele subia
uma onda rebatendo pelas falésias que são as gargantas
emudecidas e era o teu nome com raiz de estrela que soçobrava
todos os outros nomes que tornaram o meu rosto uma espera
e a pele uma escrita oferecida à vida e ao toque do teu corpo

e assim crava-se fundo a tua imagem
como a adaga de um terrível amor
no anonimato antropófago dos lençóis
e escrevo tarde e a tinto a letra para encurtar
a distância entre o oeste onde o mar
murmura justo à cama ao centro da planície onde
avanças como uma vanguarda abrindo caminho ao futuro
(o meu o teu por vir) enquanto me alapo às tuas costas
seguindo as tuas pegadas que se afastam

a vida que tento numa escrita permanece
desconhecida é só mais um tijolo na muralha
de papel um nome no barro onde os dedos mergulham
misturando memória imagens o gosto
(escreve escreve) de cifrar um mundo
ligando palavras ou vidas como tu por exemplo
tu e a cicatriz na palma da mão os desgostos aluados
sob o olho e tu a ruga ao canto da boca e tu de novo
e tu (sendo agora eu a mim que falo) jazerás na fronteira
anónimo onde nunca teu nome na muralha de papel terra de pó

 


2.
recomeço (tendo-te perdido com as palavras)
sou uma pequena máscara expandida ao corpo
começando pelo osso já longe do mundo vai o mundo
e eu com ele como em brisa recomeço sempre uma
e outra vez sem que me reconheça porque sempre
alguma coisa escapa (sempre me escapou) e seguindo
procuro redimir o furto de gestos gastos gozos
persigo um mistério que pressinto sem nunca saber
as palavras para o dilucidar sei no entanto ser
minha a culpa (esse odioso sentimento religioso)
a impossibilidade de o dizer (ainda não começaste
a escrever para ti) ou escutar-te profundamente
porque também tu fazes parte dele devo aprender a
deixar à sombra de nada o que sou e me inibe
de me ligar indefeso ao desejo que demora a
sobrevir à ilha que és tu tal como eu sou sabendo
estarmos unidos por um istmo que almejo se torne
um continente terra onde te encontras antes e depois e já
nela sem o saberes estreito adensando-se com a deposição
de palavras e poemas mas escrevendo este e outros
a página permanece em plena secura

(e por que lado o mundo se inunda tornando a distância abarcável
para toda a vez para cingir ao peito o fumo e o fogo e a nova rosa
do desastre os avanços incontrolados do tempo e das atitudes do homem
mas repara como há basto mistério no estar vivo neste afogado inferno que nos aparte)

ergues a tua mão e leva-la para derriscares do meu rosto
os rastos do que vivi e desconheces esbatendo a fronteira
e enfim o teu entra na morada que sou e deixando-te percorrer-me
sei-te estratega de um lar habitando uma casa vagabundeando
o olhar por este corpo que à noite quase te sufoca
haverá um dia que nem o teu olhar se tornará para o meu
a felicidade vergar-se-á ao tempo
as mãos segurarão outras ou os artefactos do dia-a-dia
perdendo-se nos gestos fechando-te a boca

faz a promessa verdadeira a única que não se cruza
sobre o coração e dele arreda a mentira
e ainda segurando-me o rosto dizes – não permitas do entre-nós
um conhecimento entediante
bem-estar de nenhuma palavra
encontra para cada dia um desassossego
coloca o mundo em gonzos chiantes para reconhecermos a sua aproximação
e faz do ofício mal-amado a oficina que do futuro te dá uma certeza

 

3.
se a linguagem é um dom sabes não ter nada a dizer
(escreve-se pelo silêncio e ao lado de todas as palavras)
mas como percorrer o labirinto do teu pensamento
avolumando-se sem que te percas para sempre entre letras
sons imagens palavras brotando imprevistamente
onde também tu habitas como signo de amor
revelando-me vias ou sendo o farol que me guia

o sentido é um fio de ariana a caminho e escuto
o fluxo na cadência do sangue correndo no cavername
de olhos iluminados busco o contorno ileso
do que se está a formar dentro de mim
e tantas vezes a porta aberta aos fantasmas
onde valsas entre eles tu a única mulher real

