Entre leitores oblíquos e António Lobo Antunes
/Ler como quem trabalha em pergaminhos nebulosos, rasurados, várias vezes reescritos. Em camadas de palimpsestos que se foram apagando, mas mantêm a força irrevogável da insinuação. Contra as leituras lineares, acariciar as curvas que levam, por vezes aos solavancos, em direcção a sentidos impossíveis, insistentemente escondidos (única forma de se revelarem sem cair nos esgotos da praça pública). Os leitores oblíquos têm de ser aventureiros, ainda cheios da coragem ingénua de quem nunca errou. Precisam de campos abertos onde parecem buscar súbitas fontes de verdade textual, não dessa que alisa o mundo com o rolo compressor dos dogmas e quer durar uma eternidade, antes a certeza frágil que faz emergir vida, ainda experimental, vida gasosa que se esvai alegremente através dos metros cúbicos que compõem a atmosfera. Os leitores oblíquos buscam um clarão que não seja a apropriação definitiva do sentido, a petrificação do texto em coordenadas definitivas, estagnação de morte. Lêem o texto, às vezes num rigor hermenêutico sobre-humano (era esse o desejo de Nietzsche quando dizia que só havia interpretação), mas é neles que tudo acontece, só eles se rasgam até à morte. Paradoxalmente, o leitor oblíquo está sempre em vias de morrer, explodir num entusiasmo dionisíaco depois de descobrir a origem do universo em si.
Ao autor resta escrever livros, fazê-lo como “quem joga a vida” (Lobo Antunes, entrevista à Revista Visão, n.º 1085, 19-25 Dezembro 2013, p. 112-122), escrevê-los com o próprio sangue (Nietzsche), num cinzelar constante, obsessivo (“não há talento, há bois, pessoas que marram e marram e marram...”, Lobo Antunes, idem), até que o braço doa de tanto gatafunhar, resmas de páginas que não servirão para nada, a não ser levar o leitor oblíquo a voar imperfeitamente sobre abismos.
Lobo Antunes não gosta de Robert Musil ou Thomas Mann (eu gosto tanto!), mas sabe que “são bons” (idem), porque marraram horas sem fim contra gigantescos edifícios de frases feitas e no fim construíram, com os fragmentos da destruição, palácios que o leitor pode visitar, descobrindo os magníficos brilhos que saem de si mesmo. O leitor canibaliza o autor, apropria-se dele, reescreve-o, banaliza-o ou engrandece-o. Por isso, Lobo Antunes já não se refere a eles como os jovens, medianamente jovens, escritores à espera de reconhecimento e dinheiro (na entrevista são a ausência mais surpreende e necessária). Lobo Antunes escreve para ele, realiza a mais alta de todas as promiscuidades estéticas, a máxima espiritualização do onanismo: ele é um autor-leitor. Sem obliquidades contudo, neste estádio a serpente morde o seu próprio rabo e traça mais um círculo, reafirmando o poder da ortodoxia geométrica. É com tristeza, mas sem me afastar do dever estético de reconhecer que Lobo Antunes é uma das mais belas “estrelas dançantes”, que o vejo “rapar o fundo do tacho” na entrevista da Visão. Como se estivesse com presa de regressar aos livros que continua a escrever, como se não quisesse desviar-se deles e por isso tenha ficado na pele da vida, que neste caso não é a "máxima profundidade”, como pretendia Paul Valéry.