Lançamento de 'Imagens roubadas', de Fernando Guerreiro
/Sexta-feira, 19 de Janeiro,
pelas 17h na Linha de Sombra (Cinemateca).
José Bértolo e Tiago Silva devolvem as Imagens Roubadas
por Fernando Guerreiro na enfermaria
«Por intermédio das palavras que flutuam à nossa volta, alcançamos o pensamento»
Friedrich Nietzsche
Sexta-feira, 19 de Janeiro,
pelas 17h na Linha de Sombra (Cinemateca).
José Bértolo e Tiago Silva devolvem as Imagens Roubadas
por Fernando Guerreiro na enfermaria
Depois de um longo hiato, Cassandra Jordão volta à carga com uma entrevista a Pedro Braga Falcão, a propósito da sua tradução das Epístolas do poeta latino Horácio.
Ficámos de nos encontrar com o doutor (xôtor) Pedro Braga Falcão na livraria Flâneur no Porto. O tradutor de Horácio atrasou-se meia hora e compareceu no seu melhor fato de treino (ainda sem acertar com o detalhe da peúga por cima da calça, contudo). A livraria encontrava-se fechada e, como é costume nestes encontros entre literatos, dirigimo-nos para o café mais literário, mais boémio e mais próximo que nos foi possível encontrar. Ou assim garantimos ao poeta: as mesas eram de fórmica cinzenta com umas toalhinhas de papel por cima, havia uns croissants solitários e tristonhos (talvez de há dois dias, talvez um pouco mais) no expositor do balcão, e quando pedimos dois copos de vinho rosé não havia. Na verdade, nenhuma variedade de vinho estava disponível. Tivemos de nos contentar com café. Para nossa surpresa apareceu acompanhado do seu filho de cinco anos, que falava claramente demasiado e queria muito os croissants de dois dias. O tradutor não nos dispensou toda atenção que merecíamos por causa do pirralho, o que nunca fica bem num erudito.
Pedro Braga Falcão é doutorado em estudos clássicos com uma tese sobre a música da poesia de Horácio e há ainda uma licenciatura em música, como instrumentista de viola de arco (embora PBF não negue o seu interesse pela trompa). É professor na Universidade Católica Portuguesa, gosta de etimologias (Palavras que falam por nós, Clube do Autor), é autor de um livro de poemas (Do Princípio, também pela Cotovia) e há outro livro de poemas a sair em breve pela Enfermaria 6. Nenhum destes méritos iguala a audácia e a autoridade da sua opção por um venerável bigode (se é que podemos chamar bigode a um conjunto esparso de pêlos sobre o nariz). Juntámo-nos numa tarde de Outono, quase inverno, para falar da nova tradução das Epístolas de Horácio.
Como surgiu a ideia de traduzir as Epístolas de Horácio e porquê esta obra em particular? Foi por gostar de ler correspondência alheia?
Se tentar ler as epístolas de Horácio como correspondência alheia, vai ficar bastante desiludida (risos). Suponho que a única coisa que ficará a saber é que Horácio se tratava de um comilão baixinho, grisalho e corpulento, e que tinha um grupo grande de amigos de quem não sabemos praticamente nada. Bem, a Cassandra na sua qualidade de profetisa poderá saber mais qualquer coisa (risos afectados e estupidamente pedantes). Porque decidi traduzir as Epístolas? Na verdade, era a consequência lógica de traduzir as Odes; cronologicamente, era o que fazia mais sentido: as Epístolas foram publicadas a seguir aos primeiros três livros de odes... Mas a minha intenção é mesmo traduzir toda a obra de Horácio (só faltam os Epodos, as Sátiras e a Arte Poética).
O Pedro já havia traduzido as Odes de Horácio (também na Livros Cotovia, em 2008) e, antes disso, o Carmen Saeculare tinha sido objecto da sua tese de mestrado. Não há mesmo mais nenhum autor clássico que lhe interesse?
Claro que há. Aprecio muito Herberto Helder e António Ramos Rosa. Infelizmente ainda não se encontraram os manuscritos originais das suas obras, que toda a gente sabe que estão em latim.
Podia falar-nos um pouco de como começou a sua obsessão com Horácio e de porque é que continua a insistir nela?