inseguro penso peso evoco emudeço
quando estás pequenas coisas duram a eternidade
por isso sustenho as lembranças
guardo-as para habitar a casa plena de tua ausência
cogito a decisão de reviver esta ou aquela cena
o dia corre lento como qualquer outro dia e tão (e)terno
passa por ti juntando-se a todas as horas
por fim sentas-te (vê onde pões os pés
há demasiada fragilidade no mundo e
na memória
) escolhe-te inesperadamente
a da janela à qual retornas e onde os dois
se conheceram intimamente pela primeira vez
selando os rostos num beijo de lenta aproximação
intumescendo todos os teus lábios e o sangue
bombeou na jugular e em todos os meus canais

acontecimento de já outrora tentada inscrição
na eternidade e que poucos lerão mas retorno
aí inevitavelmente como sempre volto
ao teu corpo mal te apresentas num vaivém mareado
surtindo um efeito doppler nos sentimentos
em que todo eu na tua aproximação sinto
a voluptuosidade de uma atracção grave
quando nem ainda carne na carne
encontrando as suas covas depressões montes
restando uma mínima distância que se agudiza
nas tuas partidas aí se esboça a dissonância
do tempo do coração e suas variantes batidas

e é verão talvez fazendo frio por tudo
o que é interior
e de nenhures ouço um grilo
junta o seu corpo ao caos
eis a dádiva de um ritmo
acompanha na passada a infância
que vai cingindo-te um nervoso nó
e os dentes gravilham impacientes
(tens tempo não tens tempo)
enquanto sobe aos lábios a melopeia
de terras morenas e azinheiras
passo a passo (de um ao outro
promessas e gestos a con(tra)dizer
como ruminando falhas
ou o que foi dito mais do que fôra devido
)

esta ruína move-se por entre corredores
e quartos arrastando os pés
enlodando-se em infatigáveis predações
Actéon viciado na vingança de Artémis
voltando não para mudar a memória
persistindo para o nosso riso e tristeza
mas para lentamente crendo ainda no tempo
pelas suas mãos e gestos levar a mulher
a amá-lo pela escrita digam-me que mais pode
fazer um homem na sua maturidade

 


4.
há o tempo que passa pelo corpo
da raiz afectuosa ao mapa das escoriações
e outro pelo pensamento sussurrando-nos
uma falsa idade tão verdadeira
quanto é a justa palavra dizendo a imprecisa emoção

por dentro dos nossos olhos nessa treva a íntima
e inacessível diáfana imagem de cada um
está na sua plena juventude
e eu tenho-te assim de duas maneiras
e tu três idades: a que eu vejo sendo
a tua natividade expandindo-se
aquela que te vês sentindo-te
e essa intermédia névoa cobrindo-te
resultado de estranha alquimia do coração
e te veste com a perdida glória
revelando que a decadência do corpo
é a frágil atractiva natureza das coisas
a beleza sem artifícios e o contínuo toque do homem

e vamos pela corrente impossibilitados de suspender
a passagem da vida que tudo atravessa
e olhando-nos o espanto pelos rostos envelhecendo
toma o meu e o teu se houver tal coisa como o amor

hoje sou mais do que aquele que outrora conheceste
não olhes pois para trás para esse caminho pisado
vão-se aluindo as casas a história
aperta-se na sua trama
não haverá nunca recomeço só o que pesa
se sente mais suportável menos desgostoso
as máscaras bem ajustadas o futuro despido

sei que haverá um instante em que todos os corpos
e tempos e imagens por fim se reconhecem
virá por um brilho de miragem como por um
sopro fremindo as superfícies nivelando água
e terra num mesmo horizonte ondeado
como as praias ao fim da tarde e o vento arruma a vista
para o violeta medeando noite e dia

a vida começa aí numa variação de ritmos e síncopes
ondulações sovando estes corpos do estômago à garganta
e o pensamento faz-se limite aéreo de uma morada
escura e selvagem atormentada pelo fundo feminil
de teus olhos e faz-se igualmente anjo de duplo traço a néon
pirilampo que me guiará após a tua morte
através da memória onde jazes num banho a ouro
sombreando o tranquilo argênteo mar

