Descoordenação
/Vão
cobrir-se de neve as escadas e o dia durar tão pouco que ao sair vais ter sido
enganado e estar à espera que ainda haja luz. Em parte isto é um truque que tem a ver com as luzes dentro do edifício. Enquanto o dia dura, é
demasiado claro. Gelado, tão húmido que há sempre nevoeiro mesmo sobre o que são só campos de erva e é possível sentir a rigidez
do ar na cara. Os dias são muito curtos e a cidade é muito mal
iluminada. Uma iluminação dos anos quarenta, do tempo da guerra, a servir o
efeito de poupar energia e diminuir a visibilidade para evitar que a cidade fosse bombardeada, uma iluminação que nunca foi substituída.
De noite, alguns grupos remam ao
longo do canal e às extremidades dos remos chamam lâminas. É agora que o rio
sobe até às casas, que as correntes são mais fortes e barcos com nomes de
mulheres são abandonados para apodrecer nas reentrâncias mais pequenas junto a
pontes minúsculas, onde há menos água ou a água são poças cheias de líquenes, tão espessa que é quase lama.
Todos
os dias peço que seja limpa a língua que uso, que seja clara. Alguma claridade para que
não me desentendam completamente. Um pouco de paciência. Pode ser que chegue.
Que assim escape. Tenho observado que toda e qualquer conversa sustentável
entretida por pessoas responsáveis é baseada num mito que implica falsa reciprocidade:
o do ouvinte interessado e disponível. É por isso que estatísticas comprovam
que 74,3% das conversas mantidas por pessoas na faixa etária dos 26 aos 68 anos
de idade em contextos à partida impessoais comportam por princípio algum grau
de hipocrisia.
Se num
ano inteiro não tiveste nenhuma conversa em que te sentiste completamente morto por uma
palavra, esmagado como um insecto sob o peso inteiro dela – observações
demonstram que a articulação de dois ou três sons por vezes basta para surtir
este efeito –, ou se não te encontraste com uma palavra perfeitamente adequada,
tão súbita que logo a seguir tivesses a vontade de escrever por baixo “sangue”, se nada disto se verificou sabes que continuar vivo é o que tens feito e assim
fecho a boca, deixo cair a caneta e continuo a remar.
Outro
ângulo. O som límpido de uma coisa como quando corre. Mesmo que não dure, forte que
chegue para correr. Isto não é uma finalidade, não é sobre hábito, uso,
consumo. A força que este movimento gera não é sobre chegar ao fim, não é sobre
acabar. É repetida até à exaustão, eléctrica na sua natureza mais nuclear. O
seu trabalho e tráfico são a beleza deitada fora. Não é um ofício porque é
sobre sincronia e ritmo, em negativo, descoordenação e arritmia, isto é, como
uma arte pode ser começada. Não sabes se isto bate certo. A única coisa que te
explicaram logo no início é que para viver todos os dias uma só desculpa chega.
*
Trago
comigo a máquina. Não foi longe daqui e não foi há muitos meses. Éramos
quatro sentados na mesa e abri a lente. A conversa foi cortada pelo som
mecânico, pequeno animal a deslocar-se rápido. Antes de carregar no botão
viraste-me as costas para que nada se soubesse do teu rosto. Eu ia disparar e
sei que acreditavas que uma só imagem chegava para te fazer cair morto.
Mas
agora já não é completamente mentira que tenha muitas fotografias tuas.
Se é
verdade que há aquela idade em que uma rapariga consegue perceber todo o poder
que tem contra o rapazola que se encosta ao muro atemorizado, também ainda
nenhum deles tinha passado para o lado de entender completamente o que isso
significa e tudo o que existiu nesse antes é do domínio da competição. Ninguém pode
dizer o que aconteceu depois. Talvez nenhum deles tivesse como saber antes.
É por causa disto que nenhuma
desculpa chega. Nenhuma desculpa vai chegar nunca. Nenhuma. Nunca. Esta é
a única coisa a saber ao certo. E o pior de tudo é pensares que uma desculpa pode e deve
ser encontrada.
Vês como o tronco se dobra e vês o contorno desses músculos,
das costelas. A mão curva-se em concha para a água e pensas que este corpo é
uma coisa tão frágil que pode ser partida. Ou sozinho partir-se ao meio. Não existirá depois deste segundo. Depois deste segundo este corpo não vai existir nunca mais. A preto e
branco no espelho a cara lavada. De tudo o que tenhas esta é a única coisa verdadeiramente
tua. A única que conquistaste. A única coisa acertada.
Reclamar
isto. Qualquer coisa de jeito que possas aprender (enquanto tinha tempo tentou
aprender esta música, mas ninguém percebeu para quê) tem sempre de vir um pouco
tarde, sem que possas saber se vai dar certo. Este riozito a dar para o inverno
e de noite. Pés em desacerto na lama. Nada. Tu a conteres-te porque não queres
que acabe nunca.