Bestiário Literário

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Depois de ter passado o Verão de 1933 na aldeia de Bilignin, em Savoie (França), onde vivia Gertude Stein num imenso château ferme, a preparar os press releases das conferências que a escritora iria dar no ano seguinte nos EUA, acompanhado daquele zururum contínuo: “No, no, you’ve missed the entire point. Go back and try again”, e a passear pela zona rural de Savoie, com Stein ao volante, Alice B. Toklas ao lado, e os cães, Basket e Pepe, um caniche branco e um fox terrier mexicano, que no banco de trás pareciam levados da breca, Laughlin foi viver para Paris, tinha então 19 anos. Dali escreveu a Ezra Pound, e perguntou-lhe se podia ir visitá-lo a Rapallo, na província de Génova (Itália), onde o poeta vivia. Não esperava sequer uma resposta, mas dias depois recebeu um telegrama: “Visibility high”.

Pound deu-lhe cama, pão e poesia. Por assim dizer, é claro: um quarto no apartamento de uma senhora alemã, e o pão e a poesia na “Ezuversity”: termo cunhado pelo autor para designar as aulas que dava ao pupilo, e que na verdade não passavam de longos monólogos de Pound sobre a correspondência que recebera de manhã. Almoçavam, faziam a sesta e depois iam nadar ou jogar ténis. Pelo meio, e em dias bons, Pound fazia imitações de Joyce e Keats, e o pupilo descabia em si de satisfação. “His stories were endless, and very funny, and what I remember about them – over all those years – was that I never heard him tell an off-color story”, diria anos mais tarde Laughlin, em entrevista à Paris Review.

Nesse Outono, depois de ler alguns poemas seus, Pound disse a Laughlin que ele nunca seria um bom poeta, e que o melhor seria tentar outra coisa. O discípulo considerou (apesar de ter continuado a escrever e a publicar), voltou para Harvard, onde estava a estudar, e fundou a New Directions, a editora que queria publicar o que as outras não publicavam, porque sabiam que não havia leitor que estivesse para aí virado.

Pound escreveu aos amigos – William Carlos Williams, Kay Boyle, Jean Cocteau, entre dezenas de outros (“If you have a manuscript send it to this worthy young man") – e a pilha de textos para ler foi crescendo entre os livros e os arquivos, as cartas, a máquina de escrever e o tabaco e os cachimbos que cobriam a sua secretária. Laughlin fez um brilharete. E explica na entrevista: “That was no problem. In those days – it was fairly soon after the Depression – the big publishers just weren’t doing much literary publishing.”

Publicou Tennessee Williams, Karl Shapiro, Lawrence Ferlinghetti, Fitzgerald (o Crack Up, quando ninguém tinha interesse nisso, e o Gatsby, quando já estava fora de catálogo), William Carlos Williams, Henry Miller, Herman Hesse, Ezra Pound, Dylan Thomas, John Hawkes, Nabokov. Depois, Pound sugeriu-lhe que se dedicasse também à literatura internacional, porque para perceber poesia era preciso trabalhar com várias línguas, e Laughlin começou a publicar traduções: Rimbaud, Baudelaire, Rilke, Valéry, Kafka, Cocteau, Borges, Blaise Cendrars, Queneau, Lorca, Mishima e mais uns quantos.

“What I’m writing now is my auto-bug-offery. Wild stuff. Mostly fictional. What I wished had happened. The Way It Wasn’t would be a good title”. Laughlin esteve a preparar a sua autobiografia até morrer; aconteceu em 1997, tinha então 83 anos. Reuniu fotografias, poemas, reproduções de cartas e de capas de livros, postais e recortes de revistas e jornais e papéis com anotações. Nove anos depois, foi publicada em livro pela reestruturada New Directions. O arquivo foi organizado por temas, dispostos por ordem alfabética.

Bergman: “Now if you had Bergman’s Three Strange Loves on your list I could anecdotalize about that. This is an important film because it has my eye in it”. O olho era efectivamente o de Laughlin, na capa do Cosmological Eye que Bertil levava na mão; o livro, de Henry Miller, saíra pela New Directions em 1939. Céline: “The terrifying French novelist, Louis Ferdinand Céline – an enormously powerful and slashing, satiric, misanthropic writer. But what power of the imagination! We did three books of his. He was overpowering.” Cocteau: “I wish that nice Marse Jean Cocteau were still around. He took me to lunch at the Grand Véfours in the Palais-Royal and explained clearly all about flying saucers. He understood mechanical things. He would advise me. He was amiable.” Ferlinghetti: “Before I die I’d like to discover another rip-snorter – you know, like Ferlinghetti!” Japan: “Here around Kyoto, the old capital, which sits in a bowl of wooded hills, they have some beautiful little temple shrines in groves, all beautifully kept and as peaceful and lovely. At one of them we were given ceremonial tea – green stuff, quite thick & frothy – and sat on the matting by the open side for a long time looking out at the wonderful landscape of wooded hills.” Love: Cicero noted that an old love pinches like a crab.” Lewis: “Wyndham Lewis wrote ‘Why don’t you stop New Directions, your books are crap.” T. S. Eliot: “In a 1946 letter to Pound, WCW [William Carlos Williams] says that TS Eliot is ‘vaginal stoppage’ and gleet.”

“America”, “Bookselling”, “Elizabeth Bishop”, “Cultural Wasteland: USA”, “Ginsberg”, a reprodução de uma carta de Laughlin para Hemingway de Junho de 1950 e a resposta do escritor, “Herman Hesse”,  “India”, “Jack Kerouac” (também reprodução de uma carta para o editor: “I write intros to each author and my intro to you will be that you are “beat” because you took more chances than any other publisher"), “Joyce”, e por aí adiante, a bater terreno sobre as palavras até chegar o fim.  

No L, de “Lustig”, Laughlin recorda a primeira vez que teve contacto com o trabalho de Alvin Lustig. Foi em Los Angeles, em 1939, quando Lustig tinha 24 anos. Um amigo tinha-lhe dito que ele devia investigar sobre um tipo que andava a fazer umas coisas meio estranhas – “queer things”, dissera-lhe – para capas de livros. Na autobiografia, depois da nota do editor, foram incluídas imagens de algumas capas que Lustig fez para os livros da editora: Illuminations, de Rimbaud, Amerika, de Kafka, The Man Who Died, de D. H. Lawrence, Flowers of Evil, de Baudelaire, e Miss Lonelyhearts, de Nathanael West. A mais conhecida é provavelmente a que fez para o Three Tragedies (1955), do Lorca, de um rigor simbólico e domínio em termos de composição que dizem continuar a servir de inspiração aos designers que trabalham com livros: conjugação de títulos com tamanho reduzido e tipo de letra discreto com elementos desfiliados e emprestados a outros sistemas – assemblage, se quisermos – de modo a conseguir um design minimalista. Quando por aí se julga que o nome dele não se vai aguentar sozinho, comparam-no a Klee, Miró e Rothko.

The Way It Wasn’t, o livro, deu origem depois a um blogue, com o mesmo título e os mesmos conteúdos, tentando fazer uma reprodução o mais fiel possível da autobiografia em papel.

Para uma primeira aproximação àquilo que foi Laughlin, leia-se o que escreveu a Dylan Thomas: “New Directions is the best Publisher for you in America because I fight for my books. None of the big houses will fight for a poet these days.” Para começar, isto serve.