Tudo começou quando a minha mãe me ensinou a ser poeta. Passados vinte anos encontrei Horácio. É claro que por vezes ele me aborrece bastante. Mas ensinou-me toda a imperfeição de um verso demasiado bem composto... nunca mais me esqueci de procurar nos versos essa vertigem de compositor de palavras, em tudo o que escrevo. Gostava de dizer que era uma obsessão essa busca, mas receio que ainda não estou nesse estado; ainda deixo alguns versos em paz.
Horácio tem influência sobre a sua criatividade enquanto poeta ou nem por isso?
Nem por isso. A minha criatividade vem da minha infância e das minhas longas brincadeiras no meu pinhal, a sós com o meu mundo de criança. Horácio é apenas um autor de vários que me ensinaram a estar na poesia. Bach, Beethoven, Tchaikovsky, Tom Jobim, Janis Joplin, Chico Buarque, Leonard Cohen, Jacques Brell, Gabriel Garcia Marquez, José Saramago, entre vários, foram outros poetas a fazê-lo. Sou um privilegiado por ter nascido quando toda essa gente já tinha andado por cá.
Que outro autor da antiguidade gostaria de traduzir?
Vergílio, claro. Outro poeta até à medula. Quando acabar de traduzir tudo de Horácio, talvez venha a traduzir tudo de Vergílio. Quem sabe.
De todas as traduções de autores clássicos publicadas em Portugal na última década, qual a que mais o influenciou e porquê?
As Odes de Horácio da Cotovia (risos algo boçais). Foi uma influência decisiva para esta minha última tradução (continuam os risos idiotas e algo pedantes)... Bom, para dizer a verdade sou mais influenciado pelo trabalho da academia inglesia... Nisbet, West, Rudd... Enfim, tenho uma dívida de gratidão para com o trabalho de gente como esta, e tento sempre ser tão sério e honesto como estes foram na sua actividade intelectual e académica.
Pode elaborar um pouco – para os nossos leitores – sobre porque devemos ler as cartas de Horácio hoje (além do motivo óbvio de se ficar com a impressão de que estamos a ler o heterónimo com menos talento de Ricardo Reis)?
Em geral nunca elaboro antes do meio-dia, pode cair-me mal (não me parece que esteja a brincar, este tipo é um pouco afectado). Ricardo Reis nunca escreveu cartas em verso, o que me leva a considerar que talvez o seu horacianismo deixe um bocado a desejar (risos parvos). Bom, essa pergunta que faz é difícil de responder. Cada leitor terá a sua motivação para ler. A primeira razão é clássica: um texto que sobreviveu a dois mil anos de história num estado impecável de conservação (como poucos!) diz muito da sua qualidade. Depois, o facto de ter sido o inaugurador de um género (cartas em verso), que conheceu grande fortuna no Ocidente, até ter caído aparentemente no oblívio...
Mesmo em Portugal?... (fui como que forçada a fazer esta pergunta, embora no fundo não me interessasse muito a resposta)
Sim, mesmo em Portugal, grandes nomes da nossa literatura, particularmente renascentista, como Sá de Miranda, Pêro de Andrade de Caminha, António Ferreira, Diogo Bernardes, cultivaram o género... Mas essa não é a única razão. A principal é o texto em si, e as tensões que ainda hoje encerram. A tensão entre agradar aos poderosos e liberdade artística. A tensão entre a boémia e o regramento. Mas também a truculência com que ataca os vícios da sociedade, e como expõe cruelmente toda a fragilidade da natureza humana. E todos aqueles conselhos que poderiam facilmente tornar-se mantras na nossa vida, nil admirari, “nada admires”, sapere aude, “ousa saber, ousa ser sábio”, ou frases lapidares como “mudam de céu, não de alma, aqueles que correm os mares”…
Na sua opinião, há algum autor clássico que ainda não tenha sido traduzido para português que nos faça uma falta enorme?
Parece-me que toda a historiografia clássica está lamentavelmente por traduzir. Tito Lívio, Tácito, Políbio, no contexto romano; são autores que nos relevam o mundo apaixonante da história de Roma e quase não têm tradução em português. Lamentável.
Se Horácio escrevesse a letra de uma canção punk como seria?
