A moral certa
/Em 1951, numa publicação intitulada Comício, Teresa Quadros dispensava conselhos «sobre como adaptar o perfume que usamos a diferentes ocasiões» ou «usar jóias com uma certa classe» ou ainda «para ajudar as mulheres a acalmarem-se». Mais de cinquenta anos depois, Gonçalo M. Tavares escreveu as Breves Notas Sobre o Medo, um pequeno livro onde se inclui um texto chamado «A moral certa», que parece piscar o olho a um certo Proust (citado em Príncipes Reais). A ideia: a de que nos juntaremos sempre a quem tenha o «mesmo grau de confusão». Se numa mão temos uma autora feminina (não confundir com feminista) entregue ao supostamente fútil, na outra temos um autor (não confundir com deus) entregue ao pensamento.
Não é, no entanto, de nenhum deles que vou falar – e o que quero dizer, hoje, é mais ou menos breve. Desconfiando desde há uns meses que toda a gente (toda, mesmo) é igual, descobri finalmente a importância do meio. Quero dizer: tenho um amigo que é um leitor ávido, um homem curioso, de boa memória, sempre com uma resposta tão inteligente quanto bem humorada na ponta da língua. Para além disto, tem bom ar e juventude que chegue para uma vida generosa. Quando nos sentamos para falar é evidente que a coisa vai demorar: se ele acabou com a namorada ou se eu tenho problemas no emprego, é certo que vamos gastar horas na centrifugação de tudo quanto pode ser pensado sobre um único tema. Se por acaso tivéssemos mais do que um problema num dado momento creio que seria preciso uma semana para que tudo ficasse dito. Se o tema for a namorada vamos falar de clássicos russos, de filósofos alemães, de poetas portugueses, de deus e do diabo. Quando o tema for o meu emprego falaremos das rabidantes caboverdianas, do sol na Índia, de contos zen, da imaginação que deverá sempre ser maior que o entendimento. No fim, animados mas sem ter dito tudo quanto poderia ter sido dito, teremos que continuar vivos – e sem soluções.
Simultaneamente, há um mundo paralelo onde as coisas acontecem, exactamente da mesma maneira, sem tanto uso de palavras. Um mundo onde as namoradas acabam com os namorados, onde os empregos são miseráveis, onde Kafka soa a marca de tabaco, onde na música o horizonte é a RFM, onde artes plásticas são «isso até eu podia fazer, fôda-se», onde as coisas se arrumam dizendo que ela é uma cabra, que uma andorinha não faz a primavera, que a vida continua, que vai ali uma gaja boa, que hás-de arranjar trabalho, e que fizestes [sic] o teu melhor, destes [sic!] tudo o que podias, e isto é tudo por causa da inveja que os outros têm de ti.
E aquilo que para mim se vai tornando evidente é que este exercício de pensar, se for separado da experiência de viver, é irmão gémeo do exercício de não pensar que, de resto, nem sequer existe – porque, quer queiramos quer não, toda a gente pensa.No mundinho superficial de Teresa Quadros podia não estar presente o génio de um M. Tavares mas dele nunca se ausentou o coração selvagem. O meio, que nos quer obrigar a ser mais espertos do que a vida, contornando-a pela via da tese, não nos faz ascender ao céu.
Teresa, como toda a gente sabe, era pseudónimo de Clarice Lispector.