tu
esse instante que foi uma singularidade irrepetível
e se unindo a mim o gesto de quem se tocou tocando
de quem se escolheu a ser escolhido
para tornar outra a vida
partilhando tudo o que se queria até a rotina
o enquadramento de uma coreografia dos corpos
em que a dança procura o encontro para a grafia da pupila
por onde o mundo presta vassalagem para se arquivar em nós

e eu
ser-te-ei ainda um mistério
como quando tu me surges ao despertar
ou serei frio fogo e pálido céu de descontentamento
anúncio indício do fim
lançarás ainda a fateixa dos teus braços
ancorando este bote à deriva neste mar

e não respondendo sair-te-á ainda a fúria
pelos teus olhos fulminando-me com o silêncio
guiando e ditando-me os meandros do medo
enrolar-te-ás numa concha afundando-te noutra
dimensão como revirado olho de furacão
aspirando a que fique desaparecendo e ascenda
à ausente presença dos anjos e deus
e perdido por estes corredores e quartos
grave o amor escrito noutras páginas
quando a tua mão se apertar noutra

e após a tua partida definitiva se eu permanecer
diz-me como farás chegar a resposta a
quem te ama e não acredita noutro mundo
e tempo senão o da partilha
quanto dura um coração no escuro
de nenhum porto uma despedida
quantos dias faz
quanto mais de vida é preciso perder
no luto
e o acontecimento de tu ou eu
qual a sua palavra ou escrita quando
somente se pode fechar o espaço pelo toque

Elegia

 I

Este linho retorcido
Do céu de Novembro.

Na sombra aprumada
Agradeço o muro.

As unhas crescem,
Antigas como vinho.

O pão, por repartir:
O teu corpo intacto.

    Não queiras repetir o coração.

      II

Uma outra escrita,
Qual escuro Escuro risco.

E demorada, como
Fios do teu cabelo,

Esse arame sedoso
Onde abro os pulsos.
    
      Não queiras repetir o coração.

      III
      
Não, não mereço
O teu olhar: os corpos

Despenhados na elegância
Dessas jazidas de vidro,

Frágil amontoado de fósforos.
Vai, parte com a luz.

    Não queiras repetir o coração.

      
      IV

Maré alta na pupila:
Palavras promissoras.

Altos promontórios,
Onde levam as águas,

Se não sei o que vejo
E como te Ver?

    Não queiras repetir o coração.

Confissão De Um Crime

A primeira vez em que não ganhei um prémio de poesia
Foi no meu 6ºano, por altura do São Valentim, fiquei em segundo,
Perdi para o meu melhor amigo, as juízas foram as professoras de EVT,
Uma hippie e uma filha de militar de alta patente, a razão foi
Não ter feito referência a Camões na minha composição poética,
Na verdade foi para dar exemplo, já que eu era um criminoso,
Eu e o resto dos rapazes da turma tínhamos um processo disciplinar,
Todos, menos o vencedor do prémio, que depois da escola
Era levado directamente para casa, consta-se que espancámos violentamente
Uma colega em frente a um café depois da aulas,
Vingança por o seu mau comportamento na aula de português
Ter levado a que uma ficha de preparação se tornasse num teste de avaliação,
Muitas colegas choraram, não tinham estudado, não estavam preparadas,
Lá se fez e correu bem, na verdade eu fui um ladrão que ficou à porta,
Porque tive pena dela, também foi esse o argumento que me ditou a sentença,
O ditado popular, no julgamento, disse que lhe tinha dado um croquete,
Como fazia o professor de português do 5ºano, isto para não ficar fora,
O que fiz foi pousar-lhe a palma da mão na cabeça e ao sentir aquele cabelo
Quente senti uma grande amargura, por todos, pousei a mão como quem
Absolvendo se condena, e fomos condenados a trabalhos forçados,
Abrir buracos para o dia da árvore antes de almoçar, eu tive de abrir dois
Porque o primeiro chegou ao cabo eléctrico de um candeeiro,
No segundo que tive de abrir, todos os criminosos como eu, me ajudaram
E lá fomos comer, cheios de terra, fui destituído da função de chefe de turma,
Fiquei em segundo no prémio de poesia, acabaram por me dar cinco a EVT
E quatro a português, porque fui um ladrão que ficou à porta
E acabou por levar com uma sentença antes dos dez,
Deve ser por isto que até hoje nunca ganhei um prémio de poesia.

Turku

02.01.2017