Uma canção que nunca seria editada. É demasiado erudito para o punk. Mas seria muito bom vê-lo tentar. É claro que o facto de nem sabermos onde estão os seus ossos deverá dificultar muito a tarefa.
EN 236 – 1
“Este mundo, que é o mesmo para todos, nenhum dos deuses ou dos homens o fez; mas foi sempre, é e será um fogo eternamente vivo.” HERACLITO
Dentro do vazio o silêncio: a mudez é o espaço único do vazio.
O corpo rodeado de fogo: um exorcismo doentio. O que pode o humano contra os devaneios do diabo? O que pode o humano contra a falsidade de deus?
Os gritos dentro do medo: porque todo o medo é um grito retraído.
O olhar abismado dentro do fim do mundo. Deus em forma de fogo ou apenas e só um diabo lancinante, inesperado, contra a natureza inofensiva de deus: quem comanda quem?
O corpo afogado dentro do negro do alcatrão.
O olhar preso dentro de um carro: abraçados na construção de uma eternidade resignada: os corpos escondidos dentro da desesperança viva do asfalto.
Não conseguimos respirar na silente inscrição deste prelúdio indizível.
Eclipse insano deste estranho mundo onde calcinamos o corpo sem cálculo, em desafecto imperfeito, sem carícia neste conceito inacabado de deus.
Um caminho de horror onde todos sucumbiram dentro do próprio medo contra o negro da solidão desesperada: contra o alcatrão.
A noite traz a aflição do olhar cativo: um crime bárbaro, sem dono.
Através do olhar um pai e uma mãe abraçados a um filho: o medo dentro do medo: um medo que ninguém escolheu, que ninguém quis.
Um medo que o fogo não apagou.
Morremos à míngua. A língua negra electrificada pelo fogo. Os dentes cerrados para reter a dor.
O coração silencioso, silenciado, nesta asfixia de todas as flores.
Tudo era incandescência neste prodígio do fogo ou clarão impiedoso ou perversa encenação.
Afinal não há purgatório e a condenação única é o fogo primitivo que tudo une, que tudo desfaz.
MORTE EM DIRECTO
“Se tudo o que muda lentamente se explica pela vida, tudo o que muda velozmente explica-se pelo fogo.”
G. BACHELARD, A Psicanálise do Fogo
Uma mulher pétrea de mãos postas conduz um credo há muito esquecido. Invoca em vão um deus. Esse mesmo e insignificante que tudo devora.
Tem as mãos calcinadas pelo fogo. Ardem-lhe com uma precisão invulgar todas as feridas. Está só.
Está rodeada de fogo por todos os lados. Desconhece os poderes desta purga.
Castigo? Inoperância? Desafio? Quem comanda quem?
Erigimos o fogo à custa de relâmpagos.
Debaixo da pele cresce a organicidade do medo. Hoje a dor escreve a cinza: Preta. Negrume altíssimo. Inquebrantável.
A inóspita violência do medo. Ali estamos inimaginavelmente. Encurralados dentro do fogo. Do pânico. Da angústia. Da revolta. Da falta de fé.
Ardemos todos até à incompreensão. Ardemos até à dor mais pungente. Em urgência demoníaca.
Ardem em nós todas as inoperantes palavras ditas e silenciadas.
Arde em nós todo o fogo de contrários. Toda a repulsa da insónia que nos atormenta violentamente, doentiamente.
Rodeada de fogo e de silêncio por todos os lados uma mulher pétrea reza de mãos postas, calcinadas.
Desconhece o som e o silêncio de deus. Está só. Tremendamente só. Num horror impronunciável. O corpo aprisionado dentro das imagens.
Já não podemos regressar à infância porque o fogo perdeu o seu fascínio.
