Navalhinha SOS

O que se segue à dor não é o choro, se assim fosse teria passado pelo menos vinte anos a chorar. Morreu-me a velha, morreu-me um puto à nascença e desapareceu-me a Esposa I e não me caiu uma lágrima. Estava no funeral da velha e só me apetecia rir e dançar. Chorei-a muito depois. O primeiro passo é a dor e o segundo uma espécie de repressão sentimental, a incapacidade de dizer uma palavra que seja sobre o assunto que nos faz sofrer. Não me lembro de chorar em criança, em adolescente, em adulto. Tirando uma ou outra ocasião em que me saiu uma aguadilha, mantive-me estoico e duro durante décadas, as décadas em que estive vivo. Chorei este ano, estes meses. Pela primeira vez me aconteceu chorar enquanto esperava pelo comboio e enquanto jantava e enquanto escrevia sobre um tema fastidioso em alto grau. Demorei a aceitar que não existe um sentido para a existência. Pensava que as peças do puzzle um dia encaixariam. Compreendi a inutilidade desse tipo de pensamentos. Temos o caos, o tijolo que cai não se sabe de onde. Conviver com a dor não é uma mera questão de recebê-la e carregá-la como se fosse uma mala pesada, conviver com a dor, a verdadeira dor (isto que sinto), é insuportável. "Eu nunca faria aquilo", dizia em petiz. Nunca seria como os loucos ou os deprimidos que precisavam de comprimidos para viverem como os outros, ou quase como os outros — não se chega a viver como os outros, estes estão sempre numa melhor condição. Não só preciso de comprimidos como me comporto de forma irracional, irascível. Certos impulsos levam-me a desfechar biqueiros na mobília ou a atirar-me pela janela de pijama e correr correr (uma sorte, viver no rés do chão) ou a chapar a tábua de passar a ferro contra a parede. Não me sabia igual àquele que partiu o pé pontapeando estantes ou àquele que chegou a casa ensaguentado e rasgado por se envolver em brigas desnecessárias, como sempre são aquelas em que o porteiro de um bar nos pede calma e nós ripostamos com um cale-se, jumento. Fico incontrolável quando ouço algo que me desagrada. Basta um dos miúdos levantar a garupa à hora de refeição para ser premiado com uma bofetada. Quando a mulher chega tarde a casa, fico tão enervado que só me acalmo a limpar o pó com a sua cabeça. "Tome os medicamentos", dizem-me os médicos, não sabendo que me irritam. Ai se desconfiassem que a minha tranquilidade é aparente, que por mim esmurrava-os até virar-lhes a cara do avesso. Engulo seis comprimidos por dia, esses malucos julgavam que me acalmaria com seis comprimidos? Se me dessem anestesia de elefante, poderia ser que sim. Com seis comprimidos adormeço mais cedo e é só.  As vozes cá dentro fazem cada vez mais chinfrim. O que me tem aguentado é uma navalhinha que saco do bolso em situações de emergência. Os diabéticos precisam de insulina, eu preciso da navalhinha para me golpear. A vida é caótica e se choro no trabalho, na rua, a jantar com amigos, o que posso fazer? Se a culpa é insustentável, se o mundo é triste por minha causa (porque eu sou triste), a que recorrer?