Não sejas estúpido!
/“Não sejas estúpido, está bem?!”
Claro que está! Está mais que bem, mas isso depende de mim?
A sentença não era imperativa, já a tinha visto usar as mesmas palavras com imensa ternura, ou para fazer conversa enquanto pensava num algoritmo ético que revolucionasse a economia digital. Mas agora era a mulher mais bela, exacta e alta do mundo. Tinha conseguido isso através de um favor (algumas biografias referem “vários”), e, para repor a ordem cósmica, muitos deviam ser esmagados ou cortados em pequenos fragmentos e disseminados pelas ruas mais sujas de Lisboa.
Os argumentos que usei sobre a falta de essencialidade da estupidez (“só há processos de estupidificação”, lancei em aprumada pose), justificando-me com Tatiana Faia, que escreve, depois de Goethe, ([…] do princípio é / uma mentira dizer / que aí era o logos no / princípio éramos nós / e nós apenas e nenhuma razão […]. Teatro de rua), esgrimindo com as mais rebuscadas teorias cognitivas, zurzindo nos testes de QI, desconstruindo os brilhantíssimos intelectuais que sustentam Portugal a golpes de crónicas... Tudo isso foi uma perda de tempo (que é sempre um perda de dignidade).
Os seus braços de cutelaria luxuosa, longos, brancos, afiados, foram anulando todas as possibilidades de a atingir com a lava da compaixão, cura homeopática, arrebatamento do consenso contra o do dissenso. À medida que percebeu melhor, com aquele seu olhar de águia em treino, de como eram inofensivos os meus ataques semânticos, enchia-se de desprezo e procurava encerrar a ridícula disputa que ganhara sem esforço. Foi a sua vez de citar Tatiana: “[…] a forma mais perigosa de atenção / é que percebas e te calhe / essa ternura em queda / em diminuendo / o conhecimento de um homem em estilhaços […]. (Idem).
Como sou, por enquanto, o dono do texto, poderia imaginar uma vingança horrenda (toda a história ocidental é pontuada pelo combustível da vingança), mas soaria a falso, sabemos que uma mulher assim é capaz de renascer num novo brilho cruel apagando “as coordenadas anteriores”, ela não precisa de puxar dos galões, subir para cima dos seus próprios ombros para ver mais longe ou dobrar a verticalidade de uns quantos audazes que se atrevam a olhá-la de cima para baixo. Basta-lhe existir e mostrar os braços.
Eis o problema: o “autor” só subsiste enquanto não aparece uma rebelião hermenêutica que o põe no lugar do morto, lhe diz, com a voz da vida verdadeira, para não ser estúpido, não inventar esses planetas de brincar. Resta-lhe, no campeonato da consolação, e com uma jogada de antecipação – que se for também ela antecipada, necessita maior recuo... e assim até ao infinito, até que a consciência lógica grite de dor – reinventar em cada instante aquilo que Tatiana Faia plasmou em papel analógico, que já foi vida, majestosamente quase estática: “[…] já que há tudo a perder mais vale / querer cada vez mais […]. (Idem).