Contemporâneas
essa sensação de ter chegado tarde
na manhã logo depois da festa
algum perfume ainda na maçaneta
cinza quente na churrasqueira
um grito que ainda acaricia a vidraça
mas ninguém à vista, um silêncio contraditório
com a abundância alegre da louça usada
com as pegadas de cinco dedos no quintal
as marcas de dois e quatro lábios nos vidros
a confusão de ter encontrado o lugar certo na data errada
(o perigo dos botões de latão na sala blindada de comando,
sempre na iminência)
mas uma moça de cabelo curto canta em dialeto inadivinhável
de vogais entoadas com tanta graça e duração perfeitas
alguém que marca o ritmo estranho nas palmas, nos estalos da língua
que compasso derivado do começo ou do fim do mundo é esse?
meninas com os braços cruzados em estrelas
dançando com seus cabelos infinitos
quem sabe que horas são, qual será o século
em que essa gente vive tão despreocupada
Não,
é agora, sempre terá talvez sido
uma entonação, uma expressão modesta
que interrompe
sem tempo para lamentar ou ansiar
ela canta agora e só são simultâneas as lágrimas
que tamborilam no meu colo
só são contemporâneas as palmas e os beijos que estralam juntos
embaraçados nesse tempo misterioso dessa brisa e dessa voz
Este abismo
Que me olha e
é todo pupila, ciclo-
pe cego
Onde caio, des-
norteado, desorientado
sudoeste
Um cair claro-es-
curo, um cair nada-
ndo, planado
Um deserto aé-
reo, vida em êx-
odo, em éter
E as diferenças, a des-
igualdade aerodinâmica
daqueles que caem
De queixo baixo e rabo
empinado desço mais rápido
me convém?
Se rolo olhos para o alto se
concentra inconfundível
o pontinho iluminado
Queda vazia e pro-
messa de profundidade
inda que de impacto
Salto em retrolem-
brança, até ser menor
que o reflexo na retina
Caio para cima, des-
abando para os céus, ad-
vindo de baixo.
Lilith
Lilith, você é uma borboleta
e eu sou um tiranossauro rex
de braços pequenos e pernas musculosas
eu choramingo, rouco
suas asas de cetim vibram
desfiam e depois se repenteiam
te digo: estou sozinho, Lilith,
ninguém é um repouso para mim
as vozes embaixo da água ficam caladas
de vergonha
o caranguejo excitado gargalha
e sua carapaça quase trinca
no céu gira uma roleta vermelha e branca com numerozinhos pretos
o sol quica nuclear de espaço em espaço
ouvimos daqui de baixo
pinga, o flamejar sacoleja
as sombras se embebedam
depois se vê novamente
quem terá ganho esta rodada?
certamente não eu, Lilith,
eu apenas arranho a terra com as garras traseiras
corro desajeitado atrás de gazelas
acho bonito o jeito que você voa
tão diferente daqui, estranho pensar que
um de nós não seja um videogame ou um anjo
eu não ouso te pedir porque já transbordei em minha vergonha
mas que fique registrado
se eu fosse honesto diria, uma noite
minha nuca retangular encostada no chão
você pousaria no meu olho esquerdo
e eu fecharia os olhos
pronto.
birds flying high
discos vinis de diamantes
fagulhas de agulhas faiscando - sim - raspando
e arando em translação harmônica
ondas num meio isotrópico sem ar
éter licoroso denso aromático
galáxias e seus respiros pantanosos
bosques ofegantes foguetes iluminados
a cabeça a ponta menor da estrela pentatônica
caminho batido de terra amarrotada
tubarões antepassados afiados em nossos caninos
anteriores às árvores respiradoras às caminhadas bípedes
e melancólicas nas praias cinzas bretãs
não - pés cheios de membranas
mãos cheias de dedos cheias de dúzias de unhas sujas
conchas inchadas de fetos frescos adormecidos
estradas artérias picadas vias lácteas
senderos luminosos
girar delicado de pulsos
do quadril
voz ampla entregando quem já foi de volta um pouco até aqui
a declinação lenta do ombro sob a cabeça
da língua naja sentada amparada sobre o plexo
braços longos línguas largas sibilamento
ninhos nos cabelos ninhos nos tóraxes nas axilas
um tabuleiro preto e branco de xadrez
um 360º rabiscando chão num decolar de calcanhares
seu nariz entre meus dedos médio e anelar
seus olhos repousando em digitais
- touch my mouth with your hands
ombros não cabides de camisas mas poleiros de araras
um moicano colorido de araras
um rabo de pavão capa heróica arco-íris prismática
araras pousadas nos meus ombros poleiros
cada toque não mais que magnetismo
pontas eletrosféricas esferográficas flutuantes
cumes pirâmides aspirando-se invertidas
fileiras de Cleópatras energia de dez Cleópatras
faiscante céu multidimensional azul
cachoeira de onde se derrama aqui agora
sobre nós céu azul cavaleiros mongóis sob o céu azul
bicos curvos de carcarás nos céus azuis
engatinhamento de bebê balbuciando
notas agudas da visão concentrada do mundo
jorro de galáxias escorrimento de líquen nos caules vivos
um calor uterino - sim - um cheiro doméstico
- birds flying high you know how I feel
Voltei esses dias aos dois livros autobiográficos da autora norte-americana Lyn Hejinian – My Life (1980) e My Life in the Nineties (2003) – (o primeiro tem uma edição brasileira, com tradução e prefácio de Maurício Salles Vasconcelos.)
