Conhece-te a ti mesmo

Uma das sentenças mais glosadas da história da filosofia é o “conhece-te a ti mesmo” socrático (ou délfico). Em geral, lê-se esta frase como estímulo para o entendimento de si, forma de descobrir as mais exactas linhas de vida que constituem o ser humano. Esta orientação afirmativa tem tanto de narcísica (tendemos a achar-nos mais interessantes do que somos) quanto de preconceituosa (julgamos positivo conhecer, não importa o quê).

Ora, Sócrates erigiu por si só o maior tribunal contra a bazófia humana, todo o seu pensamento se move em torno de uma filosofia da estupidez, uma genealogia, uma crítica, uma denúncia da estupidez. E o gesto dramático que o levou a cumprir a sua condenação à morte pretendeu somente realçar a imbecilidade dos juízes (quase toda a Atenas, na época sinónimo de “quase toda a civilização”). É por isso que gosto do fio interpretativo de Michel Foucault: o “conhece-te a ti mesmo” seria um “não imagines que és um Deus”; ou “Sabe bem qual é a natureza do teu pedido quando vens consultar o oráculo”.

Deslocando-me para o campo actual da selfiemania, e partindo do princípio que nos selfies há um horizonte epistemológico, talvez fosse útil que em cada auto-imagem, reflexo mediado pelo digital e vontade de aparecer, se figurasse também esse questionamento acerca do galho que o acaso nos destinou (“cada macaco...”) e da razão por que utilizamos poderosos algoritmos de comunicação global. Noutros termos: 1- não penses que és tão bonita/o ou interessante quanto julgas; 2- sabe bem a razão por que lanças a tua figura na webosfera (neo-Realidade sagrada).

Não caiamos, porém, em vãs angústias, ou desesperos funestos. Há mais do que uma forma de consolo, a pós-modernidade acabou com vários monopólios, entre eles o da ressurreição (que não é apenas carnal). Como dizia o poeta francês Pierre Reverdy, num contexto bem diferente do meu ateísmo: “Estou armado com uma couraça feita apenas de defeitos.” (Le livre de mon bord, 1948). E a imperfeição é tanto o centro da vida viva como dos gestos mais ilogicamente generosos.