Lendo de forma detida a serie do my life (e não aos poucos e nos deslocamentos do transporte público, mas numa única tarde parada de domingo), acredito que a lição mais assimilável da série é essa: a vida de uma pessoa, sua biografia, ganha a forma que quisermos dar, de acordo com nosso empenho e atenção ao enunciá-la; mas a vida de uma pessoa, sua biografia, está presa a inevitáveis acontecimentos (happenings, raiz comum de happiness, como ensaia Marjorie Perloff) que escapam da nossa autodeterminação, moldando na sorte e acaso quem somos.
A prosa de Lyn Hejinian, sequência de movimentos narrados que simulam/criam sua biografia, situa-se bem no meio desses dois fatores, trazendo à tona aquilo que deveríamos cotidianamente experienciar: certos paradoxos que borram limites, entre cores, classes e fronteiras – "where there are borders there is barbarism", com a autora.
A poética de my life, nos dois livros, compõe-se em pequenos capítulos/fragmentos, com títulos que sugerem as experiências a serem narradas, e que se repetem em loops ao longo da obra, em diferentes momentos, dando ritmo à nossa leitura sempre como acúmulo de “vida” no instante presente.
Do primeiro “capítulo” do My Life (1980), “Uma pausa, uma rosa, / alguma coisa no papel”, lemos talvez as primeiras imagens que a autora tem de sua vida:
“Um momento amarelo, exatamente como quatro anos depois, quando meu pai regressou da guerra, momento de saudá-lo, tal como estava, lá em baixo nas escadas, mais jovem, mais magro do que quando partiu, púrpura era a cor embora os momentos não sejam mais coloridos assim. Em algum lugar, nos fundos, os cômodos dividem um padrão de rosas pequenas. Bonito é o que faz bonito”; rememoração que se articula no processo de escrita que deve criá-la no momento presente, mas que já estava em criação/desconstrução ao longo dos vários anos da vida – “As melhores coisas foram arrebanhadas em uma caneta”; “Uma 'história oral' no papel”.
A vida de Hejinian no livro, em certa medida, não escapa de ser apenas mais um registro de sua “vigilância perpétua”, que entra dentro do movimento contínuo de memória e criação. “Dinâmica da contiguidade”, como nota Maurício Salles Vasconcelos: “As recorrências ao passado, o registro do instante e as especulações sobre o futuro, acontecendo no mesmo ato, sem hierarquização” (do prefácio “Minha vida: o jogo do livro”).
Há em cada “capítulo” da vida da narradora, uma percepção distinta e nova, colhida das lembranças. Porém, num jogo de palavrear (como diria Fernando Pessoa/Bernardo Soares), cada capítulo sempre resgata as “sentenças-chave” que foram escritas anteriormente, ao passo que sempre cria novas “sentenças-chave”, remetendo à escrita porvir. Assim, condensando uma poética proustiana, cíclica, cheia de dispositivos que são verdadeiras surpresas à leitura, a autora dá forma e chama a atenção a aspectos da nossa percepção do tempo que não estabelece uma separação clara do passado no presente e na projeção futura, sugerida pelo calendário cristão, mas um sentir-se que continuamente resgata o passado e incorpora-o no jogo de escrita:
Sobre o tempo, “A analogia óbvia é com a música”:
“Digamos que toda possibilidade espera. Na música raga, o tempo é acrescido ao compasso e se expande. Uma sede profunda, sutilmente cheirando corações de alcachofra, semelhante ao adormecimento da infância.”
“but to an other extremis, the present. She is 5, she is 25, she is 50 – the voluntariness of knowing that the life is mine must remain strong.”
Leitores de sua obra (como aponta Maurício S. V., citando Marjorie Perloff e Lisa Samuels) veem em my life uma convergência entre arte, que pressupõe uma tecnica de criação, e biografia, associada aos fatos contextuais. Por isso sua escrita não se alinha com as expressões ditas autoficcionais, que jogam com referentes do biográfico numa dinâmica ficcional. Ao lermos sua prosa, nunca nos perguntamos se sua vida está ficcionalizada, ou se sua prosa imita o real; mas vemos que continuamente o processo de representação se desnuda e hesita no ato-escrita.
“Não é um mundo pequeno, mas há muitos modos de dividí-lo em pequenas partes.”
“I ask my self, 'What's in a poem.' These are places where the action never stops. The outside of the world – but this itself is that. Looking after, being ready before. Tendrils I said, but my sister heard ten girls: ten girls in the ferns.”
Da mesma família poética de Ana C., para os ouvidos brasileiros, e de Maria Gabriela Llansol, para os portugueses, articulada de forma fragmentada e móvel, num contexto em que enunciar tornou-se tão predicável e assimilável dentro de um mundo dado, a my life de Hejinian sugere um exercício de pensar a construção da pessoa nos jogos tênues de linguagem entre o social, o que os outros fazem do eu, e os espaços indetermináveis de criação espontânea desse mesmo corpo ativo. “A word to guard continents of fruits and organs.”
Pra mim, tem sido sempre muito inspirador ler Lyn Hejinian; a cada linha uma surpresa da linguagem, e ainda como se fosse exatamente isso o que você esperava ler, de novo o florir de árvores – “É ainda algo surpreendente quando desponta o verde.” Deixo a seguir algumas outras das mais belas passagens de my life, que mostram como em pequenos e sutis frases, esses livros tratam (quase de modo enciclopédico embora não-informacional ou denotativo) das inesperadas e valorosas reflexões sobre a vida em comum e sobre a arte.
Da verdade das coisas e as palavras; pontos de vista:
“Insetos alaranjados e cinzentos se acasalaram, mas estavam colocados em direções opostas, numa agitação para nada. O que significa simplesmente que a imaginação é mais inquieta do que o corpo. Porém, palavras, já. Pode haver risadas sem que haja comparações. A língua cicia em seu hilário pânico. Se, por exemplo, você diz, 'eu sempre prefiro ficar comigo', e depois, numa tarde, você quer telefonar para um amigo, talvez você sinta estar traindo seus princípios.”
Da distância e movimento das coisas:
“The Atlantic expands (America departing from Europe) the same distance each year that out
fingernails grow. Drifting science, the weather sounds. It involves in time meditation and out of time narration.”
“A turbulent dispersion of ink in water drawn by fountains to the inside of my world.”
Do pensamento como indeterminação:
“Sendo impossível completar o pensamento, a ideia de infinito ou de eternidade despertou uma espécie de desejo, o lado sexual do pensamento”
Mais diretamente sobre política – sempre no meio de onde menos se espera:
“One must eliminate fear in order to create a space for living an ethical life. Subjectivity at night must survive hours during which it encounters nothing
that is conscious of it and has nothing to judge but itself.”
Do devir e da interrupção do vazio; síncope "movimento-parada":
“We know 'tomorrow we will be here', and 'every person has its double' to demand more logics
from life. Reason looks for two and arranges it from there. And it wasn't so much hopelessness as a sense of lessening obligation that made me think I too could die, dead before, dead after, but alive now as I say so.”
Sobre a autora e tradução de alguns poemas na modo de usar.
Edição brasileira por Maurício S. Vasconcelos: https://www.livrariacultura.com.br/p/livros/literatura-internacional/minha-vida-15059427
Marjorie Perloff sobre Hejinian: http://marjorieperloff.com/essays/hejinian-happy-world/
Mais excertos de My Life: http://epc.buffalo.edu/authors/hejinian/mylife/
Livros, filmes